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sexta-feira, agosto 04, 2017

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.

Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.

Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.

Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.

Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.

Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.

Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.

Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.

Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.

Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.

Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.

Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.

Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.

quarta-feira, junho 22, 2016

O AMOR E A PIEDADE : sentimentos distintos


Há milhares de expressões que tentam expressar e explicar o que é o amor. Platão, ligando o amor à beleza e ao bem, dizia que o amor liberta o ser humano e o conduz à verdade. Para Santo Agostinho, o amor é o nexo que une as pessoas e as diviniza. Somente o amor é capaz de explicar a vida da alma e a sua possibilidade de se elevar ao conhecimento unitivo de Deus. Enquanto Platão se preocupava em conceber o amor como o elo, a ponte entre o corpóreo e o espiritual, entre o relativo e o Absoluto, entre o particular e o Universal, Santo Agostinho via o amor como o nexo entre o divino e as pessoas.

Mas há centenas de filósofos que dissertaram e tentaram explicar o amor, como Spinoza, Jean-jacques Rousseau, Friedrich Schleeirmacher, Aristófanes, Arthur Schopenhauer e tantos outros. Do mesmo modo, os poetas e compositores à sua maneira, cantaram e encantaram o amor em todas as suas nuances.

Eu não seria capaz de fazer uma explanação a respeito do tema com esta intensidade e conhecimento, muito menos buscar novas possibilidades de discussão deste sentimento, porém ouso argumentar sobre determinadas situações que podem identificar ou não o amor, seja em que especificidade se encontre: o amor filial, materno, paterno, fraterno, conjugal, etc.

Por exemplo, acredito que o sentimento do amor não implica ou não exige compaixão.

Não se deve acreditar que, ao se ter piedade por alguma pessoa, passaremos a amá-la, como condição inerente a este sentimento. Uma coisa não implica na existência da outra. Na verdade, tratam-se de emoções e sentimentos totalmente distintos.

O amor não depende de outro sentimento para se desenvolver, basta-se a si próprio, é intrínseco à capacidade de amar. Alimenta-se da admiração diária, do carinho efetivado, da troca de emoções que se estabelecem nos encontros.

Ama-se por vários motivos, pela beleza, pelo carinho, pela proximidade afetiva, por laços familiares, por admiração, mas jamais por compaixão. Nunca devemos realçar ou incentivar as características negativas de uma pessoa, transformá-la num pobre coitado, como se isso lhe possibilitasse o passaporte para almejar o amor. O que pode acontecer nesta presumível insistência é um sentimento oposto, uma aversão a tal pessoa.

Pessoas que se sentem inferiorizadas em seus relacionamentos ou enfrentamentos a situações cotidianas, costumam afirmar que a sua situação é muito mais difícil do que a de outros em casos semelhantes. Segundo elas, as outras pessoas com que se relacionam são os verdadeiros empecilhos. Elas nunca vencerão os obstáculos por este ou aquele motivo, como se através desta conduta recebessem como prêmio de consolação, a condição de serem amadas.

Pode-se ter compaixão, não amor.

Por outro lado, o indivíduo que passa a vida inteira suplicando amor, realçando as suas inaptidões, fato corrente, segundo a própria literatura científica, produz um afastamento cada vez maior do bem amado (seja este o marido, a esposa, o amigo, o parente próximo, o vizinho, o(a) amante).

Uma pessoa que demonstra amargura, numa luta constante contra a vida, que está em desconforto com a realidade e nada lhe é favorável, acaba afastando quem poderia descortinar um mundo em parceria, em união e agradável convivência. Entretanto, o que geralmente acontece é que o suposto candidato a amar sente-se obrigado a aturar tal sofrimento, em virtude da afeição que possui ou acaba definitivamente afastando-se.

Nunca devemos minimizar as qualidades de nossos filhos, exaltando as suas deficiências e transformando-o num coitadinho. Ele apenas colherá os frutos de ser considerado (e de se achar) o pior entre todos.

A criança, via de regra, acaba introjetando que é um ser inferior, incapaz de exercer seu domínio sobre as situações e de atingir seus objetivos. Acredita enfim que é um coitadinho, o que certamente gera um círculo vicioso, sentindo-se incapaz para a vida e tornando-se realmente um incompetente. A criança não consegue fugir da situação que lhe foi criada.

E apesar de toda carga de presumíveis deficiências que carregará pela vida, não receberá amor, nem carinho por isso, ou se receber, será de uma forma burocrática e social, para que não se sinta pior ou apenas para não desagradar os pais.

Piedade é o pior sentimento que uma pessoa deve despertar no outro. Não constrói nada, não o engrandece como ser humano, nem como cidadão.

Claro, que há momentos em que este sentimento de solidariedade é adequado, compreensível e necessário, mas não deve existir como regra no apequenamento intencional do caráter para atingir tal sentimento.

Não se deve creditar os defeitos dos filhos aos outros. Eles são criaturas normais, e tal como seres humanos que são, erram e possuem dificuldades como todos os outros, não são (nem devem ser considerados) santos.

Os chamados “outros”, tais como educadores, médicos, amigos, patrões, colegas ou familiares, não devem ser os únicos culpados pelos erros de nossos filhos.

Por vezes, estas pessoas podem ser culpadas, sim, de dificuldades imputadas ao filhos, e neste caso devemos lutar para esclarecer os fatos, tomando as medidas necessárias para que a justiça prevaleça. Devemos sim, ajudá-los, caso a situação exija a nossa interferência.

Por outro lado, devemos nos devotar na resolução dos problemas, examinando com clareza e imparcialidade todas as facetas da complexidade dos fatos, com a compreensão de que nem sempre nossos filhos estão com a razão.

Quando nossos filhos erram, somente crescerão internamente se enfrentarem (e aceitarem) os seus próprios erros e aprenderem com eles.

Não será apoiando indiscriminadamente as suas condutas, ou seja, passando a mão em suas cabeças ou acusando os “outros”, que os ajudaremos a crescer. Se a culpa de seus fracassos ou frustrações recair sempre noutras pessoas, pensarão que a vida lhes deve respostas imediatas, segundo as suas ideias preestabelecidas, alicerçadas em argumentos irredutíveis e nunca amadurecerão. Sempre haverá culpados para seus erros nas adversidades da vida. Não é assim que acontece.

Retomando, jamais se deve pensar que sendo coitadinhos, os filhos serão mais amados.

O amor é incondicional, não impõe regras, acordos, problemas ou adequações. O amor é íntegro. Ama-se sem quaisquer adereços de necessidade ou sofrimento. Ama-se porque o amor é intrínseco ao ser humano.

O homem cansa-se do sofrimento, da queixa, do estigma de pobrezinho. Cansa-se da necessidade de amar pela condição da falta, do problema, do impedimento, da deficiência, da covardia.

Amar não é sinônimo de dificuldade em se enfrentar a vida, ao contrário, de coragem e grandeza de coração.

Admira-se aquele que luta para vencer as adversidades, aquele que se esforça para atingir um ideal, aquele que se supera numa situação adversa ou que almeja tornar-se um ser íntegro e capaz de produzir desassombros pela vida.

É justo e normal sofrer infortúnios, o que não é justo nem normal é alimentar o sofrimento, sobreviver de modo medíocre através da dor, tendo enfim, a necessidade de ressaltar este sofrimento para obter deploráveis ganhos de origem afetiva.

Belo e dignificante é lutar até o fim, mesmo que não se atinja o ideal, que não se consiga a meta proposta, mas que se tenha vivido com dignidade e alcançado o mínimo do que se desejava para ser feliz.

E por fim, que não se tenha desistido no meio do caminho, tendo a certeza de que se acomodar na atribulação, não é mais inteligente do que ir à luta.

Coragem não é gritar aos quatro ventos o que se pensa, sem se ouvir os demais, coragem é permanecer na luta.

Coragem é transformar a sua vida numa escada, onde cada degrau é construído para uma vitória, mesmo que não seja a almejada, mas uma vitória interior, de maioridade emocional, de segurança própria, de sobrevivência digna.

Talvez a felicidade seja apenas isso: lutar, lutar e lutar.

E o amor, este não tem restrições. Este incide no belo, no feio, no afeto, na emoção do outro, na alegria, na paz, no que subtrai a alma através dos olhos. Admiração plena ou aversão pura são coisas distintas. Amar é outra coisa. Sem condições.

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