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quarta-feira, julho 27, 2022

É suave a noite

Quando observavas as luzes esparsas da noite, por certo, vias estrelas tão suaves e distantes, que quase sumiam na visão etérea de nossos sentimentos. Era só nossa, como a daquela versão antiga de “Tender is the night”. “É suave a noite, a noite é de nós dois.” Sabias que o amanhecer era a fronteira entre nossos encontros, mas nossos beijos permaneceriam para sempre, em nossos lábios sedentos, mentes melancólicas e pensamentos afetuosos. Lábios que se tocavam suavemente na brisa de verão, embora tudo passasse tão rápido, desafiando o tempo.

Era nossa última noite. Agora, quem sabe, nem a lembras mais. Pode ter ficado apenas em minha memória, em minha sensação, meus sentimentos. Talvez tenhas vivido outras noites, outros momentos, outros verões. “Ternuras de luar, a brisa a murmurar sua canção. Tudo tem suave encanto, quando a noite vem”. Nem percebes perdida no tempo, que as brumas da noite não são as mesmas que vivíamos, cujos encantos jamais seriam compartilhados por outros. “A noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”. Ou não? Ainda tenho nas mãos a doçura do encontro, o silêncio da noite, a plenitude do amor. Ainda tens? Quem sabe, noutro universo, ainda nossas mãos se toquem e os lábios confirmem nosso sonho.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/oceano-via-láctea-barco-navegando-3605547/Jplenio

domingo, abril 12, 2020

Pandemia


Espio o mar e sinto a espuma das ondas orbitarem por meu cérebro, minha mente, meu espírito.

Outras vezes, passeio por terras distantes, sentindo nos pés e na moleira o calor do sol, o fustigar do vento, o estalar do salto nas calçadas de pedra. Por momentos, o calor abrasador, quase chama, quase incêndio, nas areias escaldantes do deserto, o vento assobiando nos ouvidos, borbulhando no coração e mentes, o reluzir do brilho nos óculos escuros, a dor na fronte, a sobrancelha levantada, a falta de ar.

Por momentos, estou no ar noir da Londres molhada, as correrias às avessas à procura de criminosos, o rio lamacento da noite sem lua, um corpo estirado, boca escancarada, medo na lanterna do celular.

Às vezes, viajo tranquilo nos trens que seguem percursos longos, entre países, embora perceba entre seus passageiros uma certa de desconfiança de que alguma coisa está prestes a acontecer.

Por vezes, ouço uma música no Spotify e meu coração se ilumina e minha mente, meu espírito se rendem à melodia e aos arpejos e meus olhos se esquecem do que vejo.

Depois de tudo, paro e penso. Mas pensar não conforta, nem resolve. Então volto à santa loucura dos livros, das séries, dos filmes, das músicas e tentar viver, pelo menos um pouco, esta realidade, enquanto a pandemia nos enche de notícias, indignação, medo e às vezes, esperança.


Fonte da ilustração:autor John Hain in: www.pixbay.com.

quarta-feira, outubro 16, 2019

O que queria Dóris Fontaine?

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de relance. Homens sedentos por seus segredos mais íntimos, suas intenções ocultas. Nem sabiam que nada era real. Sua vida era plana como o rio que circundava a cidade.

Naquela noite, na boate, alguma coisa violou seus sentidos quando o avistou, ali sentado à beira do palco, olhando-a como uma estrela. Imaginou o homem dos sonhos cujo olhar intuía em seu coração e no sexo dormente uma explosão antagônica: desejo e medo na mesma moeda. Uma fotografia que se projetava em várias dimensões.

Uma bebida desfilava entre as mesas e o suor da garrafa ficava nos dedos, como sequência slow motion. Tudo parecia cinema naquela noite, embora o mundo gritasse por promessas não vindas lá de fora. Soldados que se consideravam célebres numa guerra que nem era nossa. Ele, entretanto, era civil e sua farda não passava de um corpo ilustrado por um sorriso à luz negra que devolvia em flashes um olhar que a comia. Então sorriu, quase feliz, saindo de cena, fugindo do cenário, dublando o que nem ouvia; coração assaltado pelo novo que libertava por segundos o cinza de sua vida.

Soldados riam e gritavam, mencionando Castela, navios, o Getúlio, a ida, na chancela de serem os melhores. Um ou outro, dissimulava um sorriso. Ela percebia. Mas quem era ela? Apenas Dóris Fontana, porque Fontaine à la Joan ninguém conseguia pronunciar. Ela odiava quando a Chamavam de Dóris Fom-fom.

A música seguia seu compasso comezinho de sempre. O maestro engatava um tango num bolero e a vida seguia. Mas hoje, na presença dele, um blues anunciava anjos, como se os timbres e ritmos e tons se confundissem no prazer que a inspirava.

Ela desceu do palco e ele ofereceu um drinque. Nada extraordinário, era quase de praxe o hábito, mas a chamou de Dóris Fontaine, com uma pronúncia quase americana e seu olhar impreciso se perdeu em profusões de imagens que vinham de um passado distante. Talvez da infância, não sabia, mas alguma coisa que a deixava feliz. Quem sabe o carrinho de boneca que empurrava num jardim que não era seu?

Olhou-o e sorriu tão ingênua, que pensou voltar a ser a menina do interior, na virgindade dos sentimentos, mesmo no adiantado da hora. Ele a beijou suave, sem pressa e sem imposição. Nada pediu, nada deixou, nada procurou a não ser a liberdade de serem o que eram.

Sonhava? Ela se perguntava feliz. Beberam, dançaram, riram e ele foi embora, deixando promessas.

No cinema, numa tarde qualquer após a ressaca, Dóris observava o cartaz de “Soberba", com Anne Baxter no topo de uma escada, enquanto Joseph Cotten detinha-se na parte inferior, na espera do encontro. Talvez a história nada tivesse a ver com o que pensava, mas lembrava a sua interpretação sobre o palco. Talvez o seu Joseph Cotten fosse o homem que a visitava todas as noites.

E como nos filmes, ele trazia flores, lia os versos de Raimundo Correia, não importava se falava em pombas, cavalgada de fidalgos ou palavras que mal entendia, juntando moça e éter. O éter que conhecia é o que deixava tudo azul, nítido e forte aos ouvidos e a fazia dormir. Entretanto, o que falava, trazia um tom de primavera que a despertava para um sol que se descolara há tempos de seus ombros. Não mais vento, não mais chuva, não mais frio. Até os sons eram claros e festivos. Tiravam retratos. Passeavam no dia. Iam ao cinema, ao parque, à praia. Na noite tomavam uísque, vodca ou gim. Ela se desmanchava no jazz e revelava as garras no tango. Na madrugada, se amavam. E o mundo girava arriscando um futuro que se instalava em algum lugar.

A turnê porém seguia para resgatar o moral dos aliados na base aérea de Natal. Seu coração dividido. O mundo dividido. Era dinheiro a rodo e futuro promissor.

Então, ele chegou devagar, incendiou seus olhos com desejo e mágoa. Um foco de luz, uma energia que sustentava o ar e seu corpo bailava num mundo que a família sonhara: o de uma mulher direita. Assim diziam, assim queriam.

O desejo de ser rica e talvez casada com um americano ou outro estrangeiro ficava para trás. Ele chorou, ele a abraçou, ele pediu; eles casaram.

Como no filme, ele voltou como o príncipe que resgatou a sua vida e ela se desarmou em devaneios. Deixou a boate, esqueceu a turnê, o elenco, o futuro, deixou a vida. E se sustentou como uma esposa, sem sem música, sem poema, sem palco, sem ribalta, sem brilho, sem romance, sem luz. Só o éter.

segunda-feira, setembro 24, 2018

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara.

Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar.

Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento transparecer. Aos poucos, ia se envolvendo com a conversa e acho, que na verdade, acabava gostando da visita.

Ele era uma pessoa que enchia a casa. Era alegre, divertido e mais do que isso: um eloquente orador, a ponto de ficar horas contando uma história, com fatos muito bem delineados e esclarecidos um a um, como se fosse necessário explicar quase didaticamente os fatos. Era convincente, persuasivo e tinha uma maneira expressiva de falar, que silenciava a plateia e a deixava instigada para o final, como se houvesse sempre uma surpresa a qual não se deveria perder.

Era antes de tudo, um vendedor, acho que um caixeiro-viajante, mas para nossa família era um amigo, não tanto almejado em suas visitas, mas pelo menos aceito quando aparecia, sem nunca avisar. Chegava se desculpando pelo adiantado da hora, pelo tempo que despenderia em nossa casa, e num pedido com muito cuidado e persuasão, acenava para uma provável estadia, que em geral durava aquela noite, mas às vezes, se estendia por dois dias.

As conversas eram sempre animadas e quando a comida estava à mesa, costumava fazer um agradecimento e mais conversa e mais histórias cheias de minúcias e tantas informações que nos prendiam, a ponto de não queremos dormir e ficar horas ouvindo-o. Não era o caso de meus pais, que logo que podiam dispensar-se de sua presença, enveredavam-se para o quarto, lembrando que a noite passaria rápido e teriam um novo dia pela frente.

Ele ainda ficava um pouco, um tanto silencioso, mas logo retomava a contar-nos qualquer coisa que lhe interessasse, de uma maneira bem mais tranquila, a voz doce, o olhar penetrante, embora convencido de que nós também deveríamos dormir. De certo modo, nos dispensava, porque ele também teria tarefas importantes no dia seguinte.

Ele era assim, chegava devagarinho e ia ficando. Não era nosso parente, um amigo de meus pais, talvez conhecido de outras épocas, mas que sempre nos procurava para, como dizia, pousar uma noite e seguir em frente.

Certa vez, trouxe o acordeom e tocou várias músicas, transformando a sala de minha mãe, num pequeno baile. Eles até dançaram, numa participação surpreendente, talvez fosse num fim de semana e não haveria a preocupação com o dia seguinte. Foi uma festa.

Ele era assim, às vezes metódico nas conversas, mas sempre preocupado em agradar os meus pais e a família, por outro lado, tinha seus interesses, como morava longe, lá pela zona rural de São José do Norte, achava por bem ficar em nossa casa e tocar seus negócios. Era uma troca. Quase sempre trazia alegria e assuntos divertidos ou surpreendentes para quem tinha uma cultura diferente, uma maneira diversa de ver a vida e de vivê-la, segundo os seus princípios.

Aos poucos, foi se afastando e com o passar do tempo, nunca mais o vi. Ficou no entanto, a música, o pequeno barco que fizera para minha mãe, as conversas intermináveis, a paciência que ele demonstrava e que às vezes, nos deixava ansiosos, as maneiras solícitas, a educação extrema. Este era Bentinho, um homem que foi chegando devagar e por um longo tempo participou de nossas vidas.

da ilustração: https://pixabay.com/pt/piso-velho-caminho-homem-bacl-rua-1775362/

sexta-feira, abril 21, 2017

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado.

Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos.

Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos.

Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte. Claro que foi noventa e nove por cento de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei correndo, feito o Massa enfrentando a fórmula 1 e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada.

Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono.

Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma frequência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas.

Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados.

Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Como diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Me deixaste enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira? Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades.

No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar para poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranquila e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava.

Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico.

Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira no ar, declarando amor, proclamando "com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa", mas de antemão sabias que "os amigos me esperavam, aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços". Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros e descalabros. Nem que nossos ideais se misturem nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena.

Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar.

Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro para não enlouquecer.

Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão depressa! Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Criei um fake

Criei um fake

Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe).

Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento.

De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios.

O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo.

Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existenciais, para tomar atitudes objetivas em relação aos mais diferentes pontos de vista. Sim, porque ele tinha um ponto de vista.

Ele possuía assertivas bem argumentadas, sabia expor suas ideias com incomparável maestria. Era um verdadeiro gênio na arte de examinar, avaliar, abalizar, confrontar situações, encontrar as mais diversas saídas e intervir despudoradamente nas conclusões de outrem, mostrando outros caminhos, outras maneiras de olhar o mundo. Olhares diferentes não lhe faltavam. Alegria e bem humor também. Era perfeito. Educado. Paciente, paciencioso, parcimonioso, contemporizador, elegante. Um gentleman.

Por um tempo, eu o acompanhei em suas elucubrações, suas ideias diversificadas, seus pontos de vista únicos, que fogem do senso comum e desacomodam as coisas.

Afinal, do alto de seus amplos conhecimentos, de suas vivências e sua atribulada trajetória mundana, espraiava pelas cercanias toscas das redes sociais, as mais amplas doses de novas descobertas, de novas maneiras de situar as lacunas, enchendo-as com experiência, conteúdo e ação.

Eu me acostumei com ele.

Habituei-me com o seu jeito de retribuir o que eu pensava, de compartilhar comigo as descobertas, de sinalizar os mesmos caminhos, de alargar horizontes que ao mesmo tempo nos pareciam tão próximos, tão atingíveis que bastava que esticássemos a mão, aquele dedo indicador, aquele que julga, que aponta, para chegarmos mais e mais perto, do objetivo alardeado, quem sabe da verdade.

Era assim que nos comportávamos quase arrogantes. Um entregando ao outro, de mão beijada, a contribuição precisa no momento certo. Como num jogo de dupla, onde um depende do outro. Jogo de tênis, preciso, tenso, concentrado, silencioso. Só o barulho da raquete, do suspiro da plateia, do grito de vitória.

Uma coisa que brilhava no céu empoeirado e nublado do facebook ou de qualquer outra rede social. Qualquer coisa que disséssemos valia milhões de acessos, por nós, é claro, que não estávamos interessados em frases de Arnaldo Jabor [sic], em comentários sobre bebida, cozinha, aquele churrasquinho íntimo, lavado na caipirinha e nos olhares vermelhos e estrábicos de quem abusou da alegria, coisas que só dizem respeito a quem posta na rede, ou na moto usada, no cachorrinho fazendo xixi no sofá, na sogra esticada na rede, mostrando as coxas disformes, ou nas mensagens melosas, instigando culpas e medos, procuras e respostas de correntes intermináveis.

Não, não era nada disso que procurávamos. Isso era coisa do falecido Orkut.

Mas, de repente, o fake foi sendo conectado por outros amigos, foi sendo abordado em pedidos de amizade, de compartilhamento, e cada vez mais assediado por suas ideias e manifestações impunes.

Todos queriam conhece-lo, saber mais do seu perfil, pesquisar suas fotos, seu mural. Queriam acompanha-lo, segui-lo, encontrar nele o caminho que parecia abrir tantas portas, tantas saídas e tantas maneiras de achar a verdade.

Nem todos, é claro. Não aqueles da caipirinha, das fotos pessoais, da mostra diária de seus afazeres, desde a comida do meio dia até a dor de barriga da tarde. Estes não. Estes estavam interessados em curtir outra coisa e compartilhar consigo a mesmice do dia a dia.

Aquela novidade era pra poucos.

Mas estes poucos iam se multiplicando, o que me deu algum medo. Medo de ser ultrapassado pelo fake.

Os meus amigos já nem me ouviam mais, nem compartilhavam o que eu postava, embora concordassem comigo, ah, só porque eu compartilhava com o fake, concordava com o fake, alimentava-me do fake. Eles queriam fazer o mesmo.

Foi um tempo de muito sofrimento. Uns diziam, porque que ele só compartilha contigo? Por que só concorda contigo? Porque descreve em pormenores, com muito mais argumentos, alicerçado em artigos de especialistas, em leituras adequadas, em conhecimentos científicos ou em suas próprias vivencias o que tu enuncias? Por que não colabora conosco, não compartilha conosco?

Então tive que dividir o fake. Ou melhor, tive que escrever por ele para os amigos também.

Então começara a chover  pedidos para acrescentá-lo em suas redes sociais.

Eles o queriam, eles o amavam.

Não era a mim que seguiam, não era o que eu pensava que valia, era o que ele afirmava, eram as suas atitudes que importavam. Ele era o rei da festa. Eu passei a ser só um coadjuvante.

Então tive uma ideia: decidi eliminar o fake.

Resolvi dar um basta naquelas atitudes arrogantes, naquele modo de pensar vanguardista, pós-moderno, aqueles pontos de vista avançados, aquele jeito ousado de fugir do senso comum.

Eu precisava eliminar o fake. Acabar com ele, acabar com sua fama, seu jeito desinibido de ser, sua intimidade cada vez mais exacerbada junto aos meus amigos, que agora eram mais seus do que meus.

Não havia saída. A única saída era acabar com ele.

Foi o que fiz.

Eliminei o fake.

Voltei a ser eu mesmo. A discutir os mesmos assuntos, a política, a sociedade, os movimentos sociais, a beleza da natureza e a luta por sua conservação, a busca pela igualdade étnica, a luta pelo fim dos preconceitos, a filosofia em suas mais diversas vertentes, a música clássica, a boa musica, o teatro, a literatura, a vida cultural... Também fugi do senso comum, vi e revi valores, avaliei outros caminhos...

Os amigos se afastaram, um que outro postava um “curtir” ou compartilhar alguma foto ou desejar uma boa noite, um bom dia, um boa tarde, um bom fim de semana...

E todos voltaram a mostrar as suas casas bonitas, recém-adquiridas, os seus carros último modelo, as suas motos, os seus casacos de couro, os seus churrasquinhos de fim de semana...

Enfim, a mediocridade que faz parte de suas vidas.

Acho que vou criar o fake novamente. 

sábado, fevereiro 13, 2016

Arnildo na Mostra de Talentos da Biblioteca do HU

Houve a Mostra de Talentos da Biblioteca, no HU. Eu sugeri o seu nome e ele foi convidado. E entre talentos, havia crônicas, poesias, livros, desenhos, música. Ele então chegou devagarinho como é seu jeito, investigando de soslaio o cenário meio caótico. Além das exposições, das visitas e conversas animadas, chegara o momento musical constituído por um grupo de colegas que ousara desafiar os tímpanos e cordas vocais, num emaranhado de sons, ritmos e gêneros. Era um samba do criolo doido. Muito bom, de acordo com a euforia geral que até ensaiou uns passos de dança, nos quais, diga-se de passagem, me incluí. De todo modo, percebi a sua presença, talvez um tanto apreensiva, o que corroborou com minha percepção, pois confessara mais tarde. Afinal, no meio daquela algazarra musical, onde todos cantavam em altos brados e a plateia participava em uníssono, seria de bom tom as suas baladas mais lentas, mais reflexivas e o seu conteúdo pensante? Talvez se perguntasse, vou dar uma de Caetano Veloso e arriscar aqui um Cucurrucucu Paloma para agradar a galera?

Mas, aos poucos, espontaneamente o cenário foi harmonizando e cedendo o seu lugar ao nosso artista convidado. Ele se aproximou, interagiu com as pessoas e lentamente, assumiu o seu lugar. E aquele guri tranquilo dos poemas do "Poetas de Pijamas” foi surgindo e revelando a sensibilidade e a complexidade de seus questionamentos, como na poesia “Canção sem graça que compus para passar o tempo”, em que sua alma de artista se pune por não compor versos simples e rimas fáceis, mas palavras complexas e fonemas impróprios que parecem ocultar a face sublime que os inspiram. Mal sabia ele que a complexidade vai muito além da simples sintaxe dos versos ou da semântica de seu conteúdo. Vai além, através da imaginação, do sonho e sensibilidade, amparados não só na melodia, na letra, mas na interpretação e poder de interação. Muito mais, manifesta-se na vida prenhe de sonho e portanto, a complexidade se dilui na alma dos que sonham. Foi assim que interagiu do seu jeito e foi logo assumindo o seu lugar. Não imaginava ele que o povo que cantava e dançava no resfolegar dos sambas, emudeceria para ouvi-lo, que os tons e matizes nítidos e plangentes, vindo das canções talvez fossem aprrendidas em seu ritmo e conteúdo profundo, encantando-os num mergulho de poesia, onde antes havia apenas exarcebada euforia. Era outro ponto. Outra batida. Outro roçar de corações. Outro tinir dos sentidos. E do grupo heterogêneo, ele transformou o sussuro intimista no encontro. Música é isso. É alegria e reflexão. Gesto e abandono. Desafio e sonho. E Arnildo chegou de mansinho, se acercou de nosso grupo, apresentou com cuidado e atenção o que nosso coração pedia. Certamente, ali se estabeleceu um elo, no qual a troca se deu pela energia, pela partilha da arte pela a amizade. Talvez pontes foram criadas, nas quais as trajetória se cruzem e se enriqueçam.

Arnildo, hoje é nosso formando, nosso médico e tenho certeza, para os que como eu, conviveram com ele, o guri compositor, poeta, cantor e amigo e finalmente, para a mostra cultural da biblioteca, o nosso principal artista.

Biblioteca do HU: Biblioteca do Hospital Universitário, FURG, Rio Grande, RS

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sexta-feira, janeiro 15, 2016

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa

Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos.

Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso.

Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol.

Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano.

Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta.

Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória.

Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para esquecermos a rotina, a afobação dos bancos, das lotéricas, dos shoppings.

Para deixarmos o cidadão comum e sermos especiais. Especiais de um dia de verão.

Ah, as águas de verão. As chuvas de verão. Os amores de verão. O verão que temos em mente, na memória, no passado e no presente.

O verão de nossos dias.

Os dias que virão.

gcgilson4@gmail.com

quinta-feira, setembro 17, 2015

Minha avó e a Apollo 11

Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois.

Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez.

Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto!

E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir.

Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças.

Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tanto tempo depois, velhos e cansados, que diferença fazia? Mas se é o que se devia fazer, que se cumprisse.

Naquela época, o homem estava prestes a ir à lua. Era uma esperança para a humanidade, a certeza de que muitas coisas mudariam, talvez doenças fossem curadas, ou em consequência dessas viagens espaciais, até se descobrisse alguma forma de vida. Não se conhecia muito do assunto, mas tínhamos certeza de que alguma coisa boa viria daquelas viagens interplanetárias. O homem riscando os céus, descobrindo novos mundos, enfrentando o espaço. Havia slogans na TV, na rádio, nos jornais. Todo mundo falava na era espacial.

Eu ficava dividido entre estes dois mundos. O mundo imaginário, com um quê de realidade, bastava que o homem pisasse na lua para tudo ficar real e decisivo. Por outro lado, havia o meu mundo pequeno, real, no qual as noites eram intermináveis, em de algum modo, participava das dificuldades de meus pais, na tentativa de uma melhora de minha avó, na busca por médicos, por remédios especializados ou uma provável hospitalização.

Até que marcaram o dia em que a Apolo 11 rasgaria o céu em direção ao astro tão almejado, no caso o satélite natural da terra.

No meu mundo particular, marcaram a data do casamento. Era uma noite fria de maio. Um maio que se arrastava em suas derradeiras noites, porque nas noites as coisas aconteciam, nas noites em que minha avó gravitava como um pêndulo, numa falta de ar que ia e vinha, sem tempo da oscilação parar. Um maio quase junho parecendo persistir no frio. Um vento que também oscilava lá fora.

O Padre Costa chegou e aproximou-se dos dois, sorrindo. Meu avô o olhava desconfiado, sentado ao lado da cama.

De meus olhos de criança, observei a cena, através de uma janela que dava para uma área lateral. O cenário pronto, os protagonistas aptos e os personagens em volta.

Com a presença do padre, minha avó parecia ter melhorado da falta de ar. Uma tia de olhar intrigado afastava-se do quarto, em direção à cozinha. Não acreditava que nada mudasse. Para ela, tudo não passava de crendices. Minha mãe nada argumentava. Ela sabia que a esperança era quase nula, mas por que não levá-los ao encontro com o sacramento, por que morrerem sem esta oportunidade?(No fundo, era o que pensava).

O padre realizou a cerimônia. Eles, sentados e encostados na cabeceira da cama. O ritual consolidado. Cumprimentos. Sorrisos.

Quando o padre foi embora, houve um certo alívio para a tia descrente e parece que tudo se aquietou.

O maio terminou. Junho chegou rápido e foi um dos meses mais frios do ano.

Em 20 de julho de 1969, o homem pisou na lua pela primeira vez. Minha avó ainda resistiu um tempo, até para descrer daquela façanha. E numa noite de julho, dois anos depois, ela também se foi. Foi uma noite fria, tão fria quanto àquela.

O dia? Foi cinzento.

sábado, setembro 12, 2015

As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com raríssimas excessões. As crianças, na verdade, nem pensam nisso. Elas assimilam esta situação, bem como os adultos em geral, que procuram nas páginas de seus jornais locais, notícias e fofocas de celebridades das grandes emissoras do centro do País, sem contar os sites que as popularizam e transformam em celebridades, pessoas que tem muito pouco ou nada a oferecer em termos de arte e cultura.

Mas, antigamente, muito antigamente, pelos idos dos 60 e 70, as coisas eram um pouco diferentes. A cultura regional era diversificada e havia programas regionais nas rádios locais e estaduais com muita audiência. A própria tv da capital tinha a sua programação regional nos horários nobres. A TV Gaúcha, por exemplo tinha uma programação de shows depois da novela das oito (novela que não era apenas da Globo, mas de outras emissoras, como a Excelsior, até se formar a sinistra rede nacional, onde se perdeu a criatividade regional e o povo brasileiro se padronizou conforme a ideologia doutrinária da emissora). Aliás, a TV Excelsior é um capítulo à parte na história da TV brasileira, pois foi banida do cenário televisivo porque seus administradores se opunham à ditadura. Mas isto, pode ser tema de outra crônica. Outras emissoras, como a TV Piratini, produzia peças teatrais com atores locais e shows aos sábados e domingos em horários que hoje são preenchidos pela programação das grandes redes, incluindo os programas religiosos aviltantes, uma troca fabulosa de benefícios financeiros.

Voltando à TV Piratini, que foi pioneira no Rio Grande do Sul, nos anos 60, ela apresentava uma programação regional extensa, incluindo o Repórter Esso, que era transitido em Porto Alegre por Ênio Rockenbach. Também havia o programa sobre futebol, chamado em "Mangas de Camisa”. Na culinária, o programa de Mimi Moro, além de outros programas populares, como o ‘Clube do Guri”, "TV Samba", com Sayão Lobado, "Grande Show Wallig", um programa realizado ao vivo, nos domingos, com astros da música local e até internacional, acompanhados de uma orquestra.
Na década de 70, havia o programa feminino "Elas por elas”, apresentado de segunda à sexta às tardes, cuja abertura trazia o tema “Un homme et une femme” de Paul Mauriat, do filme com o mesmo título. . Aliado à programação regional, havia a programação nacional através da TV Tupi. Por outro lado, a TV Gaúcha (atual RBS), trazia atrações ao vivo, como o Show do Gordo, com Ivan de Castro, GR show, com Glênio Reis, o show de luta livre, aos domingos, o programa Cidades frente a frente, na qual Rio Grande concorreu com Canoas e muitos outros programas. Na Tv Difusora (atual Band), entre outros, se destacava o "Programa Júlio Rosemberg", com atrações locais e nacionais, “bem como alguns programas infantis, como o "Recreio", apresentado pela Tia Bita e o menino Fabiano ” e mais tarde, o Carrossel Bandeirantes, apresentado pelo mágico Tio Tony. À noite, um programa de reportagens, chamado Camera 10 e ao meio-dia, um programa que ficou muito conhecido, chamado Portovisão que concorria diretamente com o Jornal do Almoço da TV Gaúcha.

Embora houvesse muita participação popular, as rádios locais também tinham a sua programação bem estruturada e com sucesso, inclusive oferencendo dramaturgia, que na época, era ao vivo. Na Rádio Minuano, havia uma peça teatral apresentada aos domingos, que se destacava na programação e os atores eram rio-grandinos. Havia programas de auditório, com calouros, nos quais se apresentavam muitos cantores da cidade e outros até seguiam em frente na carreira. Na rádio Cultura Riograndina, um dos seus maiores sucessos era o “Cafezinho telefone”, no qual fazendo juz ao título, a comunidade interagia pelo telefone, solicitando músicas. A característica músical, como se dizia na época, a música que identificava a abertura do programa era “”Os milionários”, dos Incríveis. Era um programa no qual o apresentador conversava tranquilamente com os ouvintes, que solicitavam músicas e entre uma e outra, ele fazia os anúncios de praxe, os ditos reclames (propagandas) e comentava curiosidades relacionadas à música ou alguma notícia. Também havia um programa muito ouvido pela comunidade lusitana, cuja pauta era de músicas portuguesas, principalmente o fado, com muitos comentários do apresentador que também falava com sotaque. Outro programa tradicional e muito ouvido no interior do Município era o “Alô Zona Sul”, que informava as notícias através de anúncios pagos pelos ouvintes, como convites para missas, enterros, casamentos, etc.

Além disso, havia a programação esportiva das duas rádios locais da época, que tinha grande força na região. Tudo aos poucos foi se modificando, a partir das primícias oriundas das programações nacionais, seja por influência dos patrocinadores, seja pela falta de audiência local, o que obrigava aos programadores trazer as novidades dos grandes centros. De todo modo, as rádios locais sempre pautaram pelo jornalismo durante todo o dia e pela programação musical, bem como o jornalismo esportivo, especialmente, o relacionado ao futebol. Entretanto, percebe-se, que apesar dos esforços de muitos produtores de rádio e jornalistas envolvidos nas transmissões, há uma decadência gritante, em virtude das inúmeras mídias que atualmente se tem em mãos, mas principalmente, pela fuga indiscrimida que ocorreu a partir do final da década de 70 para a grande mídia nacional, que monopolizou toda a programação das emissoras, tanto de rádio, quanto tv, seja no fator econômico e mercadológico, seja no fator de supremacia da cultura da região central do país em detrimento das culturas locais. O mundo foi mudando e até esta cultura está debilitada, porque agora, há muito mais oportunidades de acesso, a partir de paradigmas internacionais, com a internet e as tvs pagas.

Mas, voltando ao passado, sabia-se o quanto eram importantes as rádios para as crianças da época, talvez não propriamente pela programação exibida, mas pelo fato de acompanharem diariamente com os pais, de uma forma ou de outra, mesmo envolvidos em outras atividades. Em consequência, estabeleciam ao rádio uma dimensão, que os tornava participante de suas vidas, o que para os dias atuais, seria um absurdo. Lembro de uma colega de escola que ao passar pela Cultura Riograndina, na Silva Paes, dizia ter curiosidade em subir as escadas para encontrar algum cantor ou artista da rádio. Era uma ilusão infantil, quase inconcebível, mas o sonho só foi abalado, quando ela precisou pagar um aviso para o programa do meio-dia, em virtude do falecimento de sua avó. Subiu rapidamente as escadas e se deparou com um guichê vazio, onde uma presumível secretária apareceria a qualquer momento. Próximo à parede, um sofá antigo, surrado. Alguns homens conversavam nos bastidores, sendo que se ouvia a voz de um dos locutores famosos e as conversas desandavam para o mais banal e simplório do cotidiano. Quando a secretária chegou, pediu o tradicional anúncio, feito à mão para datilografar em sua escrivaninha. Cobrou e dispensou minha amiga com a indiferença dos que estão cumprindo uma tarefa rotineira e desgastante. Minha amiga até olhou para trás, na esperança de assistir uma conversa mais alvissareira, com vozes impostadas e conversas inteligentes. Quem sabe um cenário luminoso, onde houvesse pessoas discutindo os grande anseios da humanidade, a chegada do homem à lua ou a nulidade do processo civilizatório? Nada disso acontecia. Não havia glamour, nem elegância, muito menos alguma deferência aos visitantes. O sonho acabara. Como na vida virtual de hoje, o sonho só se concretizava ali, pertinho do alto-falante, a cabeça próxima ao rádio, ouvindo aquelas vozes aveludadas e temas românticos ou intelectualizados. Mas assim era a vida. Talvez com o tempo, ela tenha entendido, que eles eram tão iguais quanto ela, gente do povo, gente que sonha também, que tem seus ídolos e suas paixões, seus aborrecimentos, suas iras, suas esperanças. Que bom que as pessoas percebessem nos dias atuais, que as celebridades e os atores eloquentes em suas falas são tão iguais ou piores que todos nós. Em geral, os espectadores são semelhantes àquela menina dos anos 70 e vêem nos ídolos dos dias de hoje, apenas as qualidades que enxergam. O personagem criado para vender discos, shows, fazer sucesso em novelas, teatro, etc. O estereótipo do homem. O que todos veem, mas que na realidade, na sua intimidade, somente o próprio conhece. Mas assim era a rádio e a TV. E assim a vida segue até hoje. Só mudaram os formatos. O mundo gira igual. E as ilusões… bem, estas, talvez mais pueris.

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