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terça-feira, maio 02, 2023

Trajetórias

Para ir à escola, eu devia pegar três ruas, a Av. Pelotas, a João Manoel e seu seguimento, a Dr. Nascimento. No meio de tudo isso, ficava a Praça Saraiva, que era parte de minha rotina, a qual fazia questão de atravessar. Nela, os sentimentos sempre despertavam de algum modo, geralmente sensações conhecidas das manhãs outonais ou das longas tardes de inverno. Na verdade, gostava daquela sensação de frescor, mesmo em manhãs frias, dos assobios incessantes dos bem-te-vis, que se misturavam nas folhas dos imensos eucaliptos e de outros pássaros, dos quais desconhecia o nome, do sereno que ainda restava na grama, até às 7 e meia, mais ou menos, os caminhos de areia e saibro vermelho. Era um mundo especial, o meu mundo matutino na ida à escola.

O São Francisco ficava logo ali, indo pela Nascimento, mas me parecia tão longe! Antes, devia ir pela João Manoel até o canalete. Lembro das calçadas irregulares, do silêncio da rua que parecia não morar ninguém, do sol que despontava meio longe, através das árvores ralas que contornavam os canteiros. Depois, na Nascimento, já conhecia algumas casas que faziam parte de minha rotina. Uma casa pequena, com um jardim acanhado, à esquerda de minha trajetória, onde sempre encontrava um senhor que transitava por ali, ora em direção ao centro, ora ficava apenas parado, observando a paisagem. Não tinha certeza se já me conhecia, mas tinha essa impressão. No outro lado da rua, uma casa enorme, com jardins imensos e muitas árvores. Às vezes, imaginava-a como uma fortaleza, guardando uma imensa biblioteca, outras vezes, achava apenas que estava abandonada. Coisas de minha cabeça.

Prosseguia o caminho com a pasta pesada, devido aos livros de cada disciplina e respectivos cadernos, além de lápis, caneta, régua, transferidor (alguém ainda usa?), esquadro, borracha, bloco sem pauta, etc., além dos gibis, que vez que outra, trocava com colegas. Sempre que atravessava o Canalete, naquelas pequenas travessas, sentia o frio vindo da lagoa, que parecia desembocar bem ali, na esquina que passava. Na volta, era como se o caminho fosse outro. O sol era mais forte, as ruas mais cheias, os carros rápidos na direção das casas, levando filhos da escola, voltando do trabalho no intervalo do almoço. O meu íntimo não era tão festivo como as ruas, embora fosse tão intenso quanto.

terça-feira, agosto 24, 2021

Quase parente

Ela nem tinha chegado aqui e eu já me emocionara com a sua presença. Era forte, altiva, esclarecida e divertida. Nas poucas horas em que tínhamos contato, na verdade, eu que ficava hipnotizado por ela, meu dia ficava mais festivo. Ou melhor, a noite, o período em que realmente nos encontrávamos na casa de uns amigos de meus pais. Depois, passávamos praticamente uma semana sem nos vermos. Até que chegou o grande dia. Ela apareceu majestosa, imponente, tomando conta da casa como se fosse uma visita. Uma visita esperada, aguardada e que já tomava ares de hóspede eterna. Ficava no melhor lugar da sala, defronte ao sofá, onde permanecia mais exposta e parecia estar sempre pronta ao diálogo. Diga-se, a bem da verdade, que às vezes, parecia indisposta, um tanto alheia e embora fizéssemos o possível e o impossível para que correspondesse, não dava as caras. Mas nunca a censurávamos, ao contrário, ficávamos felizes quando ela voltava. Muitas vezes, não foi exclusividade minha, amigos apareciam e ansiavam desesperados pela sua presença. Outros estranhos, a espiavam pela janela. E em ocasiões especiais, grandes eventos, como a copa do mundo, a janela ficava desenhada de cotovelos estranhos, olhos fascinados com a sua presença. Com o tempo, ela ficou atrevida, não era mais uma visita, muito menos uma hóspede transitória, era um de nós, quase parente. Tornou-se tão à vontade que começou a ficar não apenas na sala, mas transitou da cozinha ao quarto, imaginem. Sua presença tornou-se cada vez mais íntima, a ponto de não descolarmos de suas projeções. Mas o tempo é duro para todo mundo, e ela envelheceu e apesar de estar praticamente em todos os lugares, foi se tornando quase obsoleta, dando lugar a outras mais jovens e fagueiras. Agora, talvez o streaming a salve e restitua a sua imagem daqueles tempos da velha TV de nossa infância.

sábado, novembro 26, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23

Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia.

O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local.

Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à Delegacia. Apavorado, liga para Letícia.

– Letícia, o que vou dizer agora? Vão pensar que matei Fernando! Como chegara até mim?

– Calma, Alfredo, você está me deixando nervosa. Não se esqueça, que nós três estávamos lá naquele momento, que nós três fizemos a limpeza das digitais. Meu Deus, se eu for envolvida nisso, estarei perdida!

–E o que devemos fazer?

– Em primeiro lugar, manter a calma. Tente descobrir como eles ligaram você ao crime.

– Não me ligaram a nada. Não diga besteiras. Alguém deve ter me visto por ali.

– E o seu carro? Alguém pode ter anotado a placa, ou quem sabe, viram através de alguma câmera da rua?

– É verdade, pode ser isso. Estou apavorado.

– Já lhe disse que não pode ficar assim. Diga-lhes que foi pedir um favor, afinal ele não era o jardineiro de mamãe?

– Sim, mas não posso dizer isso. Eu não posso contar o que eu queria dele.

– Então diga o óbvio.

– A que você se refere?

– Que vocês tinham um caso.

– Você está louca?

– Não, estou tentando ajudar você, seu bobo. E pense bem no que vai dizer, não vá nos envolver nisso. Eu não deveria ter ido lá, foi uma loucura!

Ele desliga o celular ainda mais confuso do que estava antes. Decide vestir-se e ir até a delegacia. Precisa acalmar-se, pensar numa solução para o problema. Afinal de contas, ele não deve nada à justiça. Pensando nisso, tomou um banho rápido e preparou-se para sair.

Quando chegou, o delegado Santos pediu que aguardasse. Alfredo estava muito nervoso. Olhava em torno, tentando encontrar um motivo coerente para o encontro com Fernando, mas nada lhe vinha à mente e o fato de seu carro estar estacionado em frente à casa e principalmente ter sido filmado, o deixava apavorado.

Um policial o encaminhou para a sala do delegado e afastou-se, deixando-os às sós. Pela vidraça que separava da outra sala, Alfredo observava o movimento dos funcionários, computadores e conversas ao celular. Alguns grupos se posicionavam próximos à parede de vidro, numa conversa animada, como se estivessem na mesma sala. Entretanto, não se ouvia o que diziam.

– Muito bem. O seu nome é Alfredo Sampaio.

– Sim, senhor.

– Nós fizemos uma pequena pesquisa a seu respeito: sabemos que é um empresário no ramo de celulose.

– É verdade.

– Senhor Alfredo, o senhor sabe o motivo desta intimação ou pelo menos, imagina, não é mesmo?

– Na verdade, delegado, eu fiquei muito surpreso. Sei que ocorreu um crime, que o rapaz daquela casa foi assassinado. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Engraçado. Eu não tinha falado sobre nenhum crime.

– Não? É que pensei…

– Pode falar, senhor Alfredo, fique à vontade.

– Ah, senhor delegado, estou muito confuso, essa história toda está me deixando com os nervos à flor da pele.

– A que história o senhor se refere?

– Bem, o senhor mandou me chamar por causa de Fernando?

– Parece que o senhor sabe muito mais do que a polícia. Por isso, o chamamos até aqui.

– Não, eu não sei de nada. Mas o senhor se refere a este caso, não? Ao rapaz que foi assassinado.

– E o nome dele era Fernando?

– Sim.

– E morava na rua Dutra, 53.

– Ele havia se mudado para lá há pouco. Eu sei de tudo, porque ele é o jardineiro de minha família.

– Ah, sim. E é parente de uma empregada de sua família. Neste momento, a polícia está entranto em contato com ela.

– Meu Deus, pobre Linda!

– Pois é, senhor Alfredo, como o senhor mesmo disse, houve um crime na casa deste rapaz, sendo que ele mesmo é a vítima. Nós estamos investigando e por isso, o chamamos.

– O senhor deve ter me chamado, porque ele trabalha conosco, quero dizer, com a minha família, mas eu não posso lhe adiantar muita coisa. Quase não o conhecia.

– Tem certeza de que não o conhecia?

– Na verdade, algumas vezes eu o vi por lá. Poucas, sabe.

– Mas então, o senhor pode me dizer o que fazia em sua casa, ontem à noite, quando ocorreu o crime?

– Foi uma terrível fatalidade. Quando entrei, eu o encontrei atirado no chão, ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas ele já havia morrido.

– Então quer dizer que o senhor esteve lá realmente?

– Não, quero dizer. Eu fui lá porque precisava levar um recado de minha mãe, mas … o senhor está me deixando confuso, delegado.

– Eu estou sendo absolutamente claro, senhor Alfredo. Sabemos que ocorreu um crime, que segundo o que o senhor mesmo afirmou, a vítima estava estendida no chão e tinha levado um tiro.

– Eu acho que foi um tiro.

– Sim, foi um tiro. O senhor tentou reanimá-lo.

– Eu fiquei muito nervoso, chamei por ele. Acho que tentei, agora estou tão nervoso, que nem sei de nada.

– Então, procure acalmar-se, senhor Alfredo. O senhor percebeu que o rapaz estava morto. Por que não chamou a polícia?

– Porque não podia fazer mais nada. Fui embora, apavorado. Foi isso que fiz.

– Mas é muito estranho. Não havia nenhuma impressão digital, como se quem estivesse ali, houvesse apagado todas as impressões.

– No meu caso, eu não toquei em nada.

– Nem na maçaneta?

– Não, a porta estava entreaberta.

– A porta estava entreaberta e o senhor entrou, chamando pelo rapaz, o nome dele era Fernando, não?

– Sim. Fernando.

– Recapitulando: o senhor viu a porta aberta, o que é muito estranho também, chamou por Fernando e não obteve resposta. Então aproximou-se do corpo, deve ter se abaixado para verificar se ele estava vivo ainda.

– Sim, mas não toquei nele, não toquei em nada. Em seguida, fui embora.

– O senhor sabe que havia outro carro estacionado na frente da casa?

– Não, eu não vi ninguém. Mas como o senhor pode afirmar que eu estava de carro? Podia ser o carro de outra pessoa.

– Um vizinho anotou a placa e nas câmeras aparece o seu carro e também o outro.

– Sim, eu vim no meu carro, eu não estou negando que estive lá. Mas como o senhor pode ver, delegado, alguém chegou antes de mim e matou o rapaz. É preciso verificar estas câmeras antes de eu chegar, talvez muitas horas antes.

– Talvez o senhor tenha razão.

– E como viu, não há nenhuma impressão digital, eu praticamente entrei e saí daquela casa. Fui na hora errada, no dia errado. O senhor sabe o que me deixa mais indignado? É que o assassino deve estar andando por aí, rindo da nossa cara, e nós perdendo tempo. O senhor me intimando como se eu tivesse alguma coisa a ver com este crime. Eu nem conhecia o rapaz, direito, como lhe falei!

– Mas apesar de toda a limpeza, achamos alguma coisa que mantém ainda as impressões digitais de alguém, talvez possamos descobrir o DNA através dela.

– Como assim?

– Uma lente de contato. O senhor usa lentes de contato, senhor Alfredo?

segunda-feira, novembro 14, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 20

Capítulo 20

Quando anoitece, Fernando retorna para a casa onde decidira residir em definitivo. Uma casa que lhe traz muitas recordações, mas está disposto a enfrentá-las e conviver com elas. Afinal, foi a sua vida durante tanto tempo. Quem sabe, agora, ele a reconstrói e esquece para sempre o trabalho de jardineiro. Sabe que precisa andar na linha, para não voltar para a prisão, pois não suportaria voltar para aquele hospício.

Entra em casa e ao ligar o interruptor assusta-se com a presença de Linda, esperando-o na sala.

— O que está fazendo aqui? Como a senhora entrou?

Linda sorri e aproxima-se para abraçá-lo. A primeira reação de Fernando é afastar-se, mas lembrou-se das palavras de Alfredo, de que deveria ser cínico e não enfrentá-la. Então, dá um leve beijo na testa e afasta-se novamente perguntando como ela havia entrado.

— Desculpe, meu querido, não queria assustá-lo.

— Mas a senhora me assustou. Como vou imaginar que alguém estará aqui, dentro de minha casa? E se lhe dou um tiro?

— Você não faria isso. Sei que não pode usar armas.

— Mas eu tenho uma arma para defender-me. Por favor, minha tia, esqueça esse assunto. Não falamos em armas nesta casa.

— Não se preocupe comigo. Você sabe que estou sempre ao seu lado e farei tudo para protegê-lo.

Um pouco mais tranquilo, Fernando senta-se numa poltrona e observa que a casa está arrumada. Linda também senta-se a sua frente e , como se adivinhasse os seus pensamentos, comenta que organizara o que pudera, mas que a casa precisava de uma faxina mais esmerada.

— Sim, eu vou fazer isso. Mas por que estava no escuro?

— Eu estava descansando os olhos, pensando um pouco no passado. Ainda havia luz quando vim para cá, arrumei tudo e me sentei a esperá-lo. Foi escurecendo e fiquei aqui, quieta.

— Você tinha a chave da casa?

— Sim, é claro que eu tinha. Quando sua irmã ainda morava aqui, ela me dera a chave para vir quando precisasse de mim. Foi bem no período em que você esteve preso e ela, coitada, acabou estava muito deprimida. Depois foi embora, você sabe.

Fernando tenta mudar de assunto. Acrescenta que não tem nada para oferecer-lhe, pois ainda não comprara nada para a casa.

— Outro dia, eu virei aqui e você me fará um café. Hoje, está bem assim.

— A senhora teve a tarde de folga?

— Sim, como você. Parece que teve folga à tarde, também.

— Eu tive que resolver um problema.

— E está tudo bem? Quero dizer, em relação aos seus problemas com a justiça.

— Estou me mantendo de acordo com as normas. Acho que isso basta.

— Sem dúvida. Fico contente que você esteja superando tudo isso. Mas deve ter muito cuidado, você sabe que qualquer deslize, pode voltar para aquele inferno.

Alfredo concorda com um aceno. Linda prossegue, enfática:

— Por isso tem que tomar cuidado com quem anda, com quem conversa. Você não pode se meter em nenhuma furada. Quando o cara vai preso, ele fica marcado para toda a vida.

— Estou cansado desta história.

— Desculpe, só queria ajudá-lo.

— Eu sei, tia, mas por favor, não vamos mais falar nisso. – faz uma pausa e pergunta, tentando demonstrar serenidade – Mas me diga, tia, como vão os seus serviços com dona Santa? Parece que estão numa encrenca danada!

— Por que você diz isso?

— É o que todo mundo fala, que ninguém se entende naquela casa, é reunião em cima de reunião e os filhos ficam um para cada lado.

— É isso que você sabe?

— Tem mais alguma coisa?

— Não, na verdade eu sei muito pouco do que acontece naquela casa.

— E dona Santa não lhe conta nada? Não faz confidências?

— Dona Santa é uma mulher muito discreta. Não costuma falar sobre a sua vida.

— Então está tudo tranquilo, apenas fofocas dos empregados.

— Certamente. De minha parte, está tudo muito tranquilo. Dona Santa e eu somos muito amigas.

Fernando levanta-se,dirige-se à janela e observa a rua, por algum tempo, impaciente. Depois, abaixa a persiana e volta-se para Linda, perguntando:
— Mas a senhora não veio aqui apenas para arrumar a minha casa. Deve haver algum motivo.

Linda sorri, afetuosa.

— Você tem razão.

— Ah sim? – interessa-se, voltando a sentar-se. Ela prossegue no mesmo tom.

— Eu queria falar com você, mas não naquela casa. Foi muito bom você ter se mudado, por vários motivos, você sabe.

— Não, não sei. Quero dizer, sei os meus motivos, como por exemplo, ter mais individualidade, a minha vida própria. Morar naquela casinha, nos fundos daquela mansão me deixava sem ar.

— Você está sendo ingrato comigo. Eu fiz tudo para que se mudasse para lá, tivesse onde ficar.

— Sei tia, não me refiro à senhora. Mas sabe, que preciso ficar um pouco sozinho. Todos precisamos, não? Mas quais seriam os outros motivos?

— Você ter mais liberdade e não se envolver com a família. Não quero que fique como eu, uma pessoa da família, mas que na verdade, não passa de uma empregada.

— Mas você acabou de dizer que você e dona Santa são muito amigas. Eu pensei que era feliz naquela casa.

— E sou feliz. Sou muito feliz, porque me acostumei. Porque faz muito tempo que moro ali, e nem saberia mais viver noutro lugar. Mas você é jovem, tem uma vida pela frente. Deve construir a sua própria vida, a sua história.

— É verdade. Então me diga, sobre o que queria falar-me.

— Na verdade, eu vim alertá-lo.

— A senhora já fez isso, pediu que eu não entrasse numa furada.

— Sim, mas vou ser mais explícita agora. Eu acho que você não deve envolver-se com dona Santa.

— Como assim?

— Como lhe disse, eu gosto muito dela, mas também sei que ela não está bem de saúde. Outro dia, ela me pediu para chamá-lo, pois queria conversar com você. Eu tenho medo que ela acabe envolvendo-o em problemas.

— Não sei a que a senhora se refere. Há pouco, disse que tudo estava bem, que não havia nada de anormal na família.

— Meu filho, é que eu procuro não me intrometer nos problemas deles. Eles são eles, nós somos nós.

— A senhora está sendo contraditória.

— Fernando, por favor, tente compreender. Já que quer saber, eu vou lhe explicar o que sei, somente isso, porque não quero que você entre numa fria, como falei. Dona Santa está com problemas mentais, está confusa, se esquecendo de fatos importantes da vida dela e ao mesmo tempo, inventando outras histórias.

— Está ficando louca, então.

— Não sei, não sei. Talvez seja apenas uma fase, um problema provisório, talvez até uma depressão que vai passar um dia.

— E por isso, a senhora não quer que eu fale com ela.

— Não, de modo algum. Eu não disse isso. Eu não quero que você acredite no que ela diz. Aquele dia em que ela quis falar com você, deve ter pedido alguma coisa.

— Não pediu nada, ou seja, pediu.

— Eu não disse? Ela não está bem! O que ela queria?

— Queria que eu fosse na igreja e falasse com o bispo Martim.

— Com o bispo Martim? Não estou entendendo.

— Pois é, nada demais. Ela queria apenas uns documentos antigos, parece que a igreja tem documentos da família, certidões, coisas deste tipo.

— Que estranho! Por que não pediu a mim?

— Talvez não quisesse incomodá-la.

— Mas que documentos são esses?

— Como lhe disse, não sei ao certo. Acho que são certidões, registros da história da família.

— E você os pegou?

— Ele ficou de me entregar na semana que vem.

— Ah, então o assunto não tinha nada a ver com o sr. Sandoval?

— Não, ela nem falou nele. Por que teria?

— Não sei, dona Santa anda muito estranha. Mas olhe, que isto fique entre nós. Eu não quero de maneira alguma que isso se espalhe. Coitada, não merece ser criticada por aí, só porque anda meio confusa. De sua parte, acho melhor se afastar um pouco, e quando ela pedir alguma coisa, passe para mim a incumbência. Eu farei o serviço.
— Está bem, minha tia. Pode ficar traquila. Mas de qualquer modo, não há por que se preocupar. Eu quero distância daquela família. Quero viver a minha vida e logo que puder, que passar esse periodo difícil, eu vou cair fora.

Ela sorri, satisfeita. Em seguida, pede para Fernando chamar um táxi. Quando a vê afastar-se, Fernando liga para Santa.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 18

Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.

Capítulo 18

As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.

Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.

Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.

Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.

As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.

Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.

Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.

Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.

Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.

Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.

Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.

Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.

Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.

Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.

Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.

De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.

Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?

O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.

Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.

Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.

Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.

Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.

Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.

Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.

Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.

Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.

Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.

Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.

— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?

— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.

— Do que é que você tem medo?

Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.

— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.

— Mas então, o que você quer de mim?

Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:

— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.

— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.

Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:

— Estou com o carro aí na frente.

Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.

Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.

Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.

Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.

Alfredo o espera, sorrindo.

segunda-feira, outubro 24, 2016

SOBRE O FILME "UM MESTRE EM MINHA VIDA"

Um mestre em minha vida é um filme de 2011, com 83 minutos de duração, baseado na peça teatral de Athol Fugard chamada “Master Harold and the boys”.

Tanto o filme quanto o livro receberam o mesmo título, no Brasil.

Vamos falar um pouquinho sobre o autor da peça, um renomado dramaturgo sul-africano, que vivenciou todos os horrores do apartheid e incluiu este tema em muitas de suas peças, inclusive nesta, acenando para a gama de sentimentos que revela o ser humano desnudo em suas percepções da vida.

Ao contrário do que se possa deduzir em situações conflitantes, extraordinárias e limites, o homem age de modo natural, capaz de amar e odiar, em que pese às circunstâncias desfavoráveis.

Através de um discurso inconformado e eivado de lutas de resistência ao apartheid, Athol Fugard tenta refletir as transformações das relações pessoais através do contexto político-social. Afinal, o homem é produto do seu meio e age em conformidade com seus sentimentos arraigados e obsessivos, internalizados desde a tenra idade. No entanto, através da emoção e do sentimento, ele pode romper esta conjuntura adversa.

Tanto na peça, quanto no filme, a história mostra as relações inter-raciais durante a época do apartheid, na África do Sul, neste caso, nos anos 50.

Os personagens principais são Hally (Freddie Highmore), um adolescente que cresceu na companhia afetuosa de Sam (Ving Rhames) e willie (Patrick Mofokeng), dois garçons negros que trabalham na Casa de Chá de sua mãe, na cidade de Port Elizabeth.

Os dois empregados da Casa de Chá experimentam a realidade hostil do sistema de segregação racial, em cuja estrutura a sociedade criara bancos de praça exclusivos para homens brancos, enquanto que as casas dos negros deveriam ser construídas em bairros distantes.

Entretanto, os dois personagens negros convivem com esta situação tirando o proveito através de suas tendências artísticas pela dança, capazes de cultivar uma abertura particular neste espaço marginalizado, onde podiam conviver em paz.

Esta relação sadia impressiona o adolescente, de tal forma que os momentos em que Sam e Hally estavam juntos foi de extrema satisfação e conhecimento interior.

O mundo é hostil, mas eles sabiam desanuviar as dificuldades, contribuindo para um relacionamento saudável e próspero.

Entretanto, embora Hally, o adolescente e Sam, o garçom, sejam muito amigos e confidentes, a educação discriminatória de Hally o conduz a retomar o preconceito arraigado, motivado por um acontecimento fútil, sendo capaz de ofender e subjugar o amigo da maneira mais cruel e desumana.

Deste modo, ocorre o conflito da peça e do filme, pois todo o afeto compartilhado é destruído em segundos, dando margem a uma série de confrontos, revelando ao público as nuances psicológicas dos personagens.

Se por um lado, o adolescente Hally está convencido de que é forte, autoritário e seguro, por outro se sente atordoado, amedrontado e cheio de remorsos pelos sentimentos obtusos que experimenta.

Sam ao contrário, é firme e parcimonioso em seus sentimentos, dotado de paciência e experiência que o lapidaram como um homem confiante e seguro, mas tanto quanto o amigo adolescente, sente-se abandonado e triste, com dificuldade em retomar a amizade fragilizada.

Os diálogos de Sam, Hally e Willie (que aos poucos mostra uma personalidade inesperada, no decorrer da trama) são bem construídos, passando ao espectador uma verdade, que o faz experimentar as mesmas dores.

Não se tira os olhos, nem o pensamento, nem o coração da tela. Tudo é tão perfeito e verdadeiro, que as palavras fluem tal como a chuva torrencial que cai lá fora, vista pelas vidraças embaçadas da Casa de Chá (aqui, uma metáfora, entre a realidade glamorosa dos brancos e o cotidiano “apagado” e sem encanto dos negros).

A atmosfera triste da chuva, por sua vez, destaca a amargura dos personagens.

Na verdade, o sofrimento de Hally se justifica pela intolerância racista do pai, que ao mesmo tempo em que expõe Sam e Willie a humilhações, através de piadas de mau gosto, também o envergonha por ser um homem desajustado e fraco, consumido pelo álcool.

Hally sente-se dividido entre a inabilidade em lidar com os sentimentos em relação ao pai, a concordância submissa da mãe e o encontro com o novo mundo, cheio de vida e alegria ao lado dos amigos que o viram crescer.

Novamente, ao final, a chuva mostra os dois mundos que se dividem, a chuva lá fora, fria e densa, atrapalhando o percurso de Hally na bicicleta.

Talvez esta corrida na chuva signifique além do sofrimento e do remorso de perder o amigo, um batismo para uma nova vida, lavado pela água que lhe encharca a roupa e empoça as ruas.

Na Casa de Chá, através das vidraças embaçadas, o ruído forte da chuva faz coro para a dança de Sam e Willie.

Serão dois mundos que se separam ou que se completam dali para a frente?

Uma estrada paralela que se afasta ou uma encruzilhada que os une?

É um filme emocionante, repleto de descobertas e perspectivas a serem refletidas.

sábado, outubro 08, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

No capítulo anterior, quando Linda começou a revelar o que motivara Santa a fazê-la permanecer na reunião, Sandoval teve um mal súbito interrompendo-a. Após a intervenção médica e constando-se que ele não tinha um problema grave, Santa ameaçou-o que se ele não contasse aos filhos sobre o fato que o relacionava à revelação de Linda, ela cumpriria a missão que se propusera. A seguir o nono capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 9


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/m%C3%ADstico-árvores-nevoeiro-misty-918502/Unsplash

Sandoval levanta-se da cama e caminha pelo quarto em extrema ansiedade. De repente, a estabilidade de sua família está a perigo. Santa intervém na vida de todos com uma finalidade que não lhe parece nada espiritual, ao contrário, é cheia de vingança e desejos moralistas.

Mas o que fazer para impedir que leve adiante esse delírio?

As últimas palavras da mulher ecoam em sua cabeça, colocando em suas mãos a decisão de propor uma nova reunião.

De repente, uma ideia luminosa, que em sua essência contraditória, o deixa febril e feliz ao mesmo tempo. Olha para os lados, como se temesse ter seus pensamentos descobertos.

Decide então procurar a mulher, para anunciar a sua proposta.

Quando Santa o vê aproximar-se, sorri, satisfeita, pois acha que Sandoval voltou atrás e fará o que pediu. Tem certeza absoluta de que a Virgem iluminou seus pensamentos.

— Eu sabia, Sandoval, que você pensaria com carinho no que conversamos.

— Sim, Santa, acho que você tem razão em tudo o que disse. Você é uma mulher forte, corajosa e sei que está fazendo tudo pelo bem da família.

— Não pense meu querido, que não estou sofrendo também. Infelizmente, é uma provação que devo experimentar, talvez para expiar os meu pecados.

— Você é uma mulher sem pecados. Faz tudo pensando no bem de todos.

— Não diga isso, não sou nenhuma santa, a não ser no nome. Também tenho meus erros e quando tudo estiver decidido, quando todos voltarem para a vida cristã e fizerem o que a Virgem pediu – enxuga uma lágrima, emocionada – eu também me confessarei a todos.

— Você? Não seja irônica, Santa! – arremata, sorrindo. Ela porém, prossegue no mesmo tom grave:

— Não estou sendo irônica, Sandoval, de modo algum. Mas isso será mais tarde, no fim da jornada. Agora, estamos no início do caminho e eu só quero que os meus filhos entendam a minha situação, que você também entenda que não me resta outro caminho. Faria tudo para que não sofressem, que não passassem por humilhações desnecessárias. Deus sabe o quanto sofro com isso, mas não posso voltar atrás.

— Santa, no fundo, eu a admiro por esta bravura, este sentimento forte, você é uma verdadeira fortaleza em relação à família. Talvez você tenha razão, eu não tenha sido um bom marido, tenho levado uma vida desregrada, não tenho me dedicado como deveria a você, tenho também os meus segredos, mas agora, tudo isso não vai significar mais nada. No momento eu que eu me abrir para a família, eles compreenderão que sou um ser humano, falível e que posso me regenerar.

— Sandoval, então quer dizer que pretende marcar mesmo uma nova reunião com todos?

— Ele se aproxima e acaricia o seu ombro. Solta a mão devagar, levando-a até a mão de Santa e a segura com força. Santa o encara, emocionada.

— Eu vou marcar uma reunião com todos, vou fazer exatamente o que você quer.

— Na verdade, o que a Virgem quer.

— Então, está bem, que seja, o que a Virgem quer. Mas, só coloco uma objeção, ou melhor, uma condição para que este encontro familiar aconteça.

— Uma condição? – Santa pergunta, intrigada, recuando um pouco, afastando a mão da do marido. Ele insiste na proposta:

— Sim, uma condição que não fará a menor diferença no conteúdo da informação, ou da revelação, que seja, do que tenho que falar.

— E que condição é esta?

— Não quero a sua presença na reunião.

— Por que? Você me assusta!

— Não há o que temer, apenas, você sabe, querida, o que tenho que revelar aos nossos filhos é um tanto constrangedor para mim. Não queria que você estivesse lá, ouvindo tudo e sentido-se, certamente, pouco à vontade. Desejo que neste momento, você esteja no oratório, pedindo a proteção da Virgem para a nossa reunião. Você acha que é pedir demais? Apenas isso, um momento que não deve ser compartilhado com você, uma humilhação que basta ser somente minha.

Santa fica em silêncio, um pouco desconfiada, mas em seguida reflete na proposta do marido e percebe que ele tem certa razão. Afinal, seria muito penoso para ela aquela demonstração pública de uma mulher sofredora. Não, melhor não participar da reunião, ele estava correto.

Então, aproximou-se e o abraçou.

Sandoval ficou meio sem graça, meio perdido naquela demonstração de carinho. Resumiu rapidamente o enlevo, anunciado que havia uma outra condição.

— O que você quer dizer?

— Desejo que somente a família esteja presente, somente nossos filhos e nosso genro, mais ninguém.

— Você não quer a presença do Bispo Martin e de Linda?

— Muito menos desta mulher. Por favor, Santa, é um pedido que lhe faço. O último, eu juro. A partir desta reunião, farei tudo o que você quiser, mas não me faça sofrer uma humilhação na frente do bispo e daquela zinha!

— Mas ela é a maior interessada...

— Eu sei, eu sei. Depois você repassa a ela, diz que ela pode cumprir a sua missão, que tudo já foi esclarecido a todos. Eu lhe peço, Santa, será muito penoso pra mim, nas atuais circunstâncias, ter que me defrontar com aquela mulher.

Santa mais uma vez se aquieta. Afasta-se do marido e senta-se em uma das poltronas da sala. Abre com cuidado uma revista, como se avaliasse cada página, observando o material, o tipo de papel e o próprio conteúdo. Em seguida, deixa-a de lado e dá o veredicto:

— Está bem, Sandoval, eu aceito. Faça a sua reunião com a família. O que vale, afinal de contas, é o resultado. Este, tenho certeza de que será coerente com o seu caráter – E levantando-se, vai ao seu encontro – você é um homem bom, meu marido, eu confio em você.

Naquela noite, quando acordou, Santa teve a impressão de que o mundo vinha abaixo. Coração na garganta, um suor que empapava o pescoço.

Custou-lhe acreditar que havia acordado de um pesadelo.

A realidade era menos precisa do que o sonho. Olhou para o lado e a figura esparramada na cama identificava claramente de que não estava dormindo.

Sandoval de vez em quando estremecia num ronco surdo, danoso, que parecia sufocá-lo a cada movimento.

Santa tentou levantar-se da cama, as costas doíam, os pés estremecidos não obedeciam seu impulso. Passou a mão pelos cabelos, pelo pescoço, tentando amainar a sensação desagradável. Esforçou-se para ficar ali, encostada na cabeceira da cama, ouvindo um leve zunido, que se assenhorava de sua mente, facultando a impossibilidade de ouvir além. Respirou fundo.

De fato, apesar do pesadelo, sua vida estava passando por uma transformação drástica. Por mais que se esforçasse em parecer tranquila, por mais que quisesse manter à promessa à Virgem, havia no seio da sua família um movimento que transformava as águas plácidas em um maremoto.

E tudo de repente, desandava, se distanciava do verdadeiro objetivo que era o de unir a família.

Ao contrário, tanto seus filhos, quanto o marido e o bispo mostravam-se assustados, indignados com a sua virada de mesa. Sabia que o remédio era amargo, mas precisava prová-lo para produzir o resultado final.

Agora, porém, não tinha tanta certeza de que estava certa em pôr na berlinda a vida de todos, como se tivesse a faculdade de mexer com os cordões e dirigir suas vidas.

Além disso, esse sonho terrível, em que as pessoas se associavam como em bando, para liquidar a sua vida. Seria um prenúncio de que estavam tramando às suas costas?

Não, isso é um absurdo, como pode pensar que sua família estaria traçando planos para traí-la. Era um pesadelo, apenas um pesadelo, do qual queria esquecer.

Sandoval fez um resmungo e virou-se de bruços. Santa suspirou, aliviada. Afinal, assim certamente cessaria o ronco.

Mas aquele movimento, a fez pensar mais adiante, o que a deixava mais angustiada. O que acontecera com a sua família? O que acontecera com o seu casamento?

Ali estava um homem quase estranho, que apenas dormia ao seu lado.

Tinha a sua vida privada, envolto em suas noites de jogatinas e amores fortuitos. Um homem que fingira conhecer e que imaginava estar sempre ao seu lado.

E os filhos, a quantas andam?

Letícia, que lhe parecera tão equilibrada, com uma profissão estável, um marido que a amava e a respeitava. Agora, lhe parecia uma mulher despeitada, irritada com qualquer situação que a desagradasse, sem a menor tolerância. Uma mulher imatura, a ponto de não querer ter filhos.

E o marido, Ricardo, que não passava de um mulherengo incorrigível?

Também seu filho mais moço a decepcionara, fazendo de sua vida um verdadeiro circo, sem a capacidade de crescer, de amadurecer, de se tornar um cidadão. Um homem que faz um curso de segunda categoria, que não se esforça em ter um emprego estável, que poderia substituir o próprio pai, na fábrica, futuramente. Não, Tavinho a decepcionou muito.

Ainda havia Alfredo, que sempre fora o ensimesmado da família, que vivia metido em si mesmo, em seus sonhos, em seus ideais, dos quais raramente falava, mas no que depositava tanta esperança que se transformasse num verdadeiro homem, casado, pai de família, que lhe desse netos. Ao contrário, se revelava um homem fraco, que se dizia homossexual. Isso não é verdade. Alfredo é um menino bom, está apenas confuso. Conhecendo-o como o conhece, ela sabe que ele ainda será o filho que lhe causará as maiores alegrias.

Junto a estas revelações insuportáveis, para completar, ainda havia a declaração de bispo Martin, a história da bússola da mãe de Sandoval e o relacionamento obtuso que tivera. Por mais que ela soubesse dessa história, seria preciso muitos anos para que a poeira sentasse e todos recomeçassem as suas vidas em paz.

Agora temia que já não fosse possível o que a Virgem lhe solicitou.

Santa teve a respiração cortada, mas agora após tantas reflexões, sentia-se mais forte para levantar-se da cama e se afastar do quarto. Vestiu um robe e dirigu-se até a cozinha.

A casa estava em silêncio absoluto. Quando serviu-se de água, assustou-se com a presença silenciosa de Linda.

— Desculpe se a assustei dona Santa. É que estava sem sono e...bem, vim pegar um copo d'água.

Santa não responde, apenas a encara com surpresa, como se não a reconhecesse.

Linda se afasta um pouco, com o copo na mão e pergunta, sem graça:

— Que aconteceu? A senhora tá pálida e tá me olhando de um jeito...

— Há quanto tempo você está aqui, Linda?

— Há uns quinze minutos...

— Não me refiro a agora, há quanto tempo você está em nossa casa?

— Bem, há mais de 30 anos – responde, aliviada.

Santa prossegue, incisiva:

— Engraçado, eu nem lembrei de você ainda há pouco. E você está intimamente ligada ao meu passado, ao de Sandoval.

— Por favor, dona Santa, não me lembre disso.

— Não, Linda – Santa exclama, em tom mais alto e decisiva – Eu não vou lembrar de nada. Vou deixar as coisas acontecerem. Um dia todos saberão, porque você também precisa se revelar a toda a família. Você e ele devem se redimir.

— A senhora sabe que eu estava preparada para a reunião e por mim, diria toda a verdade.

— Haverá um outra oportunidade, Linda. Não se preocupe.

— Falando assim, a senhora me assusta.

— Não tem por que ficar apreensiva. Nós todos estamos no mesmo caminho, na mesma trajetória de mudanças, portanto...

— Às vezes, a senhora fala coisas que eu não entendo.

— Sabe, Linda, eu também não entendo muita coisa. Não entendo porque meu marido fará uma reunião sem a minha presença.

— Uma reunião como aquela?

— Sim, mas apenas com os filhos e o genro. – E em seguida, mais afoita – Eu quero que você descubra para mim, tudo que está acontecendo.

— Mas dona Santa, será impossível eu estar lá, como vou participar de uma coisa que nem fui convidada?

— Aí é que você usará o seu ardil. Você é uma mulher esperta, Linda. Pense numa maneira de ficar no escritório, sei lá, escondida, atrás das cortinas, mas dê um jeito.

Linda em seguida sentou-se numa das cadeiras que davam para o pátio, que se observava através de uma imensa janela envidraçada. Alguma luzes tênues no jardim, o orvalho que enfeitava de gotículas as folhas da samambaia, o verde remanescente do avarandado, o único que ela dali conseguia identificar.

Santa sentou-se a sua frente. Neste momento, parecia absorvida em estranha energia. Olhou com cuidado para a mulher, como se quisesse incutir nela o plano que ora envolvia sua mente conturbada. Largou o copo sobre a mesa próxima e acrescentou:

— Linda você precisa me ajudar, você me deve essa!

Linda porém, não a ouve, dá um grito aterrorizado, que a deixa paralisada, sem tomar qualquer atitude.

Santa levanta-se rapidamente e intervém, perguntado o que houve.

Linda repete trêmula:

— Um homem, dona Santa, um homem atravessou o jardim. Ele saiu da casa correndo.

Mas como? Precisamos chamar os criados, chamar a polícia. Para onde foi?

Ele fugiu dona Santa, tenho certeza que pulou o muro, porque desapareceu por meio das árvores... ao menos que esteja escondido.

— Então fique quieta, venha comigo, vamos tentar chamar alguém.

Linda segue a patroa que arrasta os passos pesados, tentando afastar-se da cozinha, seguindo pelo amplo corredor até a copa. Precisam ir ao quarto dos criados, da copeira, do mordomo ou voltar para o seu quarto e acordar o marido.

Santa estava cada vez mais tensa. As pernas quase não a obedeciam.

Linda aproxima-se da janela e percebe um pequeno papel no chão. Abaixa-se com dificuldade, devido ao nervosismo e entrega-o para Santa.

— Olhe, dona Santa.

— Que me interessa isso, agora, Linda. Temos que chamar alguém.

— Mas este papel foi jogado pela janela, olhe como está aberta.

— Meu Deus, é verdade. Deixe-me ver – Santa examina um pequeno cartão e estremece – É uma das mensagens que deixei para vocês naquele dia. E esta é do bispo Martin! O que está acontecendo nesta casa, meu Deus?

sexta-feira, setembro 09, 2016

As divagações e sonhos de Marina

Seus pés pequenos mergulhavam, solitários, na água morna. O sol ardia, escaldante, nas têmporas. Mas aquele minuto de sol significava mais do que tudo que precisava fazer. Quase deslizava na água. A ponta dos dedos observavam mariscos, a areia da praia que afundava na pressão do calcanhar, as pequenas conchas que teciam a rede de espumas que se espalhava. Era lindo e ela sabia disso. Suas pernas finas e ágeis davam, de vez enquanto, pulos, como uma rã em busca de insetos. E assim, passavam a correr, mal pisando a água clara e morna, limpando a planta dos pés, deixando-as mais brancas ainda. Os pés e as pernas eram escuras, como o resto do corpo, mas as plantas eram claras, tão claras que tinha a impressão que as tinham pintado. Agora estavam quase murchas. O sol a pino produzia gotas de suor na testa ampla. Os olhos grandes, argutos, analisavam apenas o que lhe convinha: o conviver com o que a natureza oferecia. E não era pouco. Ali ficou, nos saltos e em cada um, vislumbrava um pensamento rápido de quem sonha. O vestido já molhado não obedecia aos gestos e se ajustava às pernas. Não havia vento, nem frio. Só aquela brisa suave e a sensação boa de estar sozinha. Há tanto tempo permanecia assim no vazio de sua vida, sem ninguém, que estava até acostumada. O vazio, que experimentava agora, era diferente. Era gostoso. Um vazio de pessoas, embora um momento pleno de si mesma.

Ouviu um assobio bem longe de seus ouvidos, mas o suficiente para parar de supetão. De repente, seus pés se acomodaram na areia, afundaram na água morna e se enterravam devagar, pelas canelas finas, quase na altura do joelho, já alcançando o vestido. Vestido que pairava quieto, sobre a água. Uma pequena deusa, que se vestia de santa e olhava ao longe, com cara de menina bondosa. Na verdade, não era tão menina assim. Já tinha os seus 14 anos e apesar de mirrada, parecendo um pouco mais do que 11, já se considerava uma mocinha.

O assobio insistiu, estava mais próximo. Dava arrepio voltar à realidade, assim, de repente. Que bom se pudesse ficar saltitando pela água do mar, chutando as espumas, fazendo rodopios com o corpo. Mas de sonho, já vivera até demais. Melhor aquietar-se no mundo que a esperava. Um mundo desconhecido, do qual não dava conta.

Às vezes, se imaginava branca, de olhos claros. Aliás, quando pensava em si, não tinha uma identidade negra. Quando se olhava no espelho, não era ela, que via. Era uma outra menina, com um olhar diferente, muito mais sério, com uns lábios apertados que não descreviam o que sentia.

E esse assobio que penetrava nos seus ouvidos. Alguém se aproximava, alguém muito familiar que causava esse desassossego. Quando Omar se aproximou, ela já era outra. Seu olhar maduro, os gestos robotizados, lábios apertados.

Omar perguntou, ríspido, se ela não voltaria ao trabalho. “As doceiras lhe esperam. Ou pensa que os doces se vendem, sozinhos, de mão em mão?”

Marina baixou a cabeça, ou melhor enviesou os olhos o mais que pode. Não lhe interessava argumentar sobre a água, nem se desculpar, muito menos encarar aquele homem que não lhe transmitia nenhuma segurança. Afastou-se na sua frente, na direção das cozinhas do velho restaurante. Em pouco tempo, voltaria para a praia, agora não mais deserta, nem agradável aos pés e olhos. Apenas a areia escaldante, o grito rouco da propaganda, o abrir e fechar de cestas, divulgando a mercadoria. E assim, as horas passaram e quando se deu conta, estava em casa, entre centenas de crianças que se embrulhavam como presentes nos cobertores ralos. Ela agora sentia um pouco de frio, mas a memória da água morna e das espumas ainda estavam presentes. Foi com isso que sonhou, pois dormiu num sono só. Só acordou com o chamado do sino habitual para a higiene e o café da manhã. Havia poucas meninas com as quais se relacionava. Uma que outra lhe passava mais confiança. Com estas costumava falar de Omar.

Apesar da raiva que sentia dele, por tratá-la com um certo desprezo, ele lhe despertava alguma coisa lá dentro. Talvez fosse esse o motivo de tanta raiva. Afinal, Omar não era um homem feio: forte, cara dura, braços e pernas musculosas. Tinha um olhar obtuso que não levava a lugar nenhum, a não ser um gestual peculiar de empáfia. Mas não o achava feio. Se não fosse tão mal...pensou.

― Qual é a dele – perguntou uma das meninas – anda sempre atrás de você.

― O negócio dele é vender doces. Estou lá para isso. Tenho que me arranjar.

― Você é quem sabe. Por mim, eu dava um chega pra lá neste cara. Ele marca de cima, parece seu namorado

Marina enrubesceu. Seu coração batucou no peito, agora de raiva da colega. Ela não tinha namorado e quanto a Omar, estava descartado, afinal ele era muito mais velho do que ela, apenas o sócio do restaurante perto da praia, e jamais pensaria nela como namorada. Além disso, diziam que ele andava metido com gente da cidade, isto é, tinha uma mulher que morava no centro. O interesse dele era exclusivamente ganhar dinheiro. Mas vai explicar isso para a colega. Melhor levantar-se rápida do café e arrumar as suas coisas.

As noites passavam sem graça para Marina. Por vezes, pensava numa família que não teve. Afinal quem seria o pai? Talvez alguém muito parecido com Omar, um homem frio, cheio de salamaleques, metido a dono de tudo. A mãe? Desaparecera no mundo, certamente quando ela nascera, pois fora morar naquela Casa de Meninas. E jamais fora escolhida para ser filha de alguém. Ninguém queria uma menina negra, mirrada, de nariz sujo e olhos grandes como ela. Agora, porém, era outra pessoa. Uma pessoa diferente. Talvez não tanto quanto gostaria, mas uma pessoa que pensa consigo, sem se interessar mais com a opinião de ninguém. Afinal, nunca se importaram com ela. A não ser uma ou outra pessoa que a ajudou na Casa ou mesmo no restaurante, do qual vendia os doces na praia. As noites se alongavam, intermináveis. Tinha vontade de sair da Casa de Meninas, por rumo na sua vida. Mas nem tudo acontecia como se imaginava, ou quase nada. Acha que viverá a vida vendendo doces. Até morrer.

Um dia recebeu um livro de um instrutor. Leu algumas paginas, enjoou. Mas vez que outra, abria aquelas folhas amassadas e lia um ou dois parágrafos. Apesar da dificuldade na leitura, sempre gostava do que lia. Talvez algum dia, lesse o livro todo. O instrutor foi embora e deixou como herança o livro. Bem diferente de Omar. Ao contrário deste, o instrutor era um homem educado, generoso, tranquilo. Sabia conversar com facilidade, sabia dar conselhos. Mas dava-os de modo que o receptor nem se desse conta da mensagem. Ou se desse conta apenas do conteúdo, sem saber que estava sendo doutrinado. Era isso que as meninas diziam. “O instrutor de educação física sabia doutrinar a gente, parece um padre”. Mas ele foi embora de uma maneira triste, decepcionante. Até hoje, Marina não acreditava na versão que deram. Não pode ser, ele era um homem tão íntegro, tão verdadeiro. Ele não faria o que disseram. Mas todos juravam que era verdade. Que aquilo aconteceu mesmo.

Marina se lembrava como se fosse hoje. A professora irrompeu na sala, aos soluços. Tratava-se de dona Sarita, uma mulher já passada nos quarenta, que se julgou ofendida pelo assédio do instrutor. Ela fora chamada à atenção pela diretora da Casa e certamente seria demitida, se houvesse participado dos galanteios do instrutor, isto é, se os tivesse aceitado, assim se comentava na época. Foi uma situação desesperadora, porque ela teimava que era inocente, que não tinha aceito aquelas obscenidades em plena sala de aula. Era o que diziam. Ela ficou e ele acabou indo embora.

Marina nunca gostara de dona Sarita. Preferia que o instrutor ficasse. Mas isso, ela não podia decidir.

Fonte da ilustração.: www.pixbay.com

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

sexta-feira, março 11, 2016

A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez.

A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua cidade. Talvez pelo clima, ou pela liberdade das férias, traziam consigo uma vivacidade e delicadeza que ela desconhecia.

Mas foi por pouco tempo. Logo voltou à vidinha medíocre de balconista de farmácia. Sabia de cor todos os medicamentos, pelo menos, os mais usados ou mais vendidos. Costumava dar conselhos, indicava alguns, informava os benefícios, investia no cuidado com os presumíveis compradores. Era assim o seu jeito, calma, despretensiosa, desinteressada, quase amiga.

Depois conheceu Fábio. Foi no ano em que faria vestibular. Pretendia cursar letras, nem sabia bem o porquê, talvez porque gostasse de ler. Isso, faz até hoje. Gosta de esparramar-se na cama, enfiar os óculos na ponta do nariz e ler horas a fio os romances mais melosos que encontra. Neles se transporta, viaja a países em que o coração é protagonista. E sente-se ali, envolvida no cenário, como se fizesse parte da trama. Vive e vibra com os personagens. Isso se intensificou desde que casou. Passou a ler com mais frequência. Uma das atividades das quais Fábio não dá a mínima importância. Ainda bem. Nestes momentos, se sente livre, dona de si, tranquila.

Quando casou, desistiu do vestibular, desistiu do curso de letras, desistiu da faculdade. Casou. Era o sonho. O sonho de toda uma geração, talvez não da sua, mas a de sua mãe, ou sua avó. Faz tempo que ocorreu o movimento feminista. Mas ela nunca concordou com aqueles extremos. Homem é homem, tem as coisas de homem. As dificuldades de homem, os desejos de homem, as necessidades de homem. Homem luta, homem provém, homem vence. Mulher é diferente. Mulher é suave, doce, caseira, vive para a família. Mulher observa, aplaude, é plateia. Mulher agradece, obedece. Mulher é romântica. Mulher ama.

Ela pensa muito nisto e talvez por isso tenha vivido uma vida tão coerente com sua realidade. A realidade de uma dona de casa.

Bem que de vez em quando, surge aquela faísca que lhe atinge os olhos de gata cinza e dá uma sacudida na alma. Um estremecer nas pernas. Um tremor no coração. E se fosse tudo diferente? Se a vida existisse além da cozinha, além dos cuidados da casa, dos filhos, do marido. Se ultrapassasse aquela janela de vidro, opaca pelo sereno da manhã e atingisse os trilhos que passam ali, tão perto, quase ao lado? Uns trilhos que se perdem e se encontram, embora paralelos, com outros, formando novos caminhos? Uns trilhos que a conduzissem a outros extremos, outras saídas, que permitissem ações de conquistas e aventuras? E se seu nome não fosse Maria Helena? E seu marido não fosse Fábio Costa? E se não tivesse marido? E se tivesse um amante?

Agora estremece as mãos, que esfriam rápidas e as bochechas fervilham, vermelhas. Por momentos, morde as bochechas por dentro, fazendo um gesto de desgosto ou displicência, não sabe.

Sente forte remorso. Lembra do marido, tão solícito, trabalhando duro para manter uma vida digna. Lembra dos filhos correndo pelo shopping, em busca dos brinquedos, dos lanches, dos jogos, enquanto ela passeia pelas lojas de departamentos, procurando blusas para compor o visual para um passeio que não fará.

Se pudesse voltar a praia, caminhar descalça pela areia, sentindo a espuma bordar-lhe os dedos. Ah, seria bom aquela brisa, aquele ar mais puro impregnando-lhe as narinas, aquele sol flamejante envolvendo seu corpo inteiro. Ela vestida num maiô preto, os cabelos clareados e lisos da chapinha estirados nas costas bronzeadas. O olhar cinza quase furta-cor, na claridade inconfundível da atmosfera de verão.

Ah, seria tão bom sentir estas sensações e não se perder entre as paredes do apartamento, esperando que as coisas aconteçam de acordo com o tempo dos outros. O tempo do marido, dos filhos, o tempo das horas.

Mas já foi um bom tempo. Um tempo em que Fábio voltava mais rápido pra casa. Costumava elogiar seus quitutes, seu bem cuidado com a casa, os bordados das toalhas, a mesa do jantar enfeitada. Tudo brilhava como seus olhos. Às vezes, ele a beijava. Beijava devagarinho, encostando os seus lábios finos nos seus carnudos, a sua língua envolvia-lhe como um pássaro oferecendo comida. Uma comida que a saciava, que a deixava louca, que a consumia. Mas aos poucos, os carinhos e os elogios foram rareando. Como tudo na vida. Já seu corpo não o despertava. Seu olhar pouco expressava algum sentimento ou sensação e sua voz, ah, sua voz, fugia pra longe. Pra outros prados que não ali. Muitas vezes distante. Muitas vezes, perdido em divagações, em mundos que só ele conhecia. Coisas de homem. As gotas enchiam o pote. Rareavam espaços. Por certo, transbordariam, procurariam outros veios produzindo caminhos diversos, formando novos espaços, onde ela não cabia. Outro mundo surgia que não o seu. E a violência, aos poucos foi tomando conta do que outrora era carinho e atenção. Foi ficando omissão e dor. Um dor que se alastrava tão forte que o melhor era ficar quieta, calma, serena, como sempre fora. Assim, a dor passava. Como a mãe recomendava: te encobre no cobertor, o frio passa e acaba a dor. Se não tiver frio, não tem dor. Mas fica quieta. Te acalma. Mesmo assim, a dor continuava latente, cada vez mais forte, atingindo a profundidade do osso, sugerindo morte.

Um dia, o olho roxo. Outro, hematoma no braço. Ele cada vez mais violento.

Às vezes, ela tinha pena dele. Era um homem bom, mas tinha lá seus problemas, por certo não aguentava mais a situação. Devia estar pressionado pelo trabalho, pela vida, pelas finanças. Afinal, ele provia. Ele custeava tudo aquilo, a sua vida, o seu prazer, o seu próprio trabalho.

Mas a dor física não é o suficiente. Só doeu de fato, quando ele a desconsiderou como pessoa, como ser humano, como mulher. Quando ele disse que ela era um trapo, uma inútil, uma vadia. Quando a deixou com tantas dúvidas sobre si mesma, que o pote entornou, de vez. A gota derramou. Mágoa. Foi quando usou a única arma que tinha. Não era sedução, nem beleza, nem cultura. A única arma que a defenderia. A casa, a comida, os filhos. Ele se rendeu e morreu de dor.

terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

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