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domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

terça-feira, julho 21, 2015

Tio Pedro e a Mangacha

Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se a digestão estava atravancada, o fígado também era o vilão. Quando estes assuntos não eram ventilados, começava a perguntar por meus pais, indagar sobre minhas irmãs e por fim, sobre meus estudos. E quando nada mais havia a dizer, fazia um silêncio sepulcral, para o qual eu amealhava todos os temas em meus pensamentos para interrompê-lo, mas nada que dissesse parecia aplicar-se ao meu tio. Aliás, pouco sabia sobre ele, a não ser que era um tio distante, se é que este parentesco existe. Nós pelo menos, o considerávamos nosso tio, mas talvez fosse apenas um velho amigo de meus pais. Às vezes, ficava observando-o. Tinha umas feições severas, um olhar arguto, embora, às vezes, parado no nada. Parecia-me que era um homem solitário, viúvo, cujos filhos não o consideravam muito. Costumava reclamar deles. Explicava sobre os pés de laranja que gostava de cultivar, além das bergamotas e goiabas. Gostava de descrever o plantio, as formas de proteção às raízes, aos caules, às folhas para que sobrevivessem ao frio e protegessem os frutos. Mas queixava-se dos filhos que não deixavam que as plantas crescessem, que revelassem o seu esplendor e pudessem ornamentar o pomar que tanto gostava. Eles não respeitavam o tempo de maturação dos frutos, muito menos as suas medidas de cultivo.

Apesar de toda pouca vontade de conversar com aquele tio que sempre vinha nas horas erradas, eu tinha um pouco de piedade dele. E ao aceitar um café, o papo ficava até mais interessante, porque talvez inebriado pela cafeína, ele mostrava-se mais entusiasmado e sua conversa tomava outros rumos. Certa vez, contou-me sobre uma atriz, que conhecera e para minha surpresa, se tornara sua namorada. Uma atriz? Um tio agricultor, dono de um pequeno sítio, um homem da terra, cujas únicas aventuras eram as de aprender novas formas de cultivo e a mania de investir em plantas exóticas, vindas de outras regiões. Como poderia ele ter se apaixonado por uma atriz? E onde acontecera isso? Pois me contara tudo, satisfeito, numa dessas visitas não enderaçadas a mim, mas a minha família, que mais uma vez estava ausente. Às vezes, até desconfiava de que ele gostava de conversar comigo e escolhia os dias e horas certas em que não encontraria meus pais. Mas isso é egocentrismo de adolescente. Pois, segundo o seu relato, ele a conhecera no Cabaré da Mangacha. Lembra-se, como se fosse hoje, como me contara no momento.

"Naquela época, ele estava passando um tempo na cidade, bem longe do sítio da família. Era um pequeno quarto alugado, pois estava procurando emprego no Frigorífico Swift, para afastar-se em definitivo do campo.

Vestira o chapéu e saira às pressas, fechando a porta atrás de si, sem olhar para os lados. A noite se agigantava escura. Ele dobrou a esquina, pegou o bonde que passava em frente ao abrigo de bondes e dirigiu-se para a rua Uruguaiana. Olhou para os lados. O veículo estava quase vazio, a não ser um homem meio barbudo, que desandava a cabeça a cada minuto, num sono sobressaltado. Quando chegou ao ponto, pagou ao cobrador e cumprimentou o motorneiro. Ficou ali parado, na esquina até o bonde desaparecer na rua em direção ao bairro portuário. Olhou para os lados, ensimesmado. Deu alguns passos e observou o prédio, um sobrado bem na esquina. Já ouvia a música da orquestra. Sentiu um certo estremecimento. Era a primeira vez que adentrava no grande salão. Sabia que o esperavam as danças, os shows, a orquestra e principalmente as mulheres que faziam do cabaret, o mais famoso da cidade.

Aproximou-se da porta. Um homem com uma farad colorida o recebeu e disse-lhe alguma coisa inaudível. Ouvia um piano tocar, uma voz feminina que se distanciava pela imensidão do aposento. O homem mandou-o entrar. Finalmente, chegara na Mangacha. Lá chegou a conhecer Dona Ludovina, que era a proprietária do estabelecimento.

Pois nessa noite, chegou à cidade uma atriz linda oriunda do Rio de Janeiro. Era uma morena maravilhosa, olhos amendoados, cabelos crespos e uma pele de seda. Tinha seios fartos e umas ancas de dar arrepios na espinha. Ele ficara embascado com o show, mas mais ainda pela presença daquela mulher lindíssima. Os engomadinhos estavam todos ouriçados, homens de terno e gravata, regados a uísque e notas de dollars embutidos nos couverts. Mas ela só tinha olhos para ele. Os homens se desdobravam em mesuras, galanteios e sorrisos afoitos, ele se resguardava num canto, com seu terno de linho amassado. Vez que outra, ela enderaçava olhares sugestivos que o deixavam louco. Mas o que ele poderia fazer, um quase analfabeto, um agricultor acostumado às atividades rústicas de sua terra, sem o verniz dos homens da cidade? Seus pensamentos se agitavam e seu coração batia descompassado. O que faria? A levaria até a rua Uruguaiana para tonar o bonde em direção ao centro e passariam a noite em seu quarto alugado, quase espelunca? Mas os olhares, os sorrisos e algumas palavras a meia boca se sucediam. E por fim, seu coração estremeceu de vez e suas pernas não se sustentavam sob a mesa, batendo uma na outra, quando ela se aproximou após o show, e entre palmas e assobios, sentou-se a sua mesa. Em seguida, apareceu uma garrafa de uísque importado. E dali em diante, não precisou explicar mais nada. Só sorrir e aproveitar a vida. Acabaram a noite no hotel onde ela se hospedara e por uma semana ficaram juntos.”

Claro que meu tio Pedro não me contou com esta riqueza de detalhes, só mais tarde fui saber as informações complementares e enriquecedoras através de meu pai.

Ele continou nos visitando por algum tempo. Nunca mais falou-me na história e na mulher que chamava de namorada, usando certa autocensura. As visitas foram rareando e quando ele aparecia, eu já tinha muitas atividades, já trabalhava e a fase da adolescência dera lugar a uma fase em que o tempo ficava cada vez mais escasso. Esquecera-o aos poucos, quase por completo. Mas, às vezes, recordo o seu jeito acabrunhado e introvertido, um pouco ranzinza e lamurioso, mas que vez que outra, parece abrir-se para a vida e conta sua trajetória enriquecida de histórias. E ao visitar algum sobrinho, fico me perguntando, será que não sou recebido assim, com cuidados e educação, como o fazia com o tio Pedro? A vida se repete, o tio chato e solitário de ontem, pode ser o visitante de hoje. Espero que não.

sexta-feira, julho 10, 2015

Crônica sobre o filme Mon Oncle

Esticando um olhar mais aprofundado sobre os hilários e às vezes, patéticos personagens de Meu tio, “Mon Oncle”, com a direção de Jacques Tati (1958), observa-se, numa análise, ainda que de forma despretensiosa, características marcantes de personagens que talvez servissem apenas de contraponto para o desenrolar da trama. Na verdade, todo o conteúdo e análise dos diferentes tipos que tecem a urdidura da história já foram exaustivamente explanados em muitos artigos espalhados na rede ou mesmo publicados em periódicos especializados. Fica-nos, portanto uma pequena abertura, um buraco na fechadura, que em algumas vezes passa desapercebido, mas que ao conduzirmos a linha do olhar até o horizonte, acompanha-se, por certo, a trajetória do fio que enverga e sustenta a pandorga no ar. Falo de Gérard, o filho do casal, que ao lado do tio considerado subversivo aos conceitos da sociedade burguesa, e alienado da comunidade familiar, descobre novos horizontes em sua vida rasteira. Ao reunir-se aos meninos do outro lado da cidade, da periferia, montando as varetas de bambu, soltando pandorgas, atravessando caminhos íngremes, atirando pedras, escondidos atrás das montanhas e rindo-se sem parar, ao perceber as pessoas distraídas pelas pedras ou pelos gritos, chocam-se com o poste que lhes servia de obstáculo à passagem. Trata-se de uma alegria genuína, inocente, verdadeira, distante das armadilhas da pseudo-tecnologia ultra moderna, do padronizado exercitar- se na casa, do inalterado programa de todas as manhãs e noites, seguindo como de praxe, o senso comum. O progresso como fonte principal de satisfação, a ostentação, o luxo, a hipocrisia, a frustração, a humilhação, a padronização de procedimentos, o resvalar na mediocridade cotidiana. E lambuzar-se dela. O tio, Senhor Hulot, por seu lado, conduzindo o menino, conduz a sua própria identidade, evitando ser aviltada pelo emprego oferecido pelo cunhado. Emociona-se com a elegante inocência da jovem andando de bicicleta, com o sorriso generoso do sobrinho e seu olhar arguto e perspicaz, com a vida que brota lá fora. Ao ingressar no mundo sectário, dividido sem partilhas, não se ajusta aos padrões identificados pela sociedade. Marginaliza-se, mas aquieta o coração, quando observa que o sobrinho aprendeu alguma coisa. Deixou a pele vibrar com uma lufada de vida, que lhe permitira aos poucos abrir o coração. Quem sabe não influenciará os da casa, desde que suas mentes e corações não se acovardem com o conforto aparente de quem se sente assim protegido e forte?

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