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sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Duas sensações jamais serão iguais

Às vezes, pensamos que podemos repetir o passado e viver aqueles momentos que julgamos felizes e únicos. Entretanto, nada pode ser revivido, nada volta. Não voltam os momentos felizes, nem quaisquer lembranças se tornam acontecimentos novamente.

O pensador Heráclito dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio, pois quando nele se entra, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Seguindo o raciocínio de Heráclito, podemos afirmar que ao mergulharmos na praia, jamais teremos as mesmas partículas de água, os mesmos movimentos, as mesmas marolas. Nem mesmo o ar, os ventos e o calor do sol serão os mesmos. É uma outra praia, um outro mar, um outro rio, um segundo depois de termos entrado. Quando se caminha na areia e retornamos no mesmo espaço, as pegadas nunca mais serão as mesmas. Nem as ondulações da areia, nem os grãos que mascaram os pés, nem o sol que as aquece. Nem os animais visíveis e invisíveis, nem a poeira que se estabelece a nossa passagem, nem a deformação produzida. Será outro momento, outro viver.

Quando a chuva cai inesperada num dia de verão e passamos pela rua, sentindo o cheiro da terra molhada e os pingos derramando-se pelos cabelos, escorrendo sobre os olhos, encharcando a camiseta; um pequeno mundo só nosso, ali acontece. Outrossim, voltemos pelo caminho escolhido, recebamos toda a água da chuva e esta jamais será a mesma. Nunca aquele momento se repete. Será sempre um novo momento. O mundo não se repete, mesmo que os pensamentos regridam, até mesmo estes, terão outros insights que denotam novas formas de contemplar aqueles mesmos contornos retrógrados. Por isso, usamos a palavra neo, um elemento de composição, que significa novo, uma nova maneira de ver.

Por outro lado, não se pode afirmar que aquela pegada na areia anterior foi melhor do que a segunda, porque elas têm elementos diferentes para se construírem e vai depender de quem as produziu. Quem sabe, o segundo momento foi o melhor para determinado grupo ou pior para outro? Dependerá exclusivamente da sensação de cada um. Não há um padrão, não há uma lei imperativa que decida o que foi melhor, se a pegada do passado ou do presente. Aqueles movimentos nas águas, o mergulho no rio, o sentir a água gelada contornando nosso corpo, transformando-o para aceitar o frio e se tornar viável, a ponto de não mais sentirmos o frio e apenas o prazer que inunda nossos sentidos. Há quem se apodere desses sentimentos de prazer e há os que se afastam, não percebendo a presença da água, da mesma maneira. E estes, podem apreciar melhor as águas do presente, não daquele momento. Até porque, são outras águas, outros sentidos, outras percepções. Como dizia Heráclito, nem mesmo o rio, será o mesmo. Ele terá outro destino, outras águas, outras espécies que não se manifestarão naquela circunstância.

Melhor então, que tenhamos os sentidos apenas com o despertar da alma, com o eleger o instante, sem comparações, sem pensar que o somente o passado era exemplar, porque os instantes e seus fatos e até as suas lembranças, jamais serão os mesmos. Ficam em nossa memória as lembranças boas, que não impedem de vivermos outros momentos, embora parecidos, pois eles serão sempre distintos. Mas que os lembremos, no futuro, com o mesmo amor e cuidado, como fazemos com os antigos.

sábado, julho 16, 2022

Traço caminhos

Quando vires minha mão estremecer, não faças diagnóstico sobre meu estado físico ou emocional. Quando perceberes meu olhar flutuar, não penses que meus sonhos já se foram. Quando ouvires meus argumentos, não te surpreendas com meu desabafo dilacerado. Quando notares que mal me movimento nas noites, não julgues a falta de jeito. Não conheces minhas dores, nem meus pensamentos. Não sabes de onde venho e de meu desamparo. Não peço teu acolhimento, talvez apenas teu olhar. Pode ser assim, oblíquo e disfarçado, pode ser apenas a visão de um segundo. Pode ser um gesto perturbado de um espaço invasivo, mas que não seja hostil. Não precisas falar, nem sorrir. Talvez, apenas que reconheças a minha humanidade, como a tua.

Quando estiver em frente a tua casa, na soleira de tua porta, no toque da campainha, apenas pergunta o que quero. Saberás da minha fome como necessidade básica e também emocional. Saberás que vou além do ser, quase objeto, que perpassa a tua fronteira, sou também alma escondida em vestes precárias, mas que se assemelha a tua. Não quero a tua culpa, nem o teu medo, nem as dores que transfiguram tuas emoções. Sei que somos iguais, as dores não escolhem o sujeito, porque nossa vida é assim, mediana, só isso. A diferença entre nós, é que podes agir, de algum modo. Eu, apenas traço caminhos em círculos e às vezes, num deles, também te encontro. Vivo passivamente, esperando não sei o quê, pois se já tive passado, não tenho futuro.

Que teu ódio não faça de mim, o alvo, mas aos que controlam as armas que nos ajudam a matar.


Iustração: https://pixabay.com/pt/photos/crianças-favelas-pobreza-pobre-2876359/

quinta-feira, março 21, 2019

Todos eram puros e inocentes no passado? Nem tanto!

Acho notável que as pessoas tenham boas lembranças e sintam saudade dos tempos de infância, entretanto, há coisas que não entendo. Não entendo quando afirmam com veemência que naquela época, tudo era maravilhoso, a ponto de haver uma uniformidade nos costumes, cujos cidadãos eram pessoas extremamente afáveis, solidárias e felizes. As crianças eram educadas, disciplinadas e prestativas, os pais severos, conciliadores e gentis, os professores profissionais exigentes e respeitados na sala de aula e o mundo girava sob The The Sound Of Music, da Noviça Rebelde. Segundo estes relatos, os meninos entravam na igreja compenetrados, arrumando o cabelo e fazendo silêncio para ouvirem as orações, enquanto as meninas, por sua vez, se deparavam caladas, em frente aos santos, rezando para que suas provas não fossem muito difíceis ou para serem pessoas melhores. Os vizinhos sentavam nas calçadas, tomavam chimarrão ao anoitecer e jogavam conversa fora. Todos eram amigos, e nos natais, compartilhavam a alegria e o amor, que se estendia entre todo o bairro. Nas escolas, o hino nacional era cantado diariamente e os professores rezavam antes de iniciar a aula. O mundo era feliz e puro. Todos viviam numa redoma de propaganda de margarina. O pai jamais voltava cansado do trabalho e a mãe sempre apresentava um manjar para esperá-lo, sem qualquer queixa dos filhos tão corretos e obedientes.

No entanto, me pergunto, se este mundo idealizado existiu mesmo ou somente ocorreu na mente dos saudosistas, que com estas imagens oníricas produzam uma saída para suas angústias, como ponto de partida para a esperança. Sim, porque todos queremos um mundo melhor. E todos, em geral, vivemos cenas parecidas, com famílias na calçada conversando, crianças brincando na rua até o anoitecer, os professores emblemáticos em suas disciplinas e os pais atentos e severos nos momentos adequados. Estas cenas agradáveis ficaram em nossas mentes e as selecionamos para identificar um passado que nos foi grato. Mas vejam bem. Eu não vivi neste mundo, pelo menos tão bordado de azul e cor de rosa, como se o arco-íris pousasse sobre nossas cabeças a cada entardecer. Não. Havia situações semelhantes às idealizadas do passado, mas como tudo na vida, havia também o outro lado. Por exemplo, na escola em que fiz o curso primário, a Escola São Luiz, nós apenas ouvíamos e cantávamos os hinos em dias cívicos, principalmente nos dias da semana da Pátria, e mesmo assim, apenas uma turma era escolhida, não todo colégio. Durante a semana da Pátria, uma turma devia hastear a bandeira e cantar o hino, assim sucessivamente, para que todas as daquele turno, participassem nos dias subsequentes. Jamais entoamos o hino diariamente e nunca desfilamos no dia da Independência. Já no Colégio São Francisco, só participei do desfile da Semana da Pátria, uma única vez, porque não desfilamos nos demais três anos que faziam parte do tempo de ginásio. Isso, que estávamos em plena ditadura. Por outro lado, as crianças não eram tão obedientes, disciplinadas e educadas como se anuncia por aí. Lembro, que certa vez, alguns alunos se prepararam para dar um susto no professor de inglês, do qual não gostavam muito e punham apelidos, às vezes, nem tão edificantes. Eles colocaram a lixeira sobre a porta e quando o professor abriu, a mesma caiu quase em sua cabeça, assustando-o e sujando todo o piso da sala. Ele disfarçou para não se sentir humilhado e disse uma piada qualquer. Aí, me pergunto, onde ficou a disciplina? E a coragem do professor em enfrentar àquela situação? Pode ter sido uma reação peculiar, talvez outro no lugar dele, agisse de modo diferente. Mas, quanto ao fato em si, ocorria de forma quase rotineira nas escolas. Havia bullyng e os professores não sabiam lidar com as situações. Um outro aluno colocou um preservativo na cadeira do professor, e quando o mesmo chegou, ficou confuso, sem saber como agir. Ele devia ter aproveitado para falar sobre o controle da natalidade, talvez, mas como a maioria, não tinha a tranquilidade nem o conhecimento para discutir a questão. Sorriu e não sentou o tempo todo na cadeira, porque não conseguiu tomar uma atitude para retirar o objeto. Não o critico, era a concepção de educação e conhecimento da época. Neste tema de educação sexual, ocorriam absurdos em virtude dessas incoerências do período no qual tudo era proibido (pelo menos para o povo comum). Na minha sala de aula, um professor fez um questionário para saber se estávamos interessados neste assunto. Os doces e inocentes alunos assinalaram em peso, que queriam educação sexual, que tinham muitas perguntas a fazer. O professor se acovardou e finalizou que responderia individualmente, se alguém precisasse. Claro que isso nunca aconteceu.

Por outro lado, embora não soubéssemos praticamente nada dos problemas das pessoas próximas, vizinhos ou amigos, os adultos descobriam e comentavam muitas vezes, casos escabrosos sobre as famílias. Está aí Nelson Rodrigues para provar. O homem é sempre igual em qualquer sociedade e quanto mais restrito o seu acesso à educação e às fontes informativas sobre as relações sociais, menos humanizado se torna, e embora escondido, utilizava-se das mazelas para conseguir os objetivos mais obscuros, tanto quanto agora. Sabíamos de maridos que traíam as mulheres e tudo era ocultado. Mulheres que se sujeitavam aos desmandos dos maridos e até às ofensas morais e maus-tratos físicos, porque eram completamente dependentes, como donas de casa, incapazes de sobreviver e ter a sua profissão. Havia casos de estupros, de padres pedófilos, de pastores corruptos, de médiuns charlatães e estes casos eram comentados à boca pequena, embora todos soubessem e raramente viessem a público. O mundo é o mesmo de antigamente, as pessoas são as mesmas, a humanidade servia ao senhor dinheiro, fazia guerras e o homem se locupletava no poder, no autoritarismo, assentado num falso desejo democrático. Claro que havia o povo honesto, como existe hoje. Claro que havia a inocência, porque desconhecíamos quase tudo, inclusive na questão da sexualidade, embora eu acredite que nós não éramos inocentes, éramos ignorantes tentando descobrir alguma coisa. Claro que havia as brincadeiras, o futebol de rua, a bola de gude, mas havia também as armadilhas na areia para que o outro caísse, havia o roubo no jogo de cartas, havia o chamado catecismo de pornografia, que alguns guris sempre carregavam consigo, havia o bando de meninos que se juntavam para enfrentar o valentão e havia os valentões que batiam nos mais fracos, por pura vaidade e afirmação de macheza. Para as meninas, a ilusão de brincar de casinha, de fazer questionários sobre meninos, de sonhar com um príncipe encantado, mas também a fofoca na sala de aula, a delação dos meninos que desobedeciam certas regras, as conversas escondidas nos cantos das escadarias da escola, o comentário mais apimentado sobre uma guria que parecia mais moderna para a época. Havia o cigarro proibido, já na adolescência, havia o levantar a saia de pregas, deixando-a mais curta, acima dos joelhos, havia os namoros mais avançados. Inclusive, havia os abortos, os casamentos apressados para provar que a menina era virgem embora estivesse grávida, havia a mentira. Nem todo mundo era tão santo como se propaga nos textos saudosistas.

Sem dúvida, que tenho saudades daqueles tempos de verão, dos jogos de bola, dos amigos. Mas sei, que éramos humanos e que nenhuma força autoritária ou disciplinar do mundo, nos impediria de desobedecer pequenas regras. Não é um regime reacionário, um governo fascista que trará de volta ¨os bons tempos¨, pois mesmo que conseguisse, eles voltariam imersos em suas controvérsias e ninguém jamais poderia mudar o que não tem conserto. O mundo é dualista e saber dosar é a melhor solução, sem imposições, sem ordens de cima para baixo, sem falsos moralismos. Basta haver respeito e liberdade de ação e pensamento. E principalmente, saber que a educação é o único eixo que pode nortear nossas atitudes.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/feliz-fam%C3%ADlia-desenhos-animados-1082921/

quarta-feira, agosto 22, 2018

Os trilhos dos sonhos

Observei os trilhos da velha e desativada ferrovia. Os mourões corroídos, mostrando veios em suas entranhas, com pequenas lascas adormecidas, que aos poucos se desmanchavam sob o sol. Tudo aos poucos se consumia pela ação do tempo.

Quem dera, pudéssemos, num passe de mágica, reconstruir a malha ferroviária, restaurar os trilhos reluzentes e seus dormentes com a bitola adequada, permitindo que centenas de trens atravessassem a cidade, encontrando seus destinos e construindo outros, mais longínquos e eficazes. Mas a mágica é só uma ilusão e como tal, apenas ilustra nossos sonhos. .

Uma mulher de salto alto, caminha despreocupada por alguns dormentes restantes da velha derrocada. Talvez expresse intimamente a vontade de vivenciar uma história passada, um roteiro que fazia quando criança, ou um encontro que ousasse reviver. Caminha displicente e de vez em quando, se volta, oportunizando em meu olhar também um desejo de descoberta. .

O que procura aquela mulher num lugar quase abandonado, o que faz por ali, a não ser encontrar lembranças do passado ou experimentar, quem sabe, a ilusão de que a vida se desenrola da mesma forma, sem qualquer mudança ?

Agora ela parou, próxima a um tufo de ervas daninhas e parece esperar alguém. .

Mas quem passaria por ali, àquela hora, num cenário quase desértico? A não ser eu, que a vejo cada vez mais próxima, cada vez mais presente em minha realidade idealizada.

Decido aproximar-me também, pisando entre alguns dormentes apodrecidos, alguns pedaços de trilhos enferrujados e atirados a esmo, como se ali, fosse a lixeira da ferrovia. .

Talvez haja um embargo em meus sentimentos, porque, às vezes, não a vejo e fico procurando-a através de minhas lentes grossas de óculos de sol. Paro também e percebo que ela não está lá. Não há tantos barrotes como no início, nem o caminho me parece aprazível. A grama aumenta, alguns paralelepípedos avessos a passos mais decisivos, um olhar ao longe. .

Aos poucos, percebo que os apitos dos trens não sibilam em nossos ouvidos, nem as malas fazem parte do cenário à beira da plataforma, e os trens, estes estão há muito no passado, perdidos entre os desejos infantis e os sonhos de adultos. .

Quem era aquela mulher de vestido vermelho, linda, que atravessava os caminhos com passos displicentes, mas seguros, em busca de um destino que talvez nos indicasse a felicidade? Não sei. Talvez o desejo de ultrapassarmos com elegância e garra os obstáculos e enfrentarmos as reivindicações para que voltem as plataformas, os trens, as malas ao redor, os adeuses, os lenços brancos, as lágrimas nos olhos. .

Essa mulher de algum modo, indicará caminhos que não ousamos enfrentar. .

terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

quinta-feira, julho 14, 2016

IOLANDA

Fonte da ilustração: Aravind kumar, do site https://pixabay.com

Iolanda desceu as escadas lentamente. Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Estava sôfrega.

Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando a avenida deserta. Que horas seriam? Mais de 3 horas num numa madrugada qualquer da semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Um cão ladrava ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores. Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total.

Decidiu sentar-se e a madeira do banco martirizava a sua coluna. Mexia o corpo para frente, de vez enquanto para apaziguar a dor. Se pudesse, voltaria para o apartamento, aliás, se pudesse, voltaria ao passado.

Chegaria em casa e observaria Samuel estirado na cama desfeita, com o corpo seminu, o dorso à mostra e algumas roupas na cadeira, à espera do dia seguinte. Retiraria a carteira do bolso com cuidado, tentando não acordá-lo e perscrutaria tudo que houvesse ali dentro: documentos, alguma fotografia, talvez pequenas anotações e até dinheiro. Não mexeria em nada. Apenas olharia com a calma dos inocentes, como dizia o poeta. Alisaria a carteira junto ao peito, como se fosse um bem precioso e depois a devolveria, com o mesmo cuidado e carinho. Mais tarde, se deitaria ao seu lado e talvez nem dormisse; apenas ficasse observando-o como quem observa um deus. Um deus não deve ser observado, pensou, ele é quem observa, quem abençoa e traz a paz.

Ele é quem ama e cuida e protege e conforta o bem amado. Ela era apenas o ser que se sentia protegida, o ser que só existia em função daquele deus.

Agora, porém, não podia voltar atrás. O passado não lhe pertencia mais. O segundo atrás já não era seu. O mundo girava e a vida prosseguia, mas o ritmo não era seu. Por mais que se esforçasse estava ali, parada naquela praça escura e sem ninguém e como gostaria de ser possuída, estuprada, vilipendiada para ter o que realmente lhe pertencia: o nada. Nada ser, nada possuir, nada pertencer.

No entanto, tudo se resumia àquela pasmaceira da leve brisa que nem revirava as folhas nem lambia a testa, por mais que esperasse um bafejo qualquer, um suor do clima, uma lágrima do sereno. Se houvesse neblina e turvasse a noite, se ela desaparecesse na confusão de folhas, árvores, lama, postes, prédios e luzes, quem sabe o nada sobressairia na sua presença. Tão intensa e real como as outras.

Daqui a pouco, luzes viriam e a madrugada também seria passado. Daqui a pouco, voltaria para o velho apartamento e tudo seria o que sempre foi: o bradar do deus e o curvar-se à voz. Entretanto, mesmo amando e obedecendo, sabia que Samuel não mais a olharia com qualquer afeto ou demonstraria qualquer proteção. Sabia que veria a indiferença cada vez mais escancarada e sua boca se abriria para desfazer o pouco que lhe restara: alguma dignidade.

Agora, ele era pai. Não o amado, o homem que a subjugara pela atração física e paixão, o amante, mas sim o pai de um filho que não era seu. Com uma mãe, que não era ela. E lhe dissera com todas as letras e fonemas.

Quando o dia aos poucos surgiu, Iolanda fez o caminho inverso.

Olhou para o alto e ainda avistou uma estrela quase sumindo, dando lugar ao azul ainda escuro. As árvores da praça agora sacudiam mais forte, o vento até zunindo nos ouvidos. Os cães silenciaram e ela não mais sôfrega, nem cansada, só vazia, começou a afastar-se da praça.

Atravessou a avenida, onde despontavam alguns carros na primeira sinaleira e espiou pelo vidro da porta do prédio. O porteiro parecia dormir no balcão.

Abriu a porta, fingiu não vê-lo e subiu a escada devagar, deslocando-se na direção do apartamento.

Empunhou a maçaneta, girou-a, entrou, dirigiu-se ao quarto. Viu Samuel estirado na cama desfeita, com o corpo seminu, o dorso à mostra e algumas roupas na cadeira, à espera do dia seguinte. Sentou ao seu lado e esperou.

sexta-feira, janeiro 15, 2016

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa

Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos.

Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso.

Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol.

Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano.

Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta.

Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória.

Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para esquecermos a rotina, a afobação dos bancos, das lotéricas, dos shoppings.

Para deixarmos o cidadão comum e sermos especiais. Especiais de um dia de verão.

Ah, as águas de verão. As chuvas de verão. Os amores de verão. O verão que temos em mente, na memória, no passado e no presente.

O verão de nossos dias.

Os dias que virão.

gcgilson4@gmail.com

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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