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Mostrando postagens com o rótulo silêncio

A tormenta

O silêncio dos passos na casa. O silêncio das vozes, das falas, dos risos. O silêncio das ondas, dos mares, dos pássaros. O silêncio das corujas na areia fria das dunas. O silencio dos ventos. Por que tudo é silêncio, quando o meu coração grita profundo, como a tormenta? Talvez porque as flores que vi, já não migram pelos mesmos caminhos, seus pólens não mais transitam entre os canteiros, e suas pelugens brancas não adornam meus ombros. Quisera ouvir mais vozes, sentir mais aromas, perceber novos avanços, alcançar outras conquistas. Jamais ouvir o ribombar dos mísseis, mesmo que sejam apenas ecos que repercutem como lamentos em meus ouvidos. Quisera ter a boca seca por gritar, usar a revolta dos oprimidos para bradar as falas mudas dos que morrem nos escombros, como animais submersos na poeira das tragédias. Quisera ser ouvido. Mas o silêncio me impede de falar. O silêncio dos que suportam as dores alheias e subornam a realidade. A dor que carregam é sempre mais pesada do que a

Não posso calar

Como falar dos dias tranquilos e ensolarados do outono, das tarde agradáveis e noites frias. Como falar das folhas amarelando pátios, calçadas e ruas? Como falar das aves que se apropriam dos espaços agora um tanto vazios e se mostram encantadas e encantando na sua beleza natural e avidez de liberdade e alimento? Como falar do vento que cria e recria dunas, que as destrói e reconstrói, que as troca de lugar e potencializa caminhos, às vezes mais arenosos, às vezes mais úmidos pela água do mar. Como falar das pequenas flores que se erguem submissas ao vento, calmas entre as depressões ali mesmo nos cômoros quase ondulantes? Como falar das ondas do mar, que se ajustam ao entardecer conservando vagas platinadas, quase translúcidas num avantajado azul? Como falar das gaivotas que riscam o céu, tão próximo ao mar que quase o tocamos, esticando o braço, esperando o pousar entre o céu e a mão nas garras molhadas e o bico salgado da pesca habitual. Como falar da lua que surge lenta e cordial

Mudez

Fico calado. Não tenho o que dizer. O silêncio, às vezes, é uma benção. Pelo menos para os que dividem, não argumentam, nem ouvem. Mas ficar calado, não impede a ansiedade e a frustração. Estas aumentam, devoram-nos e num círculo vicioso, nos fazem calar ainda mais, embora nosso coração grite de angústia e dor. Há tanto o que dizer! Mas quem há de ouvir? Quem se interessa? Há tanto a pedir, há tanto a lutar! Mas a luta parece inglória. Perdemos sempre. As ondas virulentas se sucedem, tão fortes e resistentes quanto o ódio. Nada importa. Não importa que nossos irmãos morram, agoniados, sem ar, sem força, como animais desamparados ao relento. Não importa, que muitos passem fome, e se espalhem pelas favelas como moscas contagiosas, onde não lhes é permitido qualquer brecha de vida ou esperança. Não importa a morte porque ninguém é culpado, ou melhor, todos são, com exceção do governo. Este que lidera com intolerância e ódio genocida a uma legião de “homens de bem”, parece estar muito

O topo da montanha

Nem lembro como cheguei ao topo daquele morro, provavelmente na curiosidade inata de um adolescente. O mundo corria devagar lá embaixo, as borboletas sobrevoavam alto e eu tinha a impressão de que somente o som dos pássaros se ouvia. Acho que era verdade. Os sons eram quase que coordenados, havia tons mais fortes, mais agudos, mais graves e tons que sobreviviam ao silêncio e às distâncias fazendo eco. Devia ser uma tarde de dia claro, muito claro, porque o anoitecer demorara muito, se bem que era verão. Olhava para baixo, para aquelas montanhas moduladas em azul esverdeado, ou ao contrário. Lembro sim, como cheguei, só não sei para onde ia. Eu queria dar uma volta pela pequena cidade, ao passar a metade do caminho para casa, uns trezentos quilômetros. É, estava muito longe de casa e não me podia furtar àquele momento. Na alma, uma melancolia rara. Rara naquele ambiente, produzido por aquele cenário. Porque via de regra, eu tinha esses devaneios. A dor parecia me acompanhar, mesmo

A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão. Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 7º CAPÍTULO

Júlio Ramirez era um detetive aposentado, como dissera à Rosa. Na verdade, nunca fora um profissional muito dedicado, muito menos com grandes vitórias no currículo, mas em alguns casos, fora especialmente primoroso. Às vezes, se dedicava até com paixão, mas precisava surgir um fato muito envolvente para levá-lo a este estado de eficiência. Naquela noite, estava conversando num boteco da cidade, com um velho amigo, quando surgiu o assunto do assassinato de uma moça da região. Era mais um crime na pequena cidade, só que agora parece que estavam interessados em falar sobre o assunto. Tratava-se da filha do farmacêutico Lucas, velho conhecido nas redondezas. Júlio, na verdade, queria tomar a sua cachaça batizada e preocupar-se com outras coisas mais interessantes, principalmente agora que estava sozinho, e cansara de não ter com quem conversar. Sabia, no entanto, que era um indício de que devia retomar a sua profissão, afinal, viera à cidade por um pedido que parecia ser de um

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa. Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem. Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia. Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio. No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa. Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro. Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes. Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso