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sexta-feira, junho 24, 2016

A avalanche de sons

Hugo acordou com um certo zunido nos ouvidos. Na verdade, nem sabia se o ruído vinha de fora ou era um som interno, que não conseguia identificar.

Aos poucos, diferentes sons eram ouvidos e tinha a impressão que várias pessoas falavam ao mesmo tempo, bem perto de si, além de outros barulhos.

As paredes estalavam, os cabos de luz produziam pequenas alternâncias de ruídos, como movendo-se levemente e até mesmo os plugues das tomadas emitiam sonoridades estranhas. Parece até que borboletas batiam asas próximas ao seu rosto e um cri-cri de grilos se alternava com zumbidos de mosquitos.

Estaria sonhando, pensou.

Levantou-se rápido e foi até a janela. Viu pequenos agrupamentos de pessoas na calçada e um burburinho intenso, como se estivessem à espera de algum acontecimento grandioso. Puxou os óculos da ponta do nariz e tentou enxergar no outro lado da rua.

As sacadas do prédio da frente estavam repletas de homens, mulheres e crianças, todos envolvidos numa balbúrdia animada. Até balões coloridos as crianças soltavam e por vezes, estouravam aumentando ainda mais o tumulto.

Hugo decidiu afastar-se da janela e tomar um banho. Faria as atividades habituais, como sempre.

Logo em seguida, iria ao Café Belém para o desjejum e jogar conversa fora com os amigos.

Não demorou muito, estava na rua, dirigindo-se ao Café, ouvindo cada vez mais forte o ruído que aumentava a cada pequena aglomeração que se formava na calçada.

Quem os visse de cima, observaria uma massa escura e uniforme que fazia e se desfazia em blocos, dividindo-se em alaridos desorganizados. Por sorte, a turba agitada e frenética vinha de outra esquina e ainda não tinha chegado às proximidades do Café com toda a sua extensão.

Finalmente, entrou no Café, no qual percebia poucas mesas vazias, na verdade, apenas duas, uma bem perto da tv gigante que ficava sempre ligada na Globo, o que o irritava profundamente e outra próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu, mas de modo estranho, pois não ouviu som algum. Parece que todos estavam calados e se falavam, era como um filme mudo.

No bar havia silêncio absoluto. Por um lado, Hugo deu graças a Deus, afinal, era tanto ruído, tanta loucura que o ideal era passar o dia no Café Belém.

O garçom, velho conhecido por trabalhar há bastante tempo na casa, aproximou-se e ele pediu o de sempre: café preto, um pão com manteiga e um pratinho com frutas. Podia ser mamão e um kivi cortado em rodelas.

O garçom sorriu, anotou o pedido e afastou-se sem dizer nada.

Que estaria havendo agora? Todos em silêncio.

Voltou-se para trás para ver se a tv estava ligada. Apenas uma imagem imóvel de um comercial de xampu, sem qualquer som.

Hugo começou a sentir um certo frio, talvez até temor pelo que estava acontecendo. Seria só com ele? Será que os demais se comunicavam e ouviam muito bem o que diziam? Será que estava enlouquecendo? Ele, um homem com tantas ideias muito bem articuladas sobre vários assuntos, um literato, um homem de cultura, engajado política e socialmente na sociedade e agora... o que estava ocorrendo no mundo, meu Deus?

Um ruga de preocupação marcava a testa de Hugo e seus olhos se voltavam para todos os lados, observando as paredes, o balcão de granito com seus vários bancos à espera de clientes, as mesas ao centro quase que completamente preenchidas, a não ser aquela próxima à tv. Hoje não haveria problema, pensou, afinal, a tv estava muda e não incomodaria ninguém. Poderia até sentar ali, na frente daquela imagem de mulher alisando os cabelos, patética, olhando o nada, a boca entreaberta querendo dizer algo que não se articulava.

Percebeu o garçom aproximar-se com o café e animou-se um pouco.

Agora poderia falar-lhe, perguntar por exemplo, sobre o futebol, ele que era um gremista fanático. Até tentou fazê-lo, mas o outro afastou-se em seguida, deixando na mesa o pedido, apenas exercendo um sorriso formal.

Hugo ainda perguntou, assistiu o jogo ontem?, mas o garçom voltou-se, apertou o seu pulso de modo consensual para dizer alguma coisa ou ser apenas gentil e afastou-se novamente em silêncio.

Hugo reclamou, que merda, que ninguém fala nada! Mas decidiu tomar o café e dedicar-se à leitura do jornal, que como sempre, o garçom, já na sua chegada, deixara sobre a mesa da qual ele se aproximava.

Hugo leu a notícia sobre Temer que criticava o Mercosul, o qual deveria ser repensado; fez um cara de repulsa e dobrou a página.

Antes de ler a crônica do Juremir Machado, deu uma passada de olhos pelas pessoas que estavam no local.

Numa das mesas havia dois homens conversando animados, um deles apontava para um tablet, mostrando algum post engraçado ou vídeo, não conseguia ver. Entretanto, nada se ouvia, como os demais, apenas aquele fechar e abrir de bocas, gestos espontâneos e empurrões em cadeiras em pleno silêncio. Só faltava ser em preto e branco para completar os quadros sequenciais, pensou Hugo.

Olhou para os demais, um casal e duas crianças noutra mesa. A menina que devia ser menor que o menino, chorava fazendo uma careta terrível, pedindo alguma coisa que os pais negavam. O homem parecia nervoso, mordia os lábios e a mulher falava, estabanada, movendo os braços e mãos como se combatesse os próprios gestos para evitar bater nas crianças. O menino estava entretido no celular e este sim, estava em silêncio, embora o ruído eletrônico do bichinho em suas mãos devia ser insuportável.

Numa outra mesa, havia um homem sozinho. Vestia terno e trazia consigo uma mochila que parecia pesada, pois escorregava a todo momento pela cadeira, caindo no chão. Devia ser muito desastrado, pois cada vez que retirava alguma coisa da mochila, como o celular ou a carteira do dinheiro, esta retomava o mesmo processo de cair. Tudo em absoluto silêncio.

Havia outros, muito mais, mas Hugo desistira deles e decidira tomar o café.

Estava delicioso, aquele pãozinho com mateiga derretendo sobre a massa esfarinhada lhe aguçava a saliva e o prazer.

Pediria outro certamente e mesmo que viesse em silêncio, mas assim daquele mesmo sabor, estava ótimo. Depois provaria as frutas em fatias perfeitas, como pedira. O pessoal do Café Belém conhecia o seu paladar.

Foi o que fez. Deixou o jornal de lado e partiu para o ataque naquele desjejum sóbrio e prazeroso.

Depois ficou observando o garçom, as atendentes que traziam as refeições, o pessoal da cozinha.

Todos pareciam muito corteses uns com os outros.

A moça da caixa também mostrava-se gentil com os que entravam ou saíam do estabelecimento.

Hugo procurou entre os seus pertences, uma caneta e um pedaço de papel. Elaborou um pequeno comentário que faria na Sociedade Literária, na qual participaria mais tarde.

Estava bem disposto, saudável e com muito ânimo para pôr em prática os seus projetos, por isso comporia um pequeno esquema do trabalho.

Sabia por onde começar e o faria por emitir posicionamento político em seus textos, embora soubesse de antemão que o grupo desaprovaria qualquer questão que não expressasse exclusivamente o sabor da brisa e o aroma das almas. Mas isso era irrelevante naquele momento.

Depois de guardar o papel e a caneta no bolso, levantou-se, deu um bom dia ao pessoal do balcão, que retribuiu com um aceno e alguns sorrisos.

Dirigiu-se à caixa, antes passando pelo garçom que se deslocava pelo corredor com um bule numa bandeja e despediu-se apenas com um aceno, porque sabia que receberia o mesmo.

Na caixa, passou o cartão na leitora, cumprimentou a moça com um sorriso e dirigiu-se à porta envidraçada.

Percebeu que nem o salto de seus sapatos faziam qualquer ruído.

Por um momento, observou pela vidraça, centenas de pessoas que transitavam de um lado para o outro, como se várias procissões andassem em sentido contrário.

Ainda olhou para trás para ver se as pessoas em suas mesas continuavam conversando e viu que o processo era o mesmo: muita conversa, muito sorriso, muitos gestos e muito silêncio.

Então, segurou firme a maçaneta e empurrou a porta com cuidado. Nisso, uma avalanche de sons, gritos, buzinas, estrondos de rojões, gritarias, ambulâncias, polícia e bombeiros, tudo misturado expandia em seus ouvidos, deixando-o zonzo e assustado.

Por isso, puxou-a com força, lacrando-a para sempre e correu para a sua mesa.

Ali, restava um silêncio absoluto.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/lego-boneca-o-por-anfiteatro-1044891/

terça-feira, março 19, 2013

CLARISSA

 


Sair à procura de algo que não se sabe, muitas vezes do que se trata: uma viagem no pequeno diário, um caderno colorido, de páginas desenhadas, margens de arabescos ou uma caneta especial, de ponta fina, da marca tal, que tinha na loja tal, naquela livraria onde compraste o teu livro. Quase sempre assim, exigente, disciplinada, austera para a idade, com atitudes impensadas para os mais velhos. Era assim, mandona, talvez autoritária, uma espécie de Mônica, amiga do Cebolinha, ou a Mônica forçuda, como a chamavam, os mais destemperados. Tinha sempre um argumento na ponta da língua, afiada, ferina, mas amiga, afetuosa e sincera. Por vezes, deixava-se levar pela ilusão e fantasia: tinha um cão imaginário, o mar, a lagoa, as árvores da praça eram entidades com vida própria (e atitudes), às quais costumava cumprimentar, relacionar-se e compartilhar com a natureza, como se suas histórias fossem tão presentes e atuais, que fizessem parte do seu cotidiano, não apenas de seu imaginário.  Não sofria nenhum desses males da mente: ao contrário, era de uma lucidez e entendimento da vida inabalável, mas sabia cultivar o sonho, a beleza de viver, pelo menos por alguns momentos, a liberdade que só os que alimentam suas mentes com a grandeza da ilusão, apreedem. Por fim,  esta fantasia se desenvolvia nas leituras que se acumulavam em dezenas de livros que costumava dissecar, tentando encontrar um sentido em cada tema, em cada trama, em cada conflito. Talvez, eu tenha grande parcela de culpa nesta maneira de ver o mundo, que aos poucos se solidificou e a fez, tenho certeza, fugir do senso comum, do mundo padronizado, das verdades absolutas e enfrentar a vida de frente. Talvez a tenha induzido, não sei se seria a palavra certa, a encontrar outros caminhos e principalmente através da leitura, e, enquanto criança, na possibilidade deste encontro com a natureza, de cultivar o amor pelas pessoas, pelo mar, pelos animais, mesmo que imaginários e cumprimentar a todos, como se cumprimenta e se deseja um bom dia, quando amanhece e se vai ao trabalho, ou no caso, para a escola. Até mesmo o sol era saudado, no caminho para a aula. Eram coisas nossas, de pai e filha, uma certa cumplicidade que me deixava feliz. Este processo se complementava também através das histórias infantis, nas quais nem sempre o vilão era o mau, ou a princesa era a protagonista. Muitas vezes, o lobo mau era um pobre coitado, perseguido por um lenhador antiecológico, acuado por uma menina egoísta, acobertada por uma velha que se fazia de doente. É, talvez assim, ela tenha conhecido a diversidade da vida e introjetado que nem todo ser é integralmente bom ou mau, que esta dicotomia do mocinho e do vilão só leva a criar rótulos,  e por aí vão tantos conceitos e preconceitos que não levam a nada. 
Ah, teve o balé com sua disciplina intensa, além das leituras e estávamos sempre ao seu lado, mesmo nos primeiros passos, nos primeiros bailados, o que para nós significava passos de primeira bailarina do Muncipal. E tudo seguindo seu trajeto: a escola, o cursinho para o vestibular, a vitória para o curso de medicina e dai por diante. 
Pois,  esta é Clarissa. Acho que ainda tem um pouco de bailarina, de leitora incansável, de fantasia, até mesmo de Monica forçuda. Mas tem o discernimento da vida em suas atitudes e relacionamentos com os amigos ou com as pessoas que encontra no dia a dia; tem a sensatez das escolhas, tem as atitudes nas quais valoriza o afeto,  o sentimento, o carinho, a verdade, o amor às causas nobres, a certeza dos que sabem aprender com as adversidades e tomar fôlego para seguir em frente. Esta é minha filha. Hoje, uma doutoranda do 5º ano, amanhã, uma médica. 

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