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Mostrando postagens com o rótulo medo

Como um androide

Ando pela cidade como um estrangeiro num país estranho e hostil. A passos largos, enfrento os caminhos que sempre me foram tão familiares. Sentia-me em casa. Andava pelas ruas como uma extensão de meu quintal. As pessoas eram apenas pessoas conhecidas ou não, um público que se avantajava na direção do centro ou dos bairros. Quase não percebia seus rostos, porque me era natural observar assim, preocupado com meus afazeres. Algumas cumprimentava, quando considerava conhecidas, outras me aproximava porque eram amigos que fortuitamente passavam por mim. Ou era aquele vizinho, quando morava em determinada rua ou mesmo o dono do boteco da esquina, ao qual eu conhecia há muito tempo. Agora, já não vejo estas pessoas, paira uma ameaça no ar, um medo que se agiganta e que me deixa inerte. Um pânico do vírus que assola nosso país e o planeta inteiro. Parece que aqui, ele fez moradia não tão temporária e insiste em se replicar como um androide de um filme sci-fi . Também assolam os pensamen

Pandemia

Espio o mar e sinto a espuma das ondas orbitarem por meu cérebro, minha mente, meu espírito. Outras vezes, passeio por terras distantes, sentindo nos pés e na moleira o calor do sol, o fustigar do vento, o estalar do salto nas calçadas de pedra. Por momentos, o calor abrasador, quase chama, quase incêndio, nas areias escaldantes do deserto, o vento assobiando nos ouvidos, borbulhando no coração e mentes, o reluzir do brilho nos óculos escuros, a dor na fronte, a sobrancelha levantada, a falta de ar. Por momentos, estou no ar noir da Londres molhada, as correrias às avessas à procura de criminosos, o rio lamacento da noite sem lua, um corpo estirado, boca escancarada, medo na lanterna do celular. Às vezes, viajo tranquilo nos trens que seguem percursos longos, entre países, embora perceba entre seus passageiros uma certa de desconfiança de que alguma coisa está prestes a acontecer. Por vezes, ouço uma música no Spotify e meu coração se ilumina e minha mente, meu espírito

Déjà vu

Quando passava pela rua, me dei conta que terminava num beco escuro. A escuridão se afunilava no medo, na falta de perícia em enfrentar o desconhecido, na exigência de encontrar uma saída. Mas qual! Cada vez, o perigo absurdo e sinistro avançava, como numa névoa de filme de terror. Um uivo aqui, um ecoado lá. A impressão que tinha é que uma coruja cantava ao longe. Não que sugerisse mau agouro, o agouro já era tão presente, que nem valia à pena exortar estes medos menores. Mas precisava seguir o caminho e este parecia mais longo, embora a bifurcação na esquina se escondesse sob uma árvore, ou o que parecia ser árvore naquela escuridão de sombras e pequenos flashes nas calçadas. Na verdade, as calçadas se diluíam em uma terra lamacenta que se insurgia sob meus pés afundados numa passagem visguenta, como se um verme se apoderasse deles e os corroesse aos poucos, devagar, para sentir o gozo da tortura. Mesmo assim, afundando um pé e retirando o outro, afastei-me aos poucos, do que me p

A primavera e o ódio

Talvez eu devesse falar na primavera, afinal ela está aí, já brotando flores e enfeitando árvores, apesar do frio que ainda persiste em acompanhá-la em seus dias. Talvez eu devesse caminhar a esmo, de preferência pelas margens da laguna e observar a mudança gradativa dos ventos, das nuvens, dos novos cheiros e brisas. Talvez devesse espiar as escolas, os adolescentes que na primavera, parecem explodir em sentimentos e lutas internas, como frutos, sementes e flores ressurgindo do nada, inspirados nos raios do sol e nos sussurros dos entardeceres. Talvez eu devesse estudar novos rumos e pesquisar os trabalhadores que voltam às pressas para casa, envolvidos nas compras eventuais, nas contas a pagar, nas obrigações mensais. Talvez contem o dinheiro comezinho que lhes sobre, o tumulto do ônibus, as horas perdidas no trânsito, as horas inglórias da espera. Trabalhadores que perdem os seus direitos dia a dia, que quase sucumbem aos desmandos de um governo congelado numa depredação d

O COVIL

Saímos meio às escondidas, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço. Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem. Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar. Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade. Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada. Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro

O medo intrínseco

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade. O bebê baleado no útero da mãe, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro? Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não ser atingidos. Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e t

Momentos e encontros

Há momentos em que a multidão restringe os movimentos, os passos, os suspiros e outros em que a solidão prevalece em espaços vazios, produzindo estranhamentos em nossos mundos. Há momentos de abastança, festas eloquentes e climas de euforia. Outros de espanto, pobreza e medo. Há momentos de certeza, outros desconfiança. Há momentos de temperança e tolerância. Outros em guerra lutando por paz. Há momentos de entusiasmo, criatividade e procuras, outros de trabalho e suor. Há momentos de prazer, de excessos e devaneios, outros de reflexões e dúvidas. Há momentos que se cruzam, que se interpõem e se unem, ou morrem ou se recriam. Por isso pergunta-se: por que lá fora o frio, a dor, o medo, a angústia, o sofrimento? Quem sabe aqui, também, hospitais a céu aberto, onde as feridas não curam e os algozes as aceleram. A vida, às vezes, ecoa sonora e musical, lá fora. E aqui, retumba surdo o som que some e não se assume. Quem sou eu nestes encontros? Quem som

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial. CAPÍTULO 12 Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog. Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/ Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava. Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência. Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado. Mergulhei a mão,

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXI - PENÚLTIMO

A SEGUIR (17/03/2016) O 21º CAPÍTULO DO NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA". ESTE É O PENÚLTIMO CAPÍTULO. NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA, DIA 22/03/2016, APRESENTAREMOS O ÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSA HISTÓRIA. Capítulo 21 Fonte da ilustração: Blog "Vientos del Brasil"http://blogs.elpais.com/vientos-de-brasil/2013/10/ de Juan Arias Não se pode afirmar que tudo transcorre na rotina, que um dia sobrepõe ao outro naturalmente, sem que nada de novo aconteça. Sempre que olho na janela, ainda vejo resquícios do dia anterior, ou das noites que passaram insólitas sem me trazer nada de bom, as não ser as dores habituais nas costas, na alma, no coração. Talvez Susana seja condenada, não por ter realizado a eutanásia, mas por homicídio, tudo porque uma testemunha a viu abreviar a vida do pai. Estes casos não chegam à justiça, porque o médico age a pedido do doente ou dos seus parentes, se incapacitado para tomar alguma decisão sobre a sua vida. Talvez este se

O DOCE BORDADO AZUL - 21º CAPÍTULO

Hoje é terça-feira. Nosso desbragado folhetim continua com o 21º capítulo. Na próxima quinta, continuamos na sequência. Espero que gostem! Faltam 9 capítulos para o fim! Capítulo XXI A briga e o reencontro Laura estava curiosa para saber detalhes do encontro de Lúcia com Bárbara, mas tinha lá suas reservas. Temia que tudo viesse à tona e devesse dar explicações à filha. Não era do seu feitio ficar na berlinda, justificar-se, como se deparasse com um tribunal. A curiosidade, porém era imensa. Percebera que Lúcia não se afastara um só segundo do quarto, desde que chegara. Via pela abertura debaixo da porta, uma luz que incidia pelo corredor, além de pequenos barulhos, como se carregasse objetos, fizesse as malas. Esperaria ali, na sua janela. Por certo, logo Lúcia lhe traria as novidades que tanto ansiava. Deixou-se ficar assim, quieta, assistindo um programa qualquer de tv, sem prestar a mínima atenção. Tomava de vez em quando um copo de refrigerante e mexia no controle co

O DOCE BORDADO AZUL - 19º CAPÍTULO

Hoje é terça-feira. Nosso folhetim continua, hoje apresentando o capítulo 19. Na quinta, prosseguirá em sequência. Capítulo XIX A surpresa de Bárbara Bárbara desceu do táxi e caminhou pela rua estreita, procurando num pedaço de papel o endereço correto. Percebeu que o número não coincidia com o do prédio. Não tinha muita certeza de que estava no local certo, mas precisava seguir em frente, mesmo que para isso, fosse necessário caminhar, bater em portas, fazer perguntas. Por um momento, teve a sensação que estava nas ruas de Minsk, nas vilas densamente povoadas dos povos oriundos da Rússia e de imigrantes, como ela, que constituíam uma população tão eclética. Então, estremeceu. As mãos ficaram úmidas, os dedos engendraram pequenos movimentos dentro do bolso do casaco, nervosos. Precisava reagir, tentava convencer-se. Não era um tempo de boas lembranças, mas não podia ficar remoendo o passado, a tragédia que havia sido a sua vida. Também não sabia bem o motivo de procurar u

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 6º E 7º (em sequência)

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir apresentaremos dois capítulos, o 6º e o 7º capítulo. Capítulo VI O telefonema Lúcia acordou de madrugada, envolta em pesadelos estranhos, misturando imagens do dia, a visita de Madalena, o enterro de Irmã Dolores, a carta, a mãe na cirurgia, o cheiro de hospital, numa mistura de comida e medicamento. O coração pulsava descompassado e ela desconfiava que mais dia menos dia, ele lhe prepararia uma surpresa, tal era o desregramento de sua batida. Levantou, meio tonta, talvez pelos comprimidos de tarja preta ou pelo susto dos pesadelos. Afastou-se do quarto, dirigindo-se à cozinha e dando na passagem, uma espiada para a rua. Sentia frio e medo. Medo de ser assaltada, naquela casa, solitária, como estava, sem a presença da mãe. Se ao menos pudesse falar com os vizinhos, mas os muros eram tão altos e as janelas cheias de grades e ferrolhos imensos, jamais abertas. Ainda