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A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão.

Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo próximo a ela se rasgou e alguns tomates e maçãs se espalharam por debaixo do banco.

Maria Emília suspirou desiludida. Como pegar as frutas que se escorregavam para lá e cá. Um rapaz puxou algumas com os pés e ela conseguiu segurá-las, dobrando a barriga sobre os joelhos e sentindo uma fisgada nas costas. Ficou a metade perdida, mas ela sorriu agradecida.

No final da linha, ela desceu e caminhou mais algumas quadras com o que restara das compras. Sentia-se mal no sol intenso. O suor aumentava e agora descia até o peito, talvez percorresse todo o corpo se demorasse mais um pouco. Uma leve tontura e um tremor nas pernas. Maria Emília não queria parar, precisava chegar em casa e atender os filhos, mas percebia que a dificuldade de caminhar aumentava. Então, sentou-se numa pedra que ficava na esquina, de onde avistava uma casa abandonada, um pequeno bar mais adiante e um terreno baldio. Não faltava muito para chegar em casa e logo que pudesse, levantaria e faria o trajeto o mais rápido possível. Entretanto, a tremedeira aumentava e Maria Emília não tinha coragem de confessar a si mesma de que não voltaria para casa. Estava com muito medo e ninguém passava por ali, naquele calor insuportável. Na hora do meio-dia, todos fugiam da rua e se refugiavam nas casas para o almoço e ficar longe do sol o maior tempo possível.

Maria Emília rezou. Precisava de forças para chegar à casa e ver os filhos. Uma dor no peito a deixava angustiada. Tinha medo de morrer ali, no meio daquele vazio ensolarado, enquanto as pessoas preocupavam-se com suas vidas. E o que significava a vida dela, a não ser uma pequena centelha, quase faísca, quase brasa morta no meio de um fogaréu imenso. Tentou olhar para cima, mas a luz do sol não a deixava ver nada, ao contrário, obrigava-a a fechar os olhos e concentrar-se em si mesma, olhando-se internamente, como quem examina um cadáver. As vísceras, as veias, o cérebro. Tinha a impressão que se observava por dentro, como se fosse uma entidade alheia, vendo o próprio sangue em golfadas pela boca, ao mesmo tempo que sentia um gosto insuportável. No entanto, nada mais acontecia, a não ser um silêncio quieto e um apagamento natural.

Quando acordou, achou que tudo ocorrera há muito tempo e que talvez houvesse morrido e voltado à vida, assim, do nada. Sentia-se um pouco melhor e pôde mexer-se. A dureza da pedra e suas reentrâncias doíam-lhe as carnes, esfolava as pernas naquela aspereza e as mãos estavam crispadas, segurando alguma coisa que não sabia muito bem do que se tratava. Conseguiu dobrar-se com esforço e perceber que segurava um livro, um livro de capa branca e se pudesse abri-lo, veria que em nenhuma página havia algum registro, alguma expressão escrita ou desenho, ou qualquer outra ilustração. Era um livro de capa branca e em branco. Deixou-o cair no chão e virou o corpo um pouco para a esquerda, outra vez para a direita, tentando procurar as sacolas e a bolsa que carregava com os seus documentos e alguns trocados que sobrara da passagem do ônibus. Mas somente avistara o título do livro: Constituição. Esqueceu-o, queria apenas a sua bolsa, os seus documentos, as suas sacolas. Mas elas não estavam ali. Maria Emília se desesperou e quis gritar, pedir por socorro, mas a voz parecia sumir-se num túnel tão grande que as ondas sonoras definhavam pelo meio do caminho.

Maria Emília começou a chorar e achou que não havia saída, que nunca mais voltaria para casa, mesmo que estivesse tão perto, pois jamais sairia daquela pedra e que as coisas morreriam com ela, o seu passado, a sua memória, a sua luta, a sua esperança.

Maria Emília não tinha esperanças. Entretanto, por um momento, pensou que tudo mudaria quando as horas passassem. Quando os homens e mulheres de bem voltassem para seus trabalhos, saíssem das casas abrigadas e encarassem o sol escaldante do início da tarde. Então a veriam ali e certamente a ajudariam a voltar. Quem sabe a auxiliassem com algum dinheiro, com algum alimento, já que não havia nada em casa, nem mesmo o leite para as crianças. Mas eles não apareciam nunca como se houvessem feito um pacto para ficar em casa e se esconderem de um clima adverso e perigoso.

Será que ninguém a veria por ali? Será que ficaria eternamente presa àquela pedra?

Aos poucos, Maria Emília percebeu que a pedra era o único apoio que possuía. Ela era muda, firme e passiva. Era o único recurso que não a auxiliava em nada. Tudo parecia parado, descuidado e omisso com pessoas como ela. A pedra, entretanto parecia responder às suas dúvidas e de repente, começou a crescer, a aumentar de tamanho empurrando-a para os lados, ao mesmo tempo em que ela se agarrava com todas as suas forças para não cair, porque ao mesmo tempo em que escorregava, subia para o topo e ficava cada vez mais longe do chão. A pedra inchou tanto, que ela se assemelhava a uma formiga na laranja, porém havia uma vantagem: lá do alto, podia por fim, avistar o povo que se aproximava. De repente, eles saíam de casa. Talvez tivessem um motivo forte para irem para a rua, quem sabe protestarem contra aquela situação absurda em que a apatia tomava o espírito dos brasileiros.

Algumas mulheres se aproximavam como se estivessem num velório, chorosas e sem atitude, desordenadas, parecendo zumbis. Algumas traziam pequenas bolsas, só com documentos para comprovarem quem eram. Nas mãos, visores coloridos se conectando. Os homens carregavam mochilas às costas, também usavam celulares e aparentavam sorrisos mornos, provavelmente fruto de mensagens lúdicas. Entretanto, pareciam mais apáticos e sentiam-se mutilados nos pensamentos, desprovidos de expectativa de alguma mudança da realidade. Talvez nem quisessem isso ou nem se importassem. Talvez soubessem que o Brasil não tinha jeito.

Maria Emília percebeu que eles nem olhavam para ela, talvez nem a vissem lá debaixo e embora gritasse, pedindo ajuda, não a ouviam. Mas ela percebeu que, um pouco afastado, um rapaz de capuz se aproximava, embora dando guinadas e fumando um cachimbo estranho. Quando chegou mais perto, ela pode ver que ele carregava as suas sacolas e sua bolsa, logo atirando-as no terreno baldio. Eram apenas sacolas rasgadas e vazias, um que outro objeto que ela não distinguia bem, talvez um relógio, mas ela não tinha nenhum relógio, o que seria aquilo? Havia um brilho forte no tal objeto, como se fosse uma arma, sim, talvez uma faca, um punhal. Percebia o amarelo dos ovos se esparramando pela grama seca e algumas frutas que ainda restavam se misturavam ao lixo do terreno. E seu dinheiro e seus documentos, o que ele fizera com eles? Gritou em desespero para que a ouvisse. E ele ouviu. Foi o único que a viu sobre a pedra gigante e parecia divertir-se muito com a visão. Ria sem parar e dava pequenos gritos, como uivos até jogar-se ao chão e ficar desacordado.

Maria Emília estava desolada. Nunca mais a encontrariam, nem seus filhos, nem seus amigos, nem mesmo os parentes. Para eles, ela estaria morta e embora aparecessem por ali, jamais a veriam porque havia um pedra gigante em que se apoiaria para toda a vida. Seu destino, por certo, era virar pedra, fazer parte daquele aglomerado de minerais e transformar-se numa figura invisível, um camaleão disfarçado em pedra, para sempre.

Foi quando percebeu que dois policiais se aproximavam. Ela nem gritou, nem falou nada, pois já não tinha esperança de que a ouvissem. No entanto, viu quando pegaram o menino, deram-lhe algumas bordoadas, uns pontapés, golpearam a cabeça com o cassetete e o levaram para o camburão. Depois, viraram-se para a esquina, aquela onde ficava mais perto de sua casa. Tiraram umas faixas do carro, com algumas expressões em letras garrafais. Esticaram-nas de uma árvore à outra ou as prenderam em postes para que ficassem bem à vista.

Maria Emília conseguiu ler alguma coisa, que a deixou mais perturbada ainda. Não era muito boa em matemática, mas a leitura sempre a agradou e por isso, lia bastante, tudo que aparecia, desde textos escolares até algum romance que passava por suas mãos.

As frases eram firmes, exatas quase matemática.

“Só um governo. Só uma justiça. Não à democracia.”

Maria Emília sentiu que a pedra se alongou mais ainda, como um obstáculo que a empurrava para o topo, para o fim do nada. Como pedir ajuda, como sair dali. Então percebeu que pessoas como ela estavam fadadas a serem esmagadas pela pedra e que ela giraria até que ela despencasse sem vida. Então, respirou fundo e se acalmou. Afinal, não havia justiça mesmo, não havia nem democracia. O país estava no fundo do poço.

Maria Emília, porém ainda teve um resquício de esperança quando viu algumas crianças se aproximarem e teve um choro convulso ao perceber que seus filhos também corriam pelas ruas. Só desanimou, quando os viu servirem-se de restos de comida, jogadas nas esquinas, talvez para os cães. Sentiu uma dor profunda no peito, como um golpe de punhal dilacerando as carnes, as vísceras, o cérebro, o coração e escorregou da pedra.

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