
Observei os trilhos da velha e desativada ferrovia. Os mourões corroídos, mostrando veios em suas entranhas, com pequenas lascas adormecidas, que aos poucos se desmanchavam sob o sol. Tudo aos poucos se consumia pela ação do tempo.
Quem dera, pudéssemos, num passe de mágica, reconstruir a malha ferroviária, restaurar os trilhos reluzentes e seus dormentes com a bitola adequada, permitindo que centenas de trens atravessassem a cidade, encontrando seus destinos e construindo outros, mais longínquos e eficazes. Mas a mágica é só uma ilusão e como tal, apenas ilustra nossos sonhos. .
Uma mulher de salto alto, caminha despreocupada por alguns dormentes restantes da velha derrocada. Talvez expresse intimamente a vontade de vivenciar uma história passada, um roteiro que fazia quando criança, ou um encontro que ousasse reviver. Caminha displicente e de vez em quando, se volta, oportunizando em meu olhar também um desejo de descoberta. .
O que procura aquela mulher num lugar quase abandonado, o que faz por ali, a não ser encontrar lembranças do passado ou experimentar, quem sabe, a ilusão de que a vida se desenrola da mesma forma, sem qualquer mudança ?
Agora ela parou, próxima a um tufo de ervas daninhas e parece esperar alguém. .
Mas quem passaria por ali, àquela hora, num cenário quase desértico? A não ser eu, que a vejo cada vez mais próxima, cada vez mais presente em minha realidade idealizada.
Decido aproximar-me também, pisando entre alguns dormentes apodrecidos, alguns pedaços de trilhos enferrujados e atirados a esmo, como se ali, fosse a lixeira da ferrovia. .
Talvez haja um embargo em meus sentimentos, porque, às vezes, não a vejo e fico procurando-a através de minhas lentes grossas de óculos de sol. Paro também e percebo que ela não está lá. Não há tantos barrotes como no início, nem o caminho me parece aprazível. A grama aumenta, alguns paralelepípedos avessos a passos mais decisivos, um olhar ao longe. .
Aos poucos, percebo que os apitos dos trens não sibilam em nossos ouvidos, nem as malas fazem parte do cenário à beira da plataforma, e os trens, estes estão há muito no passado, perdidos entre os desejos infantis e os sonhos de adultos. .
Quem era aquela mulher de vestido vermelho, linda, que atravessava os caminhos com passos displicentes, mas seguros, em busca de um destino que talvez nos indicasse a felicidade? Não sei. Talvez o desejo de ultrapassarmos com elegância e garra os obstáculos e enfrentarmos as reivindicações para que voltem as plataformas, os trens, as malas ao redor, os adeuses, os lenços brancos, as lágrimas nos olhos. .
Essa mulher de algum modo, indicará caminhos que não ousamos enfrentar. .
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