Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens com o rótulo amigo

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara. Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar. Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento tr

O que Saint-Exupéry, um amigo e as redes sociais tem a ver?

Há muitas coisas que nos chamam a atenção, quando participamos de redes sociais como o facebook, o twitter, o Snapchat, Instagram, entre outras. Por exemplo, há pessoas que conhecemos ou não e que compartilham assuntos de mesmo interesse, como no meu caso, a literatura, a política, filmes, músicas, ciências da informação, com ênfase em biblioteca, os livros enfim. Não sou muito dado a bate-papo online, nem participar de redes de orações, discussões religiosas, jogos, nem muito menos expor coisas muito íntimas, como por exemplo, um beijo apaixonado em minha mulher (porque se já foi fotografado, por certo, feito alguma pose e publicado na rede) então, já este beijo não é tão espontâneo assim, é meio dramaturgia, não é mesmo? Claro, que ocorrem os flagrantes e isso é legal. Mas falo daqueles encontros arrumadinhos, tudo muito certinho e o beijo tascado de forma cinematográfica. Ah, isso é engraçado. Há coisas intimas também, como um jantar em família, na alegria em estar com a família n

Luta por quem está contigo

Eu costumo comentar com colegas ou amigos, que sempre que havia um desentendimento de alguém que de algum modo me feria, eu não ficava me lamuriando, caso a pessoa fosse apenas um colega ou conhecido. Claro que sentia, mas sentiria muito mais se eu gostasse realmente da pessoa, se fosse minha amiga ou parente. Ficaria muito triste. Afinal, essas me tocavam de perto. Em 2014, o Papa Francisco disse a frase que corrobora com o que penso: “Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.” Eu acrescentaria o verso do Quintana “eles passarão, eu passarinho”. Sem ódio, sem tristeza, apenas exaltar a alegria dos que a compartilham. Vida que segue.

Recuerdos

Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão. Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo. Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada. Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza. Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora. Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava. Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há ta

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado. – Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me

Alfredo Martins: o homem ideal e as várias formas de amar

Todas as noites Alfredo Martins fechava a porta de ferro do velho cartório, sempre de maneira metódica, puxando-a devagar para não desengatar o trilho e agachando-se enquanto trazia até o chão, para finalmente engatilhar o trinco e o cadeado ao mesmo tempo. Era de praxe. Era o modelo deixado por seu pai. Era o correto. Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Casado, sem filhos e afeito a servir à comunidade através de missões filantrópicas de forte poder ético, o abonavam como um homem de qualidade familiar e social. Religioso e pacato em sua vida particular, Alfredo Martins tinha um único único hobbie, que era a pesca e o fazia apenas acompanhado da esposa, porque considerava de bom tom experienciar também os prazeres como um casal. Naquela manhã porém, Alfredo Martins sent

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa. Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma? Uma peque