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segunda-feira, maio 28, 2018

Conversando sobre a crônica “Tênue limite”

A Revolução Farroupilha sempre foi contada pelos historiadores oficialistas e pela mídia atual, pela ótica dos vencedores, ou seja, dos gaúchos que lutaram com bravura e fidalguia para alcançarem a vitória. Mesmo não havendo vencedores de nenhum dos lados, já que houve um grande acordo que semeou a paz.

Na crônica “Tênue limite”, publicado neste blog, eu procuro dar vida ao outro lado do povo gaúcho, aquele que talvez seja herdeiro dos que apenas lutaram sem serem reconhecidos e para os quais, nem a vitória, muito menos a fortuna prevaleceu.

De todo modo, esclareço que não sou contra a Revolução Farroupilha como a criação de uma mitologia em torno dos homens dos séculos XIX, que lutaram no Rio Grande do Sul, como a honradez, a fidalguia, a virilidade e a valentia. Tudo isso faz parte de nossa tradição e cultura, incorporado em nosso imaginário gaúcho.

Entretanto, não posso ficar alheio à outra parte da história, que foi escondida pelos historiadores oficialistas ( não me refiro aos historiadores atuais, mas aqueles que faziam uma descrição apenas dos fatos considerados históricos e gloriosos para a nossa terra, ou que elaboravam suas pesquisas de acordo com as ordens governamentais). Refiro-me à história dos não tão dignificantes episódios, como as intrigas entre os chefes, os desmandos, os erros estratégicos e a terrível traição de Porongos, quando os negros combatentes ficaram desarmados e entregues à morte.

Acho que é preciso repensar o passado. Acho também que o povo que vive no interior de nosso Rio Grande não possui essa pujança e orgulho para demonstrar um sucesso da Revolução, pois foi na verdade um conflito regional entre grandes estanceiros e o Governo Imperial, não foi uma revolução do povo gaúcho em sua totalidade.

Amo a cultura do Rio Grande, de seu folclore, sua luta em se manter dignos frente às circunstâncias mais inóspitas, mas não posso ficar indiferente a esse povo campeiro que também deve ter orgulho de seus ancestrais e conhecer a sua verdadeira história, não aquela emoldurada pela mídia.

Houve um povo derrotado que não recebeu as benesses da Revolução, mas este povo também faz parte de nossa história e possui a mesma cultura, a mesma fidalguia e valentia dos vencedores.

Acredito que, como dizia o escritor Ricardo Piglia, que “nada pode ser pior para um derrotado do que ler, anos mais tarde, a história contada pelo viés atrofiado dos vencedores.”

Então, segundo o que penso, que foge um pouco do senso comum, que também deve-se falar deste campeiro, deste peão, deste gaúcho do campo que não se situa como um herói e nem conhece a sua história.

Por isso, elaborei a minha crônica, que mostra um tênue limite entre a galhardia e todas as glórias do gaúcho enaltecido pelo poder e sua história humilde. É a este que me refiro. Acho que ele faz parte do nosso Rio Grande.

Ilustração:https://pixabay.com/pt/users/cocoparisienne-127419/

sábado, dezembro 23, 2017

Se o Natal te oferece

Se o Natal te oferece música, luzes e cores, aproveita. Usufrui da alegria e festeja.

Se o Natal te oferece abraços, risos e flores, aproveita. Corresponde à euforia e brilha.

Se o Natal te oferece fé, orações e lembranças do Aniversariante, aproveita. Ameniza os sentimentos, te doa, te alegra e reza.

Se o Natal te oferece passeios, encontros e festas, aproveita. Compartilha com os amigos e parentes as tuas memórias, os teus desejos, os teus caminhos para acertar nos trilhos e urgente, refaz o desfeito, acerta o erro e resgata a história.

Se o Natal te oferecer a mão, a comida, o amor, a bondade, aproveita. Retorna com mais amor, mais amizade, mais bondade e sustenta a mudança que talvez advenha desta passagem para o bem. Vive feliz e despreocupado. Te desembaraça de pensamentos confusos, de medos e cicatrizes. Te livra do mal.

Mas não esquece jamais, dos que ficam lá fora, longe das festas e dos fogos, longe dos amigos, dos parentes, dos vizinhos. Afastados da vida, mortos em seu caminhar obtuso, zumbis. Aqueles invisíveis que parecem passar por nós nas ruas do dia a dia. Lembra deles agora, porque é Natal. Lembra dos que juntam latas no lixo, dos que vivem no lixo, dos que chafurdam nas calçadas, deitados e papelões afugentando-se do frio e da sede, vivendo a morte em vida. Lembra dos que se sentem perdidos, em trajetórias aleatórias, pseudoescolhas sob domínio de drogas, arrebatados dos princípios mais íntimos que os impede de viver. Párias numa terra do nada.

Lembra dos exilados da própria pátria, pois são nada, talvez nem um número que os identifique entre os humanos. Os miseráveis que amplificam a cada dia a desumanidade das celas, provavelmente culpados, mas talvez elos nesta engrenagem suja e hipócrita em que vivemos, na qual a maioria dos que são presos e julgados são negros e pobres.

Lembra dos excluídos pela cor, pela orientação sexual, pela etnia, pela pobreza, por quaisquer preconceitos que desvalorizem o ser humano, dando-lhe uma dimensão aquém para rotulá-los e conformar o coração “bondoso" e afiado do brasileiro.

Lembra dos pacientes em leitos de hospital, dos que sofrem as mazelas dos governos que fingem protelar o orçamento em nome de uma administração financeira falsa ou mal intencionada.

Não reza pelos governos. Reza por ti por que te falta o 13º salário, reza por ti que não tens esperanças.

Não reza por quem bateu panelas numa manifestação seletiva, porque até a corrupção é seletiva, segundo o Juremir Machado da Silva (Correio do Povo). “Uma das mais contundentes expressões do irrealismo brasileiro é dizer que a população não bate panelas contra Michel Temer por estar cansada, desiludida, anestesiada. As panelas não batem porque a corrupção do governo Temer não incomoda tanto quanto incomodava a do PT. No Brasil, até a corrupção é seletiva. Tem corrupção e corrupção. O corrupto chega nas altas instâncias e diz: “Você sabe com que ladrão está falando? E sai voando. Com Temer a turma dos camarotes vai se ajeitar nas poltronas de grife e continuar assistindo ao triste espetáculo da miséria nacional. Que importa a esse pessoal sofisticado se negros patinam na pobreza? Temer é herói nacional para o mercado, que ansiava pela reforma trabalhista, mesmo se ela está produzindo demissões em cascata em alguns setores. Era esse mesmo o objetivo.”

Entretanto, reza e sonha, porque é Natal. Tem esperança e te veste de azul, amarelo, verde, vermelho, cores alegres que manifestem a tua alegria. Mas não te esquece jamais, que o Cristo que vive em nosso coração, para quem é religioso, ou a sensibilidade que está em tua alma, só pode ser apurada e tornar-se plena, se lembrares que lá fora há outros Cristos esquecidos. Revigora teus sentimentos. Alimenta tuas esperanças, mas lembra, hoje os mísseis da indiferença, da covardia, do racismo, do fascismo, da face perversa do poder, da intolerância religiosa arrastam seguidores como um rio bravo e por enquanto, não escolhem os culpados, porque em breve, todos o serão.

Finalizando, citamos o dramaturgo alemão Bertolt Brecht que diz: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”

Feliz Natal!

quarta-feira, agosto 23, 2017

Cinema de rua e sonhos de primavera

Uma noite de primavera. A brisa leve sussurrava em nossas testas suadas. Meu pai vestia paletó azul, meio gasto.

O olhar se perdia ao longe, como se aguardasse o galardão de ouro. O longe que se perdia, na verdade era a tela de parede caiada. Ele parecia mais ansioso do que eu. Sua boca entreaberta sorria.

De repente, fitou-me e ficou sério. Eu é que deveria estar feliz e ter muitas expectativas naquele momento. Seria uma noite e tanto: uma noite só de homens. As mulheres ficaram em casa.

Daqui a pouco, chegaríamos na rua onde seria projetado o filme.

As pessoas se aglomeravam entre vendedores de algodão-doce e pipoca, enquanto atravessávamos ruas de paralelepípedos e trilhos. O caminho habitual agora atingia um ar festivo e uma euforia se rendia a nossas mentes curiosas. Aos poucos, o cenário quase onírico se formava.

Na calçada, paramos sob uma árvore, já apinhada de meninos à espera do espetáculo. Para meu pai, eram apenas meninos de rua, sem disciplina. Ele era assim: um homem que almejava o melhor para nós, a seu modo.

De repente, a música ecoou silenciando o burburinho. Nada havia, porém, que sugerisse uma imagem. Apenas o desejo incontrolável dos espectadores.

Meu pai punha as mãos nos bolsos e olhava o relógio, desconfiado. Dizia alguma coisa, tentando conservar o meu entusiasmo.

O pacote de pipoca acabara. Minha decepção só não fora maior porque, desta vez, irrompera uma imagem na tela, que parecia ocupar toda a plateia que se acotovelava nas paredes das casas.

Num alto-falante, alguém informava que a fita era uma obra-prima da sétima arte, dirigida ao seleto público.

No fundo, me encantei mais pelo espetáculo do cinema, pela preparação da festa, do que pela história.

No final da sessão, houve prêmios para o público e meu pai ganhara uma lata de biscoitos Aymoré.

Ele recebera o prêmio, próximo à tela, ainda iluminada. Eu observava o seu perfil azulado, como um personagem que se deslocava da tela para alcançar a realidade. Ali percebi que a magia do cinema, mesmo de rua, me encantava e me transportava a um mundo novo.

Voltamos em seguida para casa, com a lata de biscoitos na mão e muitos sonhos na cabeça.

terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

domingo, julho 09, 2017

Aplaudam o palhaço!

Dona Marina surgiu esbaforida, prendendo nervosa, o lenço colorido ao pescoço, fugindo do frio e do vento. Entrou na sala e se recompôs rapidamente. Cumprimentou a turma, esclareceu alguns pontos que ficaram vagos da aula anterior e colocou-nos, de sobressalto, o assunto da prova, que seria na semana seguinte.

Eu sentava entre dois colegas mais chegados. À minha volta, principalmente nas cadeiras da frente, as meninas que voltavam os olhos e os narizes vermelhos, cada vez que um de nós fazia qualquer gracinha.

Camilo estava ao meu lado e comentava os gibis que havia trocado no sebo. Luís encantava-se com o torneio feito por Seu Matias, uma espécie de patrono dos meninos, jogadores de várzea que se esforçavam para fazerem bonito nos campinhos de futebol.

Eu estava quieto, recordando as histórias que criava em casa, as quais escrevia e interpretava sozinho, executando a sonoplastia com uma batida na mesa com um biscuit de minha mãe, embalando as vozes em diferentes timbres, para identificar cada personagem. Sempre um primo ou prima me acompanhava. Tinham paciência para ouvir as histórias e pouco davam palpite sobre o desfecho que eu estabelecia. Importava talvez a nossa cumplicidade em criar um cenário só nosso, de fantasia, sonho e satisfação.

Tais como na rádio, com suas novelas melodramáticas, cheias de lágrimas, tiros e assassinos perdoados, assim eram as nossas histórias. Por isso, naquele dia, estava alheio, lembrando de nossos encontros, esperando ansioso que acontecessem, que a aula acabasse, que Dona Marina desse o bom dia fatal e nos deixasse livres, para vivermos os nossos sonhos.

Ela percebera a minha alienação e naquele dia ventoso, parecia mais atenta e perspicaz do que o normal. Perguntou-me o que estava acontecendo comigo, o porquê de não estar prestando atenção à aula e a partir daí, informou-me uma série de medidas relacionadas à prova, inclusive reprimendas para melhorar o meu comportamento.

Não sei porque cargas d`água, não me contive quieto e passei a ironizar tudo o que ela dizia, todas as frases que expressava ou questionamentos que nos fazia pondo em prática a lição.

Lembrava das perguntas e expressões caricatas que as novelas esculpiam em suas histórias e comecei a falar tal como fazia em minhas sessões solitárias ou ao lado de meus primos. A cada explicação, eu respondia com um “não diga!”, ou a cada pergunta, exclamava “Meu Deus!” ou “Cale-se!”.

Os meninos ao meu redor, dobravam-se em risadas hilariantes.

Aquela atmosfera de alegria, me estimulava a ir mais longe. Então, passei a fazer uso da pasta, que era uma pequena mala de couro, com uma alça, semelhante a dos executivos (moda, naquela época), de forma a parecer-se com um acordeão.

Eu nem ligava se ela estava preocupada comigo ou mesmo indignada ao ser interrompida em sua aula. Ao contrário, tudo aquilo me divertia muito, principalmente porque percebia a molecada se divertir imensamente.

Algumas meninas faziam caras e bocas, denunciando censura. Olhavam para a professora, desconfiadas, exigindo com os olhares que ela tomasse uma providência. Outras, mais brejeiras, riam despudoradas, do meu tango imaginário.

De repente, a professora emudeceu. Exigiu com energia, que nos calássemos.

Eu, soltei a pasta devagar, depositando-a aos meus pés, fingindo que nada havia acontecido. Empurrei-a para baixo da cadeira e selecionei algumas páginas do livro de gramática, sinalizando uma provável pesquisa.

Silêncio absoluto.

Ainda de cabeça baixa, ouvi quando Dona Marina citou o meu nome com a voz metálica e o timbre mais nítido que pôde soar em toda a sala.

Simulei qualquer coisa, resgatar a borracha do chão, impedir a caneta que escorregava pela reentrância do tampo da escrivaninha ou segurar uma folha providencial que despencava do caderno.

Mas não havia como evitar: meu nome fora pronunciado claramente e em som bastante elevado.

Levantei-me ante os olhares assustados dos colegas.

Ela exigiu que eu fosse até a frente da turma.

Ergui-me e fiz o primeiro gesto em obediência, estimulado, acreditando que ela me mandaria para casa. Era o máximo que poderia me acontecer, pois iria para casa, voltaria para as minhas histórias, criaria outras e as interpretaria. Quem sabe, não colocaria Dona Marina como vilã?

Mas foi só por um segundo. Antes que eu desse o segundo passo, ela gritou imperiosa, que eu trouxesse a gaita, ou melhor, a pasta.

Fiquei confuso, o que ela queria dizer? Então, eu deveria ir embora realmente, pois levaria a pasta comigo.

Obedeci, mas agora um pouco inseguro.

Havia alguma coisa em sua voz e principalmente no olhar que não se coadunavam com minha imaginação.

Desviei das carteiras, sorri sem graça para Camilo que esticava o pescoço, jogando dois olhos grandes da órbita em minha direção.

Passos incertos, mãos trêmulas, segurando a pasta pela alça.

Aproximei-me devagar para a frente, como se me dirigisse ao palco do teatro.

Percebi que Dona Marina havia sentado e se escondia atrás da imensa escrivaninha.

Tentei dar alguns passos até ela, mas insistiu que ficasse ali, bem no centro, próximo ao quadro-negro, para que todos me vissem, sem perder nenhum detalhe.

Perguntei, balbuciando:

– Então...? – Não completei a frase, não foi preciso. Ela foi determinada, objetiva, categórica:

– Agora toca a tua gaita. Segura-a como estavas fazendo e toca, de modo que todos te vejam e te aplaudam. O palco é todo teu. – E dirigindo-se ao pessoal, acrescentou, irônica: – Aplaudam o palhaço! Vamos dar um tempo para que ele apresente o show que estava fazendo no fundo da aula.

Eu olhei para a turma, olhei para ela, olhei para mim mesmo. Nem sei se com ódio, ou comiseração. Não havia alternativa, mas uma coisa, eu tinha certeza, não tocaria de jeito nenhum!

Ela então ameaçou mandar-me embora e só voltaria com um de meus pais.

Foi a saída digna da qual eu não abriria mão. Respondi com a voz sumida, que não tocaria.

Ela então me expulsou da sala, imediatamente, sem qualquer tolerância.

Saí aos tropeços, ainda ouvindo do pátio da escola, as risadas da turma.

No dia seguinte, voltei com minha mãe e percebi em Dona Marina uma dualidade que desconhecia.

Era outra pessoa, gentil, educada, até suave. Nem parecia a vilã do dia anterior e, inclusive, me elogiara.

Só restara a corrida de passos miúdos, fugindo do vento do inverno, segurando o lenço colorido para não lhe cair da cabeça, fazendo um nó suave no pescoço e começar uma outra aula, como se nada houvesse acontecido.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Como se desenvolve a criação

Quando escrevo, procuro difundir ao máximo as ideias pertinentes à história que está sendo construída.

Entretanto, os caminhos se diversificam e aos poucos, percebo que se algum preceito ou ponto de vista está na tentativa de ser disseminado, não passa desta etapa, porque a história segue um rumo quase determinado pelo crescimento ou não dos personagens.

Nada de extraordinário, apenas uma reflexão no fazer literatura, que, via de regra, pensamos ter as rédeas do texto nas mãos, mas o conteúdo foge de acordo com a imaginação e criatividade.

Na verdade, aí é que se dá a literatura, uma forma diferente de ver o mundo, de representar a realidade e não apenas mostrá-la com precisão jornalística.

Às vezes, torna-se necessário a desconstrução do texto para produzirmos o tão falado estranhamento, que pode trazer ao leitor a reflexão do tema que tratamos.

No entanto, a coisa deve surgir com naturalidade, sem acomodar muito a história a ponto de torná-la artificial.

É preciso saber unir a história que queremos contar com o desejo de chegar ao coração e à mente do leitor, sem vilipendiar nossos sentimentos e concepções de vida.

sábado, outubro 15, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

Hoje é sábado, por isso, publicamos a seguir o décimo primeiro capítulo de nosso folhetim dramático. Sempre publicamos um capítulo na terça-feira e o outro no sábado. Bem, vamos fazer uma síntese do capítulo anterior. No décimo capítulo, Santa fizera um balanço sobre os desdobramentos da reunião familiar, na qual impora algumas condições à família, ao bispo Martim e à Linda. Estava preocupada e um pouco confusa. Não sabia se o que estava fazendo era o correto para a situação. Entretanto, Sandoval decidira fazer uma reunião sem a sua presença, nem a de Linda, o que lhe produzia um sentimento de desconfiança. Por isso, pedira à Linda que se escondesse na biblioteca e ficasse a par dos acontecimentos. Quando a reunião começara, ela tinha ido à igreja. Sandoval, como um trunfo para derrotar as condições de Santa, dissera à família que ela estava louca.

Portanto, a seguir o nosso décimo primeiro capítulo, com a pergunta de Letícia. Divirtam-se, amigos!

Capítulo 11

— Como louca? O senhor é que enlouqueceu, por que está dizendo esta bobagem?

— Voces acham que ela viu a tal Nossa Senhora? Vocês acham que a bússola apontava para aquela comunidade, ora pelo amor de Deus, só por aí, dá para perceber que ela não está no seu juízo normal!

— Eu estou com o sogro, sempre achei muita maluquice por parte de dona Santa esta coisa de visão, de missão, de querer mudar a gente.

— Cale a boca, Ricardo. – Letícia volta-se indignada para o pai – Escute aqui, papai, mamae pode estar estressada, talvez até a visão seja coisa da cabeça dela, afinal, ela é tão religiosa, tão carola, mas chegar ao ponto de acusá-la de demência, é demais!

— Eu sei minha filha, talvez eu esteja exagerando, talvez você tenha razao, mas veja bem ao caos que este capricho está levando a família. Não podemos ficar presos às atitudes insanas de sua mãe. Vocês se lembram qual era a verdadeira missão dela, inicialmente? Deveria juntar-se a uma comunidade de anarquistas, na ilha, depois às comunidades carentes que vivem nas redondezas, por fim, decidiu impor condições à família, exigindo mudanças no nosso comportamento. Ela não tem um rumo certo, não sabe onde chegar.

— E onde o senhor quer chegar papai? – pergunta Alfredo, desconfiado.

— Por favor, Alfredo, não me olhe com esta censura, sei que você ama a sua mãe...

—Todos a amamos, papai. – conclui Letícia, aborrecida.

— Sem dúvida, sem dúvida. Eu também a mãe de vocês, ela é uma mulher maravilhosa. Só está um pouco perturbada e nós temos a obrigação de ajudá-la. Entretanto, meus filhos, por mais que isso pareça duro e desumano, eu não posso deixar de pensar nos bens de nossa família, na indústria que mantém o patrimônio vivo. Do jeito que está, ela vai nos levar à falência.

— Como assim? Explique-se melhor, papai. – Letícia indagava ansiosa, ao mesmo tempo que voltava-se para Tavinho, que parecia muito à vontade com a situação. Por que ele não dizia nada, pensava.

Sandoval prosseguiu com uma voz entrecortada e triste. Às vezes, mostrava-se mais seguro, embora fizesse questão de informar de algum modo que aquela situação o magoava muito.

— O que eu preciso afirmar a vocês e quero que entendam a minha situação, é que sua mãe não pode dividir a herança, não pode dispor da parte dela para doar para esta comunidade. E ela é bem capaz disso, está convicta, diz que a Virgem exigiu. Imagine, se ela comete uma loucura destas, nós todos estaremos perdidos! Porque, pensem bem, eu tenho certeza de que nós jamais faremos o que ela deseja, por mais que tentemos, é impossível. O ser humano não muda, nós já temos os nossos hábitos arraigados, a nossa vida particular e não somos nenhuns monstros. – olhava em torno e perguntava, pedindo socorro. – Concordam comigo? Podemos até melhorar as nossas condutas, mas fazer a mudança que ela quer, é impossível. Já pensaram nisso, meus filhos?

Tavinho então decidiu intervir, sendo acompanhado pelo olhar de Letícia.

— De minha parte, papai, eu já nem pensava nessa bobagem. Eu jamais trabalharia na fábrica como ela quer e nunca vou deixar o meu curso ou mudar de profissão.

— Pois muito bem, Tavinho corrobora com o que eu digo. A gente não consegue, pessoal, por mais que nos esforcemos. Vamos melhorar sim, pelo bem da família, por sua mãe, mas jamais mudar completamente e ela, se vocês se lembram, foi bastante clara: ou nós mudamos ou ela entrega toda a forturna e vocês sabem que ela é bem capaz disso.

— E o que o meu sogro sugere?

— Eu vou ser muito franco, meus filhos, com o coração doído, mas muito racional e lúcido. A minha proposta é que consideremos oficialmente a sua mãe como uma mulher incapaz.

— Como assim? Ela é uma mulher lúcida, em pleno gozo de seus direitos e deveres, uma mulher que sabe o que quer, uma deusa da sociedade, da elite.

— Eu sei leiticia, eu sei. E já acrescentei que é com o coração doído que proponho isso, mas é a única solução. Precisamos provar que sua mãe está incapaz de decider qualquer coisa em relação ao patrimônio de nossa família, que está mentalmente perturbada, para evitar este desastre!

Ao ouvir a declaração de Sandoval, Alfredo intervém, indignado:

— Eu não acredito no que estou ouvindo, o senhor quer que a gente assine embaixo que nossa mae louca! O senhor é um canalha, papai!

— E você o que é Alfredo? O que você fez para ajudar a família, a não ser se esconder nesta carapaça estranha de efeminado?

— O senhor sempre quis dizer isso, não é verdade? O senhor sempre me odiou!

Ricardo percebendo que a discussão envereda por um tema que pode mudar o objetivo de Sandoval, com o qual concorda, interfere tentar conciliar os ânimos.

— Calma, pessoal, olhe, Alfredo, se a gente pensar friamente, com racionalidade, percebemos que seu pai tem razão. Você acha que não é duro para ele também nos falar sobre isso? Eu vi o sofrimento na fisionomia dele.
Sandoval o olhou, um pouco surpreso. Em seguida, voltou-se para Alfredo que gritava com raiva:

— Não é nada disso, será que vocês não enxergam? Ele quer é se livrar dela!

— Não diga isso, Alfredo. Eu amo a sua mãe, apenas não suporto a ideia de ficar na miséria. É crime isso? É crime tentar proteger o nosso patrimônio, a nossa vida em família? – E falando mais pausadamente – Vocês tem uma vida econômica boa, não há dúvidas, entretanto, todos sabemos que ainda precisam de nossos bens. E depois, tudo isso é de vocês! Se ela dividir o patrimônio, caberá uma parte menor a cada um. Então, qual é o problema, não vamos fazê-la sofrer, ela não precisa saber de nada no início, eu tenho um bom advogado, o doutor Orestes e ele acertará todos os trâmites para que a coisa saia a mais tranquila possível, sem atropelos, sem que apareça na imprensa, tudo na surdina.

— Parece que o senhor já encaminhou tudo, papai. – conclui Alfredo, desolado.

— Eu preciso do apoio de vocês. Ela não vai sofrer e aos poucos, cairá na realidade. Isso de visão da Virgem vai passar, vocês verão. Além disso, podemos fazer uma viagem pela Europa, passar um tempo juntos, até baixar a poeira. Tenho certeza, de que sua mae voltará renovada, uma outra mulher.

— Não sei não, mas que seria um alívio, seria. O que você acha, Tavinho?

— Partindo de você, Letícia, a mais revoltada de todos, dá o que pensar. Se não vai fazer mal à mamãe, por que não pensar no assunto?

Ricardo os observa e conclui a ideia, satisfeito:

— E tudo voltaria ao normal, a paz reinaria no seio familiar. Seu pai teve uma grande ideia, Letícia.Não acha?

— Agora, eu entendi tudo, entendi a ausência de mamãe, você preparou tudo, papai. Você foi cruel, desumano. Não papai, muito pior, você a traiu! Aliás, é moda no Brasil este tipo de traição, não é?

— Alfredo, eu precisei fazer isso. A sua mãe está em outro mundo, ela só pensa naquela gente infeliz, naquela comunidade de gente suja e medonha, que só vem perturbar a nossa família. Está na hora, meu filho, na hora de reagirmos. Infelizmente, é a sua mãe que está na roda, mas foi ela que criou esta história absurda, ela nos enredou nesta trama terrível. Por causa dela, vamos prejudicar toda a família. Ela pensa que uniria a família, mas ao contrário, essas condições destruirão odos de uma só vez, caso consiga o seu objetivo. Isso desagregará a família e vai acabar nos separando. Eu não quero isso!

Letícia, parecendo concordar com a proposta de Sandoval, tenta convencer Alfredo. Tavinho absorto, apenas observa o grupo, sem muito interesse.

— Vamos, Alfredo, procure tirar a mamãe desta história toda. O que papai propõe não é contra ela, é a favor da família, entende?

— É impossivel, Leticia, mamãe é o pivô de tudo que está acontecendo. E é com ela que a bomba arrebenta.

— Eu sei, eu sei, meu irmão. Mas lembre-se que não vai acontecer nada de mal a ela, como você pensa, apenas ela ficará alheia às decisões. Tenho certeza de que ela nos agradecerá no futuro.

— Você se convenceu depressa, convenhamos.

— É a vida, meu irmão. Mamãe se meteu onde não devia. Ela arriscou demais. Nós agora, queremos que tudo permaneça como antes, com ela ao nosso lado, mas sem interferir no nosso destino. Pensa bem o que sua irmã experiente está lhe dizendo, você continuará a sua vida, sem prestar contas a ninguém, não é maravilhoso? É a liberdade que ela nos tirou!

Tavinho aproxima-se um pouco dos demais e intercede:

— E depois, isso não ia dar em nada, Alfredo. Mamãe não tem experiência em lidar com pobre, assim, diretamente, como ela queria. Ela ia quebrar a cara.

— Você também, Tavinho, você está a favor desta crueldade?

— Não, eu lavo as minhas maos. Mas de todo modo, que tudo aconteça sem a minha presença, só para assinar alguma coisa, se necessário. Não quero me envolver nestas coisas de papeladas, de burocracia. Quero viver a minha vida, meu irmão.

— Então cunhado, já tomou uma decisão? – Dirigindo-se a Alfredo.

— Eu não sei o que fazer. Adianta eu me recusar?

— Meu filho, segundo o dr. Orestes, todos devem assinar os testemunhos. Está tudo pronto, basta que assinem concordando.

— Quando ela descobrir, ela vai nos odiar! – exclama Lavínia.

— Sua mae nunca os odiará, ao contrário, ela vai entender e certamente se ligará ainda mais à religião. Isso será uma benção, pois teremos a Santa que sempre conhecemos e o senso comum se restabelecerá. Esteja certo, meu filho, eu que convivo com a sua mãe, vinte e quatro horas por dia, tenho certeza de que esta é a saída para a saúde mental dela. Ela está a cada dia mais alucinada e este estresse alto vai levá-la a uma doença mais grave, vocês tenham certeza. Tudo o que fizermos responderá na saúde mental de sua mae. É a única maneira de salvarmos de uma depressão galopante ou de algo pior.

— Está bem. Eu concordo, mas com uma condição, que façam a papelada sem que ela sofra, de modo algum. Eu não quero minha mãe achando que está louca realmente e que nós a abandonamos. – conclui Alfredo, melancólico.

— Ao contrário, meu filho, ao contrário, estaremos cada vez mais perto, mostrando-lhe a realidade. – E emocionado. – Meus filhos, só eu sei o quanto tenho sofrido e escondido de vocês esta realidade, mas Santa às vezes, nem me reconhece. Outras vezes, fica completamente calada, e eu fico muito tempo esperando que melhore. Houve tempo em que eu lhe lia alguns livros para que se sentisse melhor, afinal ela sempre foi uma boa leitora. Mas graças a Deus, ela tem melhorado, até que começou a falar nesta visão escabrosa.

Letícia aproxima-se, emocionada e abraça o pai. Chama em seguida os irmãos e pede que façam o mesmo, afinal, trata-se do bem-estar da família e da saúde mental da mãe. Só agora ela percebera o quanto o pai estava sofrendo. Portanto, é hora de se unirem e fechar o pacto.

Alfredo arrasta-se da poltrona, desanimado, mas mesmo assim, completa o abraço unindo-se aos demais.

Sandoval enxuga algumas lágrimas, afastando-se do grupo, mas é interceptado pelo genro que o abraça efusivamente.

Atrás da cortina, Linda desliga o gravador do celular.

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/análise-pagar-empresários-reunião-626881/Geralt

terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

terça-feira, agosto 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 19º CAPÍTULO

Capítulo 19

Rosa depõe na polícia e confessa que tentara matar Ana porque achava que ela sabia que Paulo usara o carro do médico na noite do crime.

Para o delegado Borba, não há mais dúvidas de que o rapaz é o verdadeiro assassino de Taís, já que foi comprovado de que ele estava no local do crime e Rosa praticamente o acusou, na tentativa de defendê-lo.

Parece enfim, que todas as peças se encaixam e que o verdadeiro culpado é mesmo o mecânico. Afinal, ele era namorado de Taís, tinha muitos ciúmes e segundo a própria Rosa, certa vez, ele a tinha ameaçado de morte, após uma briga calorosa. Com o passar do tempo, no entanto, as coisas haviam se acalmado e cada um do seu lado, foi tocando a própria vida.

O problema, segundo Rosa, é que ele a havia encontrado algumas vezes e Taís, leviana que era, estava novamente tendo um caso com o antigo namorado.

Ela era muito ligada ao o grupo de Ana, onde conseguia as drogas que utilizava, embora a menina mais jovem fosse a mais arisca e não se envolvesse tanto com os demais. Não gostava da presença de Taís e seus encontros se davam apenas com os amigos mais chegados, que constituía um grupo de quatro pessoas.

Eram Miguel, o mais velho que devia ter uns 21 anos, Henrique, o ruivo, quase adolescente, Carlos, o filho do prefeito, que segundo os comentários era o que organizava os luais à beira do rio, com muita droga e verdadeiras orgias sexuais, festas estas em que Taís muitas vezes, participava, além de uma garota de programa que vinha de vez em quando da Capital para incrementar as festas. Todos na cidade sabiam, mas como eram de famílias importantes, faziam vistas grossas. Apenas Ana era uma desgarrada no mundo. Vivia praticamente sozinha, morando com um tio bêbado que nem sabia de sua existência.

No dia seguinte, quando Paulo chegou na rodoviária, a polícia já o esperava. Preso, ele só fazia negar o crime e chorar como uma criança.

Enfim, tudo estava resolvido. O crime da jovem Taís solucionado. Agora Júlio finalmente decidiria se permaneceria na cidade por mais algum tempo. Talvez retomasse as terras onde seus pais moravam, nos quais não havia mais nenhuma residência e o mato selvagem já tomava conta de tudo. Quem sabe construiria uma casa e moraria em definitivo na cidade. Escreveria a sua biografia ou não. Quem sabe criaria outras histórias de ficção ou descreveria casos que já passaram por suas mãos. Eram alternativas que poderia utilizar. Estava cheio de planos e isso era bom. Sentia-se feliz em estar de volta à ativa, o que liberava uma certa euforia em sua mente, dando-lhe vontade de fazer coisas novas, de tomar outros rumos.

Porém, as coisas estavam tão claras e se encaixavam tão adequadamente nos rumos do caso, que lhe despertavam algumas dúvidas.

Primeiramente, o pai sofrido, odiando o médico que enganara a sua filha, uma moça humilde de cidade pequena que fora iludida por um jovem esperto da cidade, que lhe oferecera mundos e fundos, apenas com a finalidade de seduzi-la. Isso era tão clichê que parecia coisa de novela de rádio dos anos 60.

Aos poucos, porém, foi se descobrindo que a menina tão recatada e simples, não passava de uma jovem que participava de festinhas regadas a drogas e muito sexo. Pelo menos, foi o que foi parar no depoimento do delegado e até agora ninguém decidiu desmentir, nem mesmo o pai, que se mantém em silêncio.

Em seguida, o contato foi com o médico, o suposto assassino, que havia namorado a moça e que decidira matá-la para não atrapalhar seus negócios com a família da noiva na capital.

Agora já era uma história meio dramalhão de tv, porém com uma história mais plausível, apesar de simplória demais. O povo daquela cidade tinha muita imaginação.

Com o interrogatório, percebeu-se que era um jovem assustado com a situação e que a moça que se dizia assediada, era ao contrário, quem o perseguia. Segundo ele, não lhe faria mal algum, mas a odiava, a ponto de não querer qualquer aproximação com ela. Tudo era possível, a partir dessa constatação.

A seguir, surgiu Ana, a menina que observava tudo, que ouvira o grito e presenciara alguma coisa surgir nas águas correntes do rio. Chamara ajuda dos amigos e descobrira que havia sido uma tragédia. Também vira o carro do médico pelas redondezas e por isso, o acusara e a história fora parar nas ruas até chegar às autoridades competentes. Azar para o médico Ricardo Silveira, que não tinha um álibi para não ser incriminado.

Mais tarde, foi a vez de Rosa, a mulher que tentava proteger o rapaz que mora em seu apartamento alugado, que para os habitantes da cidade, não passa de seu amante.

Um caso estranho de se entender. Tanto o quis proteger, que acabou acusando-o, pensando que Ana soubesse que ele estava com o carro do médico, na noite do crime, ali, pelas proximidades. Sendo assim, quem estava no carro que Ana vira, quem morria de ciúmes pela antiga namorada e que seria capaz de matá-la, era o mecânico.

Tudo então parecia ter chegado a um termo, à medida de que se descobrira quem era o assassino. O tal de Paulo.Na verdade, pouco se conhecia dele e o pouco que falava era para negar que a tivesse matado. Dizia-se inocente, mas todas as provas estavam contra ele, inclusive o depoimento de Rosa.

Júlio, insatisfeito com o desfecho da situação, dirigiu-se ao delegado Borba, tentando um encontro com Paulo, na prisão. A princípio, foi-lhe negado. Não havia motivo para interrogatório. A polícia já estava ciente de tudo e tinha feito a sua investigação completa. Mas, com certa habilidade, Júlio convenceu o delegado a fazer uma única visita, nada oficial, para que pudesse conversar com o homem.

Depois de algumas recusas, ocorreu finalmente a concessão ao pedido.

Paulo era um homem de estatura baixa, atarracada, com braços que aparentavam força e energia. Segundo os comentários, costumava exercer o trabalho exaustivo na oficina com esmero e muita disposição.

Tinha uma fisionomia apagada, um olhar parvo e desligado. A boca ficava entreaberta e suas mãos estavam sempre se contorcendo, como se precisasse aquecê-las ininterruptamente.

Júlio aproximou-se e sentou-se à mesa, a sua frente. Estavam sozinhos na sala, embora houvesse uma janela de vidro para a peça ao lado, de onde era possível observá-los.

O delegado Borba parecia enfadado. Aproveitou a conversa para retirar-se e fumar um cigarro à beira da calçada, observando os transeuntes.

Nenhum dos dois policiais que restavam interessou-se pela conversa e, ocupados em seus objetivos pessoais, nem passavam por ali. Para eles, o caso estava resolvido. Era só frescura de detetive particular, com mania de protagonista de filme policial. Nem se preocupavam com os demais casos de assassinatos por aplicação em dose errada de insulina, pois estavam arquivados e não havia mais nada a fazer.

Júlio tomou um copo de água e serviu outro para Paulo. Este aceitou e abaixou imediatamente a cabeça, pensativo. Vez que outra, levantava a cabeça e olhava enviesado para a vidraça, como se perguntasse a si mesmo o que estava fazendo ali. Júlio então, começou a interrogá-lo.

– Paulo, sei que a sua situação não é das melhores, mas há coisas que ainda não foram bem elucidadas. Me refiro a coisas que não ficaram bem claras, entende?

– Não, não entendo nada. Só sei que estão me acusando por um crime que não cometi. Eu sou inocente, delegado, não tenho nada a ver com isso.

– Olhe, me chame de detetive. Eu não sou delegado e nem trabalho aqui nesta delegacia.

— Mas então, por que está me interrogando? Eu não quero ficar aqui, quero que chame os policiais, quero ir pra minha cela.

— Espere, Paulo, se acalme. Eu sou um detetive particular contratado por Lucas, o pai de Taís e não estou aqui para julgar ninguém. Só quero a verdade. Eu não o acusei de nada, por enquanto.Talvez até com este interrogatório, eu o ajude. Você não acha que foi tudo muito rápido? A solução para o problema foi a sua acusação. Não estou dizendo que você é inocente, mas precisamos averiguar mais. Fazer mais investigações.

— Eu já lhe disse que sou inocente!

— Então, que tal conversarmos sobre isso. Você tem que ser absolutamente sincero comigo. Tem que me dizer a verdade, se quiser que eu o ajude.

— Mas o senhor não é meu advogado, eu nem tenho advogado. O senhor é contratado pelo farmacêutico, só quer me ferrar!

— Não é nada disso, Paulo. Eu quero a verdade. Mas não posso obrigá-lo. Se você não quiser se abrir comigo, não posso fazer nada. Você é quem decide, mas tenha certeza de uma coisa, não há muita chance para você. As coisas se ajustaram perfeitamente com a sua prisão.

Paulo o fita intrigado. Fica em silêncio alguns segundos, depois volta a abaixar a cabeça e resmunga: — O que o senhor quer de mim?

— Ótimo, Paulo. Fazer umas perguntas muito claras. Vamos começar do início. Me diga com sinceridade, qual é a sua relação com Rosa?

— Meu Deus, o que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Aparentemente, nada. No fundo, tem muito a ver. Nós podemos fazer o perfil de uma pessoa através da estrutura de sua personalidade e descobrir, inclusive se ela é capaz de cometer um crime ou não. Um relacionamento afetivo, o envolvimento familiar atribuem traços à personalidade de uma pessoa. Você me entende?

Ele não responde, mas concorda com um aceno de cabeça.

– Pois então, para isso, é preciso que se conheça bem a pessoa. E olhe, eu não sou psicólogo, nada disso. Mas anos de experiência e alguns estudos periféricos me possibilitaram a conhecer bem o ser humano - faz uma pausa para que ele absorva tudo o que dissera, enquanto o observa detidamente. Paulo não levanta os olhos. Para de contorcer as mãos e deixa-as sobre a mesa, fixando-as, como se pudesse rever nelas o seu trabalho, a sua atividade, agora truncada. As unhas enegrecidas revelam a atividade descuidada.

Júlio continua - por isso, eu volto a perguntar: você tinha uma relação mais intima com Rosa?

Paulo suspira e ainda sem levantar os olhos, exclama de uma maneira quase infantil: — Rosa é a minha mãezinha! Ela me ajuda, me protege, me alimenta, me dá casa pra eu morar.

– Como assim? Você trabalha, paga aluguel pra ela, não é isso?

– Sim, mas é outra coisa. Eu procurei a minha vida inteira por minha mãe, sempre me disseram que ela era daqui, desta cidade, mas nunca a encontrei. Rosa então me apoiou, me ajudou a sobreviver.

– Só isso?

– E você acha pouco? Ela foi a única pessoa que me olhou como gente, que não se afastou quando eu procurei – e prossegue, emocionado – a única pessoa que ouviu e me entendeu.

— Fora isso, profissionalmente falando, ela aluga um quarto para você.

– Sim.

– E qual é o apoio que ela lhe dá? – tenta colocá-lo em conflito.

– Eu já disse, ela cuida das minhas coisas, ela me protege, me deu abrigo quando precisei, é isso! Não basta pra você? Não basta pra todo mundo? Ninguém entende, não é? Ninguém entende quando alguém faz um bem pra gente! - fica agitado, agora mexendo as mãos, passando-as pelo cabelo e cobrindo o rosto, quase em desespero.

Júlio dá uma leve batidinha em seu braço e pede que se acalme. Sorri amistoso e percebe que pela primeira vez, Paulo o encara. Por fim, respira com sofreguidão, mas aos poucos volta ao normal. Júlio aguarda um pouco que se restabeleça para voltar à carga.

– Eu entendo mais do que você imagina, Paulo. Sei o quanto esta mulher o ajudou e o quanto você a preza. Não fique molestado pelo que eu disse, apenas ouça e tente também entender as minhas perguntas. Como lhe disse, é preciso analisar o perfil das pessoas. É preciso entender as suas atitudes com profundidade, caso contrário não chegamos a lugar nenhum.

Um pouco mais calmo, Paulo pousa as mãos sobre as pernas, que se agitam intermitentes. Júlio prossegue o interrogatório, como se fizesse uma análise terapêutica.

– Então me diga, de acordo com o que você me descreveu sobre o seu reconhecimento do valor de Rosa, sobre o carinho que tem por ela, você seria capaz de fazer qualquer coisa para defendê-la, para ajudá-la. Afinal, ela é a sua protetora, a sua amiga, a sua – faz uma pausa providencial – como voce diz, a sua mãezinha.

–Sim, eu faria tudo por ela e ela por mim. Ela tentou me defender. Ela sabe que eu não matei ninguém.Ela só disse aquilo porque ficou puta da cara com a menina, que andou espalhando que eu estava com o carro do doutor, Claro que ia sobrar pra mim, não ia? A corda rebenta sempre na parte mais fraca, não é assim que acontece, detetive?

— Nem sempre, Paulo. Ao menos que a verdade não apareça. É preciso que haja justiça. Mas me explique, se Rosa o ajuda tanto, por que você está aqui? – a cartada que esperava.

Paulo entretanto possui outra lógica e responde rápido, embora um pouco confuso: — Porque ninguém acredita em mim, precisam de um culpado.

Júlio decide ser mais incisivo e argumenta: — Nem Rosa acreditou em você. Ela desconfiou tanto, que como você usou o carro do médico, ela pensou que você teria matado a moça para por a culpa no rapaz.
— Isso é o que tentaram atribuir a ela. eu já expliquei, que ela ficou furiosa com a Ana. Ela só pensou em me ajudar, em me defender - e fica se repetindo várias vezes. Júlio o interrompe, enérgico.

— Esta bem, não fique nervoso. Como você disse, você seria capaz de fazer tudo por ela.

— Eu já disse. tudo!Tudo! Quer me enlouquecer?

— Até matar?

— Eu não matei ninguém, foi uma cilada que vocês armaram.

—Mas você mataria por Rosa, pela mulher que você ama!

— Mataria!

— Então você confessa que a ama, Paulo.

— Você esta me confundindo, eu não quero mais esta conversa!

Tenta levantar-se, mas Júlio o impede, segurando-o firmemente pelo braço. Pede que sente, insiste em dizer-lhe que quer ajudá-lo, que precisa enfrentar a situação. Afinal, se é inocente, não perde nada em responder as suas perguntas, ao contrário, poderá haver uma saída, até uma possibilidade de atenuação da pena. Aos poucos, Paulo parece entender a proposta e volta a sentar-se. Júlio prossegue.

— Está bem, não vamos mais falar em Rosa. Fique tranquilo. Se é um assunto que o deixa chateado, não quero aumentar ainda mais o seu sofrimento. Mas preciso saber algumas coisas em relação à Taís, afinal ela foi sua namorada. Quero que você me fale do grupo que ela participava, com o qual fazia as festinhas na ponte. Você conhece esse pessoal?

Ele responde imediatamente, como se o tema sugerisse pessoas que ele detestava e por isso, tinha prazer em denunciá-los.

— Sim, são gente muito baixa, todos drogados, metidos com traficantes, vagabundos. A Rosa tinha horror daquela gente.

— O que sabe deles?

— Todos são uns marginais, uns pederastas, só se salva o ruivo…

— Ruivo?

— É, o Henrique, ele está sempre com medo de tudo, ele só vai porque não consegue sair do círculo vicioso, como traficou drogas, tem medo, eles podem acabar com ele. O cara é um adolescente, tá na pior.

— E acha que neste caso, eles podem ter culpa no cartório?

— Não sei, só sei que naquele dia, eles estavam numa festa muito grande, uma verdadeira orgia, ninguém era de ninguém, rolava droga, cocaína, crack, tudo que você possa imaginar, além de muito sexo!

—Como sabe? Por acaso, você os estava espiando do carro do médico? Agora todos já sabem, por que você não me conta?

Contar o quê, detetive? Em que enrascada o senhor quer me meter?

— Pelo contrário, quero que você saia da enrascada em que se meteu. Quero que me diga, que você assistiu a festa que tanto reprova, que você viu Tais participar, que eles a obrigaram a alguma coisa, não foi isso? Por que você não conta?

— Eu não sei, não sei de nada.

— Mas você pode se livrar da prisão se a gente imputar alguma suspeita a eles, se você contar o que eles fizeram. Eles mataram Taís, eles a obrigaram a ingerir drogas pesadas, a beber muito, a fazer sexo, você viu tudo, você talvez tenha até se masturbado…

— Pare com isso! Pelo amor de Deus, pare com isso! - neste momento, Paulo parecia no auge do desespero. Entretanto, não conseguia livrar-se das imagens que Júlio realçava, como se acontecessem ali, naquele momento, na frente de sua retina. Suas mãos tremem, seu corpo todo treme, sua voz falha.

— Então é verdade, você se masturbou dentro do carro.

— Eu já tinha saído. Eu não faria uma coisa dessas, não sou um depravado. Vivo com minha mãezinha, a mulher que me ajuda, que me consola, que me leva a igreja, uma mulher que professa a fé, que não suporta o pecado!

— Mas você se masturbou, Paulo. Encontramos esperma no carro do médico e fizemos o exame de DNA e consta como seu! Você não pode negar, Paulo. Isso depôs contra você. Não sei se você sabia, mas isso comprovou que você estava lá, não foi só a palavra de Rosa, foi a prova cabal de sua presença! Depois disso, foi um passo para a acusação, ainda mais com o depoimento de Rosa. Para a polícia, você se masturbou vendo a moça e como ela o repeliu, você a matou. Mas nós sabemos que você só presenciou a cena, não é mesmo?

— Por favor, eu não sou um louco, eu não queria assistir aquela atrocidade.

— Então eles mataram Tais? Eles a empurraram? Quem foi? MIguel, Henrique, Carlos, o filho do prefeito, a garota de programa que vinha ilustrar o lual ou a própria Ana? Quem a matou? Ou foram todos juntos?

— Não, não, não foram eles! Não foi ninguém! Não foi nenhum deles. Estavam drogados demais para fazerem qualquer coisa, não se sustentavam nem nas pernas. Não foram eles, eu juro!

— Então a acusação recai sobre você. Você é o assassino! Você matou uma moça indefesa, que foi sua namorada, uma moça frágil que foi empurrada covardemente para o fundo do rio. Que mal ela fez a você, afinal? Deixou-o por outro? Que importava isso? Há centenas de moças que gostariam de namorar você, de se apaixonarem por você. Por que você fez este ato covarde, Paulo?

— Ela era leviana, fraca, andava com todo mundo, ela me jogou na lama.

— Por isso a matou!Você matou uma pessoa inocente, uma jovem cheia de vida, que deixou um pai em sofrimento absoluto. Que deixou uma cidade toda odiando você! Você é um assassino, Paulo!

— Não fui eu! Não fui eu! Foi Rosa! Rosa!

segunda-feira, julho 18, 2016

A identidade subjetiva, a alteridade e as diferenças

Na obra “A escada dos fundos da filosofia", do filósofo Wilhelm Weischedel, observa-se que o autor apresenta a ideia do outro como fundamental para se chegar a uma concepção dos direitos humanos. Ao pousar o olhar no tu, no outro, o homem incorpora o pensamento de que precisa do outro para sobreviver como ser humano, adquirindo assim um contexto de pluralismo das identidades. A isso chama-se alteridade, afastar-se do pensamento antigo da subjetividade, do eu, e amparar-se à ação pessoal no outro.

A concepção da filosofia ocidental sobre a identidade, a expressão subjetiva do eu, descuidado-se da importância do outro, revela uma falta de sentido, à proporção de que homem em grande parte de sua vida, depende do outro para sobreviver. Freud reiterava este desamparo radical que ocorre desde que o homem nasce, cuja sobrevida depende deste reconhecimento no outro e pelo outro. Tanto Freud, como Heidegger e outros tantos filósofos ratificam este conceito.

Pela definição de alteridade, derivada do latim, conclui-se que é o esforço de se colocar no lugar do outro (alter= outro), ou seja ter consciência da existência da outra pessoa e respeitá-la como é, e não de acordo com o que refletimos a partir de nossa vaidade, quando a julgamos apenas conforme a nossa compreensão do mundo.

Na maioria das vezes, construímos uma relação de identidade comum, o que nos torna semelhantes, de forma que que ouvimos o outro em todas as linguagens ou nos calamos, ratificando o que para nós individualmente é a verdade.

Alteridade é uma destas ideias que desafia o espírito humano em todas as áreas do conhecimento e da história, nas artes, na filosofia, na ciência e nas religiões. Isso ocorre à medida que o homem tem dificuldade em lidar com as diferenças, porque na verdade todos os seres humanos são diferentes em sua essência formadora. Entretanto, a humanidade desenvolveu a ideia de que todos devem ser iguais, com entendimentos únicos.

No entanto, é necessário distinguirmos o conceito de igualdade como a igualdade num espaço, ou seja na esfera pública, que segundo Jürgen Habermas, é apreciada como um valor, que define a nossa convivência com os demais.

Por outro lado, há outro conceito de igualdade, diversa deste primeiro, que remete à cultura da dificuldade de lidar com as diferenças, como por exemplo, no evento da Segunda Guerra Mundial, que produziu a morte de mais de 50 milhoes de pessoas, sendo cerca de 6 milhões de judeus e a estimativa de cerca de 10 milhões de ciganos, que foram exterminados nos campos de concentração.

Até hoje, a humanidade se pergunta como explicar esta cultura que pretendia ser um padrão para o mundo civilizado, cujos ideais da Revolução Francesa não impediram a geração do nazismo. Provavelmente, essa dificuldade em entender as diferenças seja consequência de que, em algum momento da nossa história, confundimos a igualdade segundo os dois conceitos distintos citados acima, ou seja, a igualdade como um espaço de convívio com as nossas diferenças confundida com a igualdade de reduzirmos o outro aquilo gostaríamos que ele fosse.

Conviver exige a visão de que cada um apresenta um pontencial para fazer coisas extraordinárias ou não, mas que são desconhecidas por nós. Do mesmo modo, é preciso compreender que a outra pessoa não se trata de um semelhante, ao ponto de construirmos a ideia de igualdade que tenta formatar o outro como desejaríamos. Na verdade, devemos entender que o outro é o próximo, não um igual no sentido do entendimento do mundo e das coisas, porque jamais podemos transformar as pessoas em espelhos que reflitam o que pensamos, segundo as nossas expectativas.

Infelizmente, conclui-se que nos dias atuais, o homem engendra verdadeiros monólogos, propondo ideias sem ouvir as do outro, porque acaba apenas olhando a si próprio. Ele acha que constrói a igualdade, mas na verdade, somos diferentes.

Bibliografia.

Weischedel, Wilhelm. A escada dos fundos da filosofia: a vida cotidiana do pensamento de 34 grandes filósofos. São Paulo: Raimundo Lulio, 2006.

Barros, A. P. A importância do conceito de esfera pública de Habermas para a análise da imprensa- uma revisão do tema. Universitas: Arquit. e Comun. Social, Brasília, v. 5n. 1/2, p. 23-34, jan./dez. 2008

Silva, Sérgio Luiz Pereira da. Sociedade da diferença: formac’ões identitárias, esfera pública e democracia na sociedade global. Online: http://www.academia.edu/3829490.

quinta-feira, junho 23, 2016

CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

Kant, fundamentado em seu modelo do Apriorismo, afirma que todo conhecimento tem sua origem na experiência, mas não exclusivamente isso, porque a experiência somente é estabelecida através do conhecimento tácito, preliminar do homem, pelo menos no sentido mais raso do termo, destituído de qualquer investigação mais minuciosa.

Na verdade, segundo ele, o conhecimento se inicia com a experiência, mas esta sentença, de certa forma é arbitrária e não prova que o conhecimento em sua plenitude se deriva exclusivamente dela.

Se não vejamos, esta interpretação suscita uma série de questionamentos.

É aquela velha história do ovo e da galinha. Ainda existe esta controvérsia? Afinal após a descoberta do DNA, foi comprovado que o ovo veio antes da galinha, ou melhor, a pobre da galinha não passava de um ovo.

Esta seria sua primeira forma de vida. Afinal, a famigerada ave é uma espécie inglória, uma ave que não voa, não canta, tem um aspecto parvo e dorme em cima dum poleiro.

Mas deixemos estas minúcias para os especialistas. Não é nossa seara, aliás, a nossa nem tem nada a ver com Kant, pelo menos na precisão e rigor filosófico.

Tem a ver com a escrita e tudo que se relaciona ao ajuntamento de letrinhas.

O que nos interessa, enquanto especuladores da filosofia kantiana, refere-se à dúvida incessante que nos atinge na plenitude do nosso conhecimento (plenitude?), visto que o conhecimento adquirido se dá através da experiência de nossos erros e acertos, de nossas reivindicações junto à existência, cuja natureza transforma a cada segundo nossas vidas.

Por outro lado, é de bom alvitre admitir que uma dose extra de conhecimento é transmitida por nossos antepassados, apreendido através da herança genética de neurônios elitizados, robustos, cheirando a leite materno do bom.

Toda esta aplicação científica nos induz à tese anteriormente citada e massacrada, relativa à herança genética da galinha. Ela é o próprio ovo, não tem essa de ser galinha antes ou ovo depois ou vice-versa.

Nós somos a própria experiência de nossos pais, avós, tataravós portugueses e demais colonizadores, ou escravos.

Mas verdade seja dita, este mesmo conhecimento não se deu ao acaso. Também eles tiveram a aprendizagem através de experiências adquiridas.

Ou não?

quinta-feira, junho 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 4º CAPÍTULO

Capítulo 4


<p> Capítulo 4

Quando chegou ao quarto onde o amigo estava, Ricardo encontrou-o sonolento. Aproximou-se da cama e Raul abriu os olhos, sorrindo.

—Não reconheci você com este jaleco, cara. Que bom que veio, meu médico preferido.

—Não se agite, Raul. Sei que seu açúcar teve uma queda considerável.

— É verdade, eu tive tonturas, tive náusea e até agora estou suando frio, apesar do sono.

—Isso é assim mesmo, daqui a pouco passa. Mas já é hora de dormir. Afinal, é bem tarde. Assim, você descansa.

— Sabe, Ricardo, eu tenho medo que eles me matem. Que descubram que estou aqui… Você sabe.

–– Ninguém vai descobrir nada. Não pense nisso.

––Você anda muito ocupado, eu sei. Já estou acostumado com abandono, meu amigo. Eu lhe falei da Susi, lembra? Não da cachorrinha que tenho em casa…

––Sei, da sua namorada. Esqueça isso. Pense em melhorar depressa. Amanhã, você sairá daqui.

––Escute, você pensou na proposta que lhe falei?

–– Pensei, mas conversamos amanhã. Agora, eu só vim ver como você está. Não quero importuná-lo mais. Tente dormir. Raul o observou com certa ironia. Segurou a mão de Ricardo e perguntou com cumplicidade:

— Meu amigo, você andou bebendo. Não pode vir atender os pacientes neste estado, ainda mais usando jaleco, entrando no hospital com o crachá de médico…

–– Cale a boca, não repita essa bobagem aqui.

–– E você acha mesmo que é uma bobagem?

–– Não, não é, claro que não. Mas vim aqui para vê-lo. Que está insinuando?

–– Só estou querendo protegê-lo, meu amigo. Uma morte qualquer de um paciente pode responsabilizá-lo por incompetência, por estar usando bebida alcoólica.

––Eu não estou atendendo ninguém, você sabe disso.

––Mas numa emergência, podem precisar de você.

–– Você está me ameaçando?

––Jamais, meu amigo, jamais. Quero proteger você, como disse, até a morte, se necessário.

–– Então não se preocupe comigo. Sei me virar. Por isso, mesmo, vou embora, você já está muito bem, pronto pra outra.

––Meu amigo, quero lhe agradecer por não ter me abandonado. Sei que você vai fazer o que lhe pedi, vai tentar descobrir a causa da morte daquelas pessoas. Você vai provar que elas morreram por terem usado insulina.

— Eu já lhe disse que estou ingressando no hospital, não posso me envolver com nenhuma necrópsia e depois, isso é atribuição dos peritos da polícia civil.

—Mas você vai achar uma maneira de resolver isso, tenho certeza. E vamos culpar aqueles malditos da petshop.

Ricardo afastou-se encontrando alguns colegas que faziam o plantão da noite. Fez o possível para dirigir-se ao estacionamento o mais rápido que pode.

Quando estava no carro, no silêncio entre os poucos carros que ainda estavam no prédio, ficou inquieto, pensando nas palavras de Raul.

Às vezes, parecia que ele pretendia agredi-lo, agindo de forma irônica, como se pudesse acusa-lo de algum delito. Entretanto, o melhor que tinha a fazer era esquecê-lo e voltar para o hotel imediatamente.

Foi o que fez. Tentou dormir um pouco e ao levantar, parecia que carregava uma carga imensa nas costas. Antes de mais nada, decidiu ir até a casa da mãe de Raul. Precisava saber os detalhes da conversa que pretendia ter com ele, de preferência, longe do filho, como dissera.

Dirigiu-se ao endereço que tinha anotado, observou que era uma casa antiga, com um velho portão de ferro, meio enferrujado, precisando de uma boa pintura.

Tocou a campainha e uma mulher atravessou o pátio, vindo pela calçada que conduzia ao portão. Tinha o cabelo pintado de loiro, curto e uma estranha cicatriz perto do olho. Como médico, foi a primeira coisa que reparou. Não esqueceu também da voz rouca de quem havia fumado por muito tempo.

Ela abriu o portão e pediu que entrasse, apresentando-se, logo em seguida.

––Seu nome é Sara. Raul não havia falado na senhora.

–– Não?

–– Na verdade, comentara alguma coisa sobre a sua casa, herança que provavelmente seria dele…

–– Raul às vezes, é uma criança. Mas vamos entrar, não ficaremos conversando aqui no portão, até porque está meio frio, não acha?

Ricardo concordou e avisou que teria pouco tempo, no máximo uma hora, em virtude do compromisso no hospital.

Entraram na casa. Uma sala enorme, com alguns quadros inexpressivos na parede.

Sara o convidara a sentar-se numa das poltronas e afastou-se, dizendo que traria um café. Ricardo insistiu que já havia tomado café no hotel e que não teria muito tempo. O ideal é que fossem direto ao assunto.

Sara então, sentou-se na poltrona a sua frente. Ficou em silêncio, observando-o, o que o incomodou um pouco. Por isso, engatou o assunto:

–– A senhora disse-me ao telefone que gostaria de falar-me na ausência de seu filho. O que aconteceu?

–– Bem, eu diria que não aconteceu absolutamente nada.

–– Como assim?

–– Deixe-me explicar. Raul tem passado por um período muito difícil, desde que brigou com a namorada. Ele estava muito apaixonado, sabe?

–– Sim, ele me contou.

–– Acho que a separação o perturbou de alguma forma, porque anda inventando coisas, anda fantasiando, entende?

–– A senhor se refere aos crimes?

–– Exatamente. Quero dizer, mais especificamente, ao ataque que ele sofreu.

–– Ele foi atacado perto do petshop, no tal parque perto da loja. Foi isso que ele falou.

–– E você acreditou nesta história?

–– Por tudo que ele descreveu, pelo verdadeiro pânico que parece estar sentindo, não teria motivos para duvidar.

–– Mas não acha que aquela história do homem no carro oferecer carona é pura ficção? E depois, perder um cachorro, ele tentar ajudar e ser atacado! É muita fantasia, pelo amor de Deus!

–– Definitivamente, a senhora não acredita nele!

–– Pobre do meu filho! Ele anda imaginando estas coisas. Ele não tomou nenhuma dose de insulina a mais e se tomou foi a normal, de todos os dias. Ele começou a imaginar estas coisas… Tenho medo de que esteja enlouquecendo…

–– Muito bem, tudo é muito estranho, realmente. A história é até um pouco absurda, mas e quanto aos outros crimes? As vítimas existem, estão em todos os jornais. Há um assassino solto por aí.

––É verdade, existem sim. E nem sabemos se foram mortas pelas mesmas pessoas. Mas quanto a ele… não aconteceu nada. Por que o deixariam vivo, você já se perguntou isso?

–– A explicação dele é convincente. Ele seria o único que é realmente doente, por isso se salvou. Segundo ele, injetaram insulina nos outros e estes não sofriam da doença.

–– E quem pode provar que morreram disso?

–– É o que ele quer que eu ajude a provar, conversando com os peritos, com os inspetores que cuidam dos casos. Se fizerem necrópsia nos corpos das vítimas…

–– Se eu fosse você não me envolveria com isso. Vão chegar a um resultado lastimável…
.

–– Como assim?

–– Quero dizer, absurdo. O que eu quero, na verdade, o motivo que o chamei aqui, além de dizer isso, é que você não o abandone, que o ajude a sair dessa situação, entende? Eu preciso que meu filho volte à realidade. Que ele pare de pensar nestas bobagens, que volte a viver! Faz dois anos que se separou dessa mulher que ele tanto venera, agora chega. Tem que esquecer, tem que arranjar um trabalho decente. E só você pode ajudá-lo.

–– Eu estou tentando, dona Sara.

–– Sei, mas você tem que mudar o modus operandi, entende? Tem que esquecer essa história de crimes e levá-lo a se divertir, a conviver com outras pessoas, quem sabe lembrar do passado, do tempo em que eram crianças, rir um pouco, beber nos bares, saírem. É o que ele precisa. Eu até sugeri que você morasse aqui, por um tempo.

–– Foi a senhora que sugeriu?

–– Sim. Não é uma boa ideia? Até você encontrar um lugar para ficar. Esta cidade é pequena, não comporta bons apartamentos. A minha casa é grande, antiga, mas bem aprazível. Você terá um quarto e uma suíte, só sua. O que acha?

–– Raul lhe falou de minha namorada? Ela pretende vir para cá.

Sara aquietou-se. Levantou-se e perguntou novamente se ele não queria café. Desta vez, também sugeriu um chá. Ricardo recusou, dizendo que estava na hora de ir.

–– Eu compreendo meu filho, vá, desempenhe bem as suas tarefas e seja um bom médico. Você tem tudo para ser um grande profissional, diferente de Raul, infelizmente. Mas vá, daqui a pouco, ele estará em casa novamente. Pode ser, que mude de ideia e esqueça essa história de crimes.
Sara interrompeu-se por um instante e antes que ele saísse, pediu:

—- Espere, antes de sair me prometa uma coisa. Não diga nada a Raul sobre a nossa conversa. Ele tem tanta confiança em você, que se soubesse que esteve aqui, talvez desconfiasse de alguma coisa.

Ricardo concordou e afastou-se rapidamente.

quinta-feira, março 17, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXI - PENÚLTIMO

A SEGUIR (17/03/2016) O 21º CAPÍTULO DO NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA". ESTE É O PENÚLTIMO CAPÍTULO. NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA, DIA 22/03/2016, APRESENTAREMOS O ÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSA HISTÓRIA.

Capítulo 21


Fonte da ilustração: Blog "Vientos del Brasil"http://blogs.elpais.com/vientos-de-brasil/2013/10/ de Juan Arias

Não se pode afirmar que tudo transcorre na rotina, que um dia sobrepõe ao outro naturalmente, sem que nada de novo aconteça.

Sempre que olho na janela, ainda vejo resquícios do dia anterior, ou das noites que passaram insólitas sem me trazer nada de bom, as não ser as dores habituais nas costas, na alma, no coração. Talvez Susana seja condenada, não por ter realizado a eutanásia, mas por homicídio, tudo porque uma testemunha a viu abreviar a vida do pai. Estes casos não chegam à justiça, porque o médico age a pedido do doente ou dos seus parentes, se incapacitado para tomar alguma decisão sobre a sua vida. Talvez este seja o primeiro registro de alguém condenado por eutanásia no Brasil e eu não pude fazer nada para ajudá-la.

Não adiantaria ceder às chantagens de Roberta Célia, porque ela teria sempre este trunfo nas mãos, para viver eternamente acusando-a.

Não, o melhor seria enfrentar a situação. Ela precisava recuperar o passado, exorcizar de sua vida o peso da culpa e do remorso, mais em função da sociedade do que de seu espírito. Enquanto a justiça elabora o processo, seu advogado encontrou um atenuante, visto que o destino inexorável, também lhe reservou pequenas brechas para a salvação.

Após voltar de uma entrevista, cumprindo a pauta de jornalista, deixara o gravador ligado, sem jamais imaginar que registraria para sempre o último pedido de seu pai.

A justiça, às vezes, se dá, por caminhos estranhos.

Eu estou só, ainda na minha janela, não tenho o velho para espionar, nem pessoas interessantes surgiram para que tivesse um novo cenário para passar o tempo.

Entretanto, se por um lado, estou tranquila, porque não estou tão solitária, por outro, sinto-me atingida por extrema angústia, por ter ficado ausente ao clamor dos que lutavam na ditadura, quando Jaime era uma voz urgente na imprensa, quando se reunia a grupos para travar lutas que denunciavam os desmandos que ocorriam no País.

Esta angústia hoje me consome, porque desperdicei a oportunidade de me envolver, de tomar uma atitude ativista. Ao contrário, me exilei da história, me omiti entre os combatentes do regime, me acovardei.

Quando Jaime foi até Serra Pelada e fez aquela matéria que incomodou tantos os militares, eu não me rebelei, não fiquei inteira do seu lado. Ao contrário, me insurgi contra ele, achei que estava se envolvendo em seara alheia, que não devia se meter em política. Mas eu também fazia política, só que do lado contrário, apoiando de certa forma a tese do regime vigente. É o que pretendiam, alienar a população, execrar qualquer opinião contrária, subjugar as ideias. Eu me omiti. Ficou-me este soco no estômago, este vazio, esta vontade de gritar, de dizer-lhe porque me intimidei, porque não fui até os quartéis, porque não o procurei em desespero.

Talvez por isso, eu resista tanto em expor a sua história, em mostrar o seu engajamento contra a repressão, a sua ousadia, o seu heroísmo. Talvez, eu somente me importe comigo mesma, porque sei que a vida dele é muito mais valorosa, muito mais digna, muito mais interessante e exemplar, para ser contada. Tudo, porque lutou e foi um homem amoroso com o seu país, com a sua pátria. Não queria entregá-la de mão beijada nas mãos dos torturadores, dos usurpadores da vida brasileira, dos queriam transformá-la num reduto onde poucos tinham privilégios e o povo se alienava empanturrando-se de futebol, carnaval e a falsa integração nacional.

Sinto o grito na garganta, o grito que não dei, a marca que não deixei, o gosto amargo que engoli.

Sinto-me fraca e triste.

E quanto mais ele se sobressaía na sua fortaleza, menor eu me tornava.

Agora, não mais importa. Alicerçava a minha dor na perda de meu filho, no ódio de minha nora, na indiferença de meus irmãos, na irritação com Dulcina, no cuidado com o velho do apartamento da frente, na dificuldade de meu passado, na insônia interminável.

Agora eu sei que somente queria esquecer o passado que negligenciei neste longos anos de pesado arbítrio.

Eu nunca levantei bandeira, nunca o segui, nunca o apoiei o meu marido na atividade política.

Ao contrário, me acomodei na minha profissão, transformando o pranto de tantas Marias e tantos Jaimes, lá fora, em notas musicais no meu piano. E, infelizmente, eu tinha conhecimento de episódios terríveis, sangrentos, em que o cidadão comum era apontado como um pulha, um homem de segunda categoria, que não deveria sequer ser ouvido. O que na verdade valia, era a força, a exceção, o arbítrio, o poder autoritário.

Todos se acovardaram. Todos temeram por suas vidas, sua estabilidade, seu canto. Ele, entretanto, lutou como pôde, até morrer. Até ser preso, torturado, transformado num ser desfigurado, sem pensamentos, sem linguagem, sem opinião, sem atitude, sem vida. Podaram-lhe a liberdade, quando o impediram de escrever, quando o impediram de transmudar em realidade o que via pelas lentes obscuras da censura.

Ainda há esta ferida aberta, que não cicatriza, enquanto o processo político sofrido pelo País nos anos de chumbo não for devidamente aprofundado, para mostrar às futuras gerações, a nossa história real, sem o dourar conciliador e cínico da grande mídia.

Ainda me pergunto e me questiono, o que realmente aconteceu com Jaime, enquanto centenas de mulheres deste País devem se fazer as mesmas perguntas, a cerca de seus maridos, seus amantes, seus filhos. Elas talvez tenham tido a dignidade de gritar também naqueles dias cinzas e nublados. Eu apenas conservei os meus dias de luz.

Ainda bem que acordei em tempo para ajudar Susana a escrever o livro. Ninguém mais tomará o lugar de Jaime.

terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

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