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quarta-feira, maio 12, 2021

Mãe no jardim

Às vezes, lembro a velha janela de veneziana e postigos verdes. Observava os rodamoinhos, folhas que giravam numa agitação festiva e alguns sacos plásticos efetuavam rápidos vôos para mergulharem em seguida na calçada ou no meio do rua. O vento fustigava a janela. A tarde era melancólica.
Minha mãe passeava entre as dálias, diversas begônias, umas com folhas riscadas de vermelho, outras com um verde mais intenso, algumas com pendões de flores azuladas, além de uma roseira de rosas pequeninas que ela insistia que se grudassem ao muro. Brigava com as formigas que rendavam as folhas, lutava no pequeno jardim, no qual canteiros simbolizavam o seu afeto e dedicação pelas plantas.

Havia arbustos maiores, a tal da Eva e do Adão, com folhas imensas, bem desenhadas e muito verdes. E as hortênsias? As hortênsias eram o seu xodó, sempre floriam na hora certa e mudavam a cor conforme a distância entre elas. Se havia hortênsias rosas próximas a azuis, elas trocavam de cor. As rosas mais azuladas e talvez as azuis um tanto brancas, não sei. Havia o jasmim, este já no corredor, ao lado da casa. Tinha um perfume poderoso e era cultivado com muito cuidado. E os brincos-de-princesa, flores vistosas, em forma de um pequeno vaso, com pétalas roxas e vermelhas. Não tenho certeza. Havia os dias de calma.
Os dias em que a janela permanecia aberta e dali, se apreciava o jardim, a rua, a calçada, os meninos brincando. Havia dias de pouca brisa, mas que investigava a sala, as cortinas de voal (voil) que lambiam o peitoril da janela e desenhavam pela casa pequenas sombras que se espraiavam pelas paredes.
Às vezes, havia uma vela, bem ali, perto do peitoral da janela, acendida para algum santo, talvez para comemorar alguma dádiva, não sei. O vento leve, mas assobiava no corredor, vez que outra. Ele vinha e ia e a chama se deitava, oscilando de modo a quase apagar-se, mas resistia e coloria de vermelho a proximidade da cortina, quando o vento amainava. Ficava forte, como a fé que ora se deslocava pra lá, ou pra cá. Ora se enfraquecia, ora se fortalecia e iluminava o ambiente, como a vela. A vela apropriada.
Por vezes, a via por ali. Ou por todos os lugares, ocupando todos os espaços. Ficava entre as flores, a luz da chama iluminando, resistindo aos ventos fortes, oscilando entre a fé e a alegria, buscando. E sua busca não cedia, não esmorecia, tal como a vela no velho castiçal de bronze. Ãs vezes fraca, titubeante, às vezes forte e iluminada.
Ainda a vejo ali, atravessando os pequenos canteiros, aproximando-se da sala e puxando as cortinas com cuidado, fechando os postigos, as venezianas e lacrando a janela verde, porque o vento agora surgia forte e poderoso. Hora de respeitar a natureza.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/anêmona-azul-flor-pétalas-verão-2396299/

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Contar estrelas

Dou alguns passos em direção à porta da rua. Lá fora, é tão íntimo quanto aqui dentro.

O quintal sombrio, as estrelas pontilhando o negrume do céu sem lua. Pode haver estrelas, quando a lua se esconde?

Percorro as vielas estreitas, esgueirando-me entre os canteiros mal desenhados, com a cabeça para o alto. Sinto uma dor no pescoço, mas insisto na manobra radical para minha idade.

É bom ficar assim, feito criança, olhando o céu, apenas o vazio infinito, perdido num mundo que não é mais meu. Ou de ninguém. Mas quero viver este momento evasivo, no qual a solidão se esvai como balão estourado. Fugidio, brigando com arvores, destelhando nuvens.

Acendo velas para os mortos ou para os vivos. Não sei.

Agora que a energia faltou, bom viver na escuridão quase total da noite. Não fossem as estrelas...Quisera não sair nunca mais do meu quintal, nem sentir o cheiro agro-doce das velas. Parecem incenso vagabundo da dona da Confeitaria. Que tem a ver incenso com confeitaria, com pães e doces? Mas costuma extrapolar seus desmandos, sua pose de rainha, sentada na caixa, esperando os míseros cobres que soltamos no balcão. Cobres? Falei cobres? Estou velho realmente. Mas não caquético, não admito.

Sou lúcido, sou forte, ainda sonho.

Sonho em ver estrelas mais de perto, com uma luneta colorida.

Quisera ver a vida, na estreiteza das relações, e quem sabe, descrever o que me ficou às escuras, oculto, escondido na miopia de meus sentimentos ou percepções.

Nunca tive a agudeza dos espertos, a argúcia dos empreendedores. O máximo que arregimento é o cultivo de minhas plantas. Organizo-as, converso com elas, como todo velho, fico a olhar o dia e não o deixo passar sem fazer alguma coisa que me enleve, me dê alegria, me mostre algo mais do que meu fraco coração descortina.

Quero não ver apenas, mas vivenciar as urdiduras, as tramas triviais, o velho que desandou esquina abaixo, descendo ladeira, desequilibrado na cadeira de rodas, o menino que regurgitou o sorvete na cara da mãe, com dor de barriga e ansiedade de comer o que a vida lhe oferece, a moça que pintou o piso com o lápis de sobrancelha, beijando o chão que o namorado pisou, o rapaz que deu duas piruetas no ar e transformou a moto numa sanfona, o homem maduro que atravessou o sinal, destemperado, gritando aos brados, faminto de raiva, porque o companheiro de trajetória cortou-lhe o caminho.

Mas não quero tragédias, não. Que ninguém morra ou se machuque. Só que permitam gargalhadas.

Que possa rir, sem chorar e que eles aprendam com os erros, se não o fizerem com a maturidade.

Também quero ver bandeiras balançando, gente se enfileirando num mesmo objetivo, desde que não sejam pagos para isso, flores vicejando, pássaros se abrindo em vôos em v, andorinhas visitando as tribos, adolescentes inventando amor em cio de primavera. Quero viver.

Mas agora, quero só voltar a cabeça pra cima, passear pelo meu jardim disforme, olhar para o céu escuro e contar estrelas. Com sorte, pego até uma verruga.

sábado, outubro 29, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 15

No capítulo anterior, Santa sente-se isolada da família e até mesmo Linda que a ajudaria, parece empenhada em desestabilizá-la. De repente, Santa percebe que alguma coisa nova está acontecendo, da qual ela não tem o mínimo conhecimento. Linda tenta convencê-la de que está confusa, a ponto de negar tudo que acontecera, inclusive as suas conversas. Por fim, convence Santa a tomar uma xícara de chá que a deixa zonza. A seguir o décimo quinto capítulo de nosso folhetim dramático, neste sábado,29/10/16.

Capítulo 15

Santa aos poucos, acorda com a sensação de que levou uma bordoada na cabeça. Não sabe com certeza o que aconteceu, lembra apenas que Linda estava ao seu lado e que teve a sensação de desmaiar. Olhou em torno e tentou levantar-se. Por que estava ali afinal? Se desmaiara, por que Linda não a ajudara? Esforçou-se para sentar na poltrona, sentindo-se um pouco zonza. Lembrava que Linda havia trazido uma xícara de chá.

Neste momento, Linda aparecera, mostrando-se ansiosa e preocupada:

— Ainda bem que a senhora melhorou. Eu fui chamar ajuda e não encontrei ninguém, por isso, havia saído.

— O que aconteceu, Linda? Eu estava no chão, tive uma dificuldade imensa em levantar-me. Lembro que tive uma sensação de desmaio.

— É verdade, dona Santa. Eu fiz tudo para acordá-la, mas não consegui, por isso fui buscar ajuda.

— Mas e Sandoval? E os demais empregados?

— São uns inúteis, cada um nas suas tarefas. Quando consegui comunicar-me, já era tarde demais. Então decidi chamar o médico e vir para saber como estava.

— Descarte o médico. Estou bem.

— Tem certeza de que está bem, dona Santa? Não gostaria que a minha amiga piorasse.

— Estou bem, sim. Mas e Sandoval, você não me disse onde estava. Que aconteceu com ele?

— Ele havia saído.

— Está bem, então acho melhor ir para o meu quarto. Estou cansada.

— Eu posso ajudá-la.

— Linda, parece que nós estávamos conversando e o assunto me parecia importante, só não consigo lembrar. De que se tratava?

— Ah, nada importante, dona Santa. Não quero constrangê-la de modo algum.

— Como me constranger?

— Acho que disse uma bobagem, é que a senhora me pareceu muito confusa. Não dizia coisa com coisa. Mas vamos esquecer isso. Vou lhe trazer alguma coisa para comer, a senhora vai para o seu quarto e descansa. Amanhã, com certeza, estará melhor.

— Você quer dizer que eu me constrageria por estar confusa? É isso?

— Esqueça isso, dona Santa. é uma bobagem.

— Espere aí, Linda. Agora estou me lembrando. Você negou o seu passado, tudo o que sabemos e compartilhamos juntas. Você negou que tem um filho com o meu marido.

— Eu já tinha lhe pedido para esquecer esta história maluca.

— Não, não quero esquecer, ao contrário, quero lembrar tudo muito bem.

— Quem sabe, conversamos isso noutra hora? Olhe, tomei a liberdade de trazer um comprimido para acalmá-la.

— Não preciso de calma – ao dizer isso, sente uma forte dor de cabeça acompanhada de uma leve tontura – meu Deus, parece que não estou bem mesmo.

— Que está sentindo, dona Santa? Por favor, me fale, me ajude a ajudá-la!

— Estou bem, Linda. Não foi nada.

— Quem sabe tomando a pílula que trouxe, vai melhorar? Quer tentar, foi o seu médico que receitou.

— Está bem. Dê-me este comprimido e vamos para o quarto. Quero dormir e esquecer tudo isso. Amanhã, colocarei tudo em pratos limpos.

— É o que mais desejo, dona Santa. Não gosto de vê-la assim, com estes transtornos. Quero-a lúcida, como sempre foi.

Santa não responde. Acha melhor não questionar mais nada à Linda que parece determinada em pôr um véu em tudo que ela pensa. Na verdade, quer livrar-se dela e ir para o quarto. Está exausta e sua vontade é não ver ninguém. No entanto, sente-se fraca e precisa da ajuda da empregada, que a ampara até o quarto.

Na mãe seguinte, Santa acorda com dificuldade, como se o mundo viesse abaixo. Sabia que deveria consultar o médico, mas ao mesmo tempo percebia que havia alguma coisa errada nesta situação. Refletiu muito em tudo o que acontecera, a mudança extraordinária de Linda, a ausência de Sandoval e até mesmo dos filhos. Então, tomou uma decisão, que parecia a correta. Quando Linda apareceu, ela resolvera tomar o café na varanda, que se ligava ao jardim.

Linda aproximou-se, solícita, tentando agradá-la.

— Não precisa se preocupar em servir-me, Linda. Ana já fez o serviço com muita dedicação.

— Esta moça está há pouco tempo aqui, é muito inexperiente.

— Mas está aprendendo. É o que importa.

— Sem dúvida. Espero mesmo que ela progrida. A senhora precisa de pessoas que lhe ajudem, não a atrapalhem. Não é por me gabar, mas sempre fui uma presença amiga, e só lhe falava ou a servia, quando me pedia.

— Então, me faça um favor, Linda. Diga-me o nome do rapaz que trabalha no jardim, o último que você contratou.

Linda tem um leve estremecimento, mas se contém. Pergunta, dissimulada de quem se trata.

— Você já o esqueceu? Se não me engano, ele é seu sobrinho.

— Ah, a senhora se refere ao Fernando. O que pretende com ele, dona Santa?

— É um assunto que terei apenas com ele. Acha que devo informá-la antes, Linda?

— Não, de forma alguma dona Santa. Eu, na verdade, não tenho nada a ver com isso. Apenas, fiquei preocupada, a senhora sabe como são estes rapazes hoje em dia, eles estão sempre querendo subir na vida, e fazem qualquer coisa para conseguir o seu objetivo.

— O seu sobrinho é deste naipe?

— Não, acho que não, mas sabe como é, tem pouca maturidade, pode ser influenciado por outras pessoas.

— Então você pode influenciá-lo a se comportar bem. Fale com ele e diga que quero conversar com ele no gabinete, ainda hoje à tarde.

Linda suspira, nervosa. Mas em seguida, conclui que fará o que a patroa pediu. Em seguida, tenta mudar de assunto:

— Parece que a senhora está muito bem hoje, não. Eu vi quando o seu Sandoval saiu bem cedinho, mas a senhora decidiu esticar um pouco mais na cama.

Santa não respondeu. Linda então, prossegue, fingindo-se animada:

— Fico contente que tudo tenha passado, aquele seu mal estar foi coisa pequena, com certeza, embora eu ache que devesse procurar um médico.

— Linda, me diga uma coisa, você aprendeu muito nesta casa. Você teve até uma professora particular que a ajudou a escrever bem, a ler, a falar com muita propriedade. Você aproveitou as oportunidades. Acabou inclusive fazendo um curso técnico.

— Sim e sou muito grata por isso, dona Santa. Eu jamais poderei agradecer o que vocês fizeram por mim. Mas por que está falando sobre isso?

— Nada, estou só lembrando. É bom a gente de vez enquanto refrescar a memória, para saber em que patamar estamos dentro de determinada realidade.

— A senhora me deixa assustada. Parece que fiz alguma coisa errada.

— E não fez?

— Eu sou sua amiga, dona Santa. Sou capaz de dar a minha vida pela senhora.

— Então, não vamos mais falar nisso, Linda. Sente aí e tome café comigo. Hoje será um novo dia.

Linda sorriu, aliviada. Ainda perguntou se deveria sentar-se à mesa, mas pelo gesto impaciente de Santa, decidiu obedecer. Serviu-se e esperou que a patroa propusesse alguma coisa.

Foi em vão. Alguns minutos depois, Santa acabou o desjejum e afastou-se. Linda a acompanhou sorrindo, mas só por um instante. Quando Santa desapareceu no interior da casa, ela fechou a cara, acabrunhada.

Em seguida, pegou o celular e ligou para o jardineiro.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/salada-verão-verdes-vegetais-775949/

terça-feira, outubro 18, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 12

No décimo primeiro capítulo Sandoval presidiu a reunião da família, na qual a matriarca Santa não estava presente, muito menos o convidado bispo Martim e Linda, a empregada que Santa fazia questão da presença. Neste encontro, Sandoval conseguiu finalmente convencer os filhos que a mulher estava muito doente, na verdade uma doença mental que a levava a ter visões como a da Virgem e por conseguinte as mensagens que elaborara com a intenção de mudar o comportamento de todos. Para não perder a forturna, a considerariam incapaz de administrar os bens ou decidir qualquer coisa ligada a testamentos. Não sabiam porém, que Linda gravara toda a conversa em seu celular, escondida atrás de uma cortina. A seguir o desenrolar do nosso folhetim dramático, nesta terça-feira, 18/10/16. Todas as terças e sábados, são publicados os capítulos da história “A fotografia da vida de Santa”. Boa diversão.

Capítulo 12

Todos conversam em tom acalorado, após terem tomado a difícil decisão.

Em seguida, porém, a energia adquirida foi se dissipando e seus gestos fragmentados revelavam que seus corações estavam instáveis e confusos.

Aos poucos os filhos e o genro se despediram de Sandoval, deixando-o sozinho na biblioteca.

Sandoval não levantou-se da poltrona, imaginando-os afastarem-se jardim à fora, na ânsia de pegarem os seus carros e correrem para as suas vidas particulares, provavelmente esquecidos rapidamente de tudo que acontecera ali. Afinal, o que importava eram as finanças, os seus bons empregos e o patrimônio que não podiam perder.

Suspirou fundo e sorriu animado. Agora não tinha mais porque se preocupar.

De repente, ouve um barulho e volta-se assustado. Não há ninguém, a não ser ele, na biblioteca. Será que algum dos filhos teria esquecido alguma coisa? Ou Santa havia voltado da igreja?

Levantou-se e passeou pela biblioteca, dando uma olhada para os jardins.

Quando voltou para o lado oposto da janela, surpreendeu-se com a visão de Linda que surgia por entre as cortinas, encarando-o com extrema segurança.

Não disse nada, apenas o observa, enquanto guardava um objeto na bolsa.

— O que significa isso, Linda? O que está fazendo aqui? – Fez uma pausa e concluiu, desolado – Meu Deus, você estava atrás das cortinas! Estava aqui o tempo inteiro!

— Estava sim, Seu Sandoval.

— Mas por quê? Quem lhe mandou ficar ai, sua desgraçada?!

— Talvez eu tenha mais motivos do que o senhor pensa para ficar aqui.

— Ora não seja ridícula, sua empregada de quinta categoria! Vocês está me desrespeitando, isso sim!

— É o que o senhor pensa, né? Eu fui desrespeitada toda a minha vida e agora o senhor se sente assim, que bom!

— O que você quer vivente? Me aborrecer ainda mais!?

— Eu também tenho meus planos, inclusive uma proposta a lhe fazer.

— Quem é você para me fazer propostas, sua infeliz? Saia imediatamente daqui. Hoje mesmo, você será despedida! Vou conversar com Santa e mandá-la para o olho da rua!

— Isso é o que o senhor pensa. Eu não vou sair daqui, até que o senhor ouça o que eu tenho para dizer. E não vou sair desta casa, não.

— É? E por que tem tanta certeza, sua idiota?

— Porque o senhor vai ter que escolher: Ou ouve a minha proposta, ou dona Santa saberá tudo que está acontecendo nesta casa!

Sandoval dá uma risada irônica:

— E você vai lhe contar? Ora, não seja idiota, Santa jamais acreditaria numa criada como você. Saiba que Santa é carola, boazinha para os miseráveis, mas é uma mulher aristocrata, uma mulher que sabe que está numa classe superior! Pensa que é muito esperta, sua imbecil!

— Talvez não seja tão esperta a ponto de contar a todos que nós temos um filho, um filho meu e seu, esqueceu, seu Sandoval?

— Não me chame assim, me respeite, e vá, vá embora daqui. Não quero ouvir a sua voz, não tenho nada a falar com você.

— Mas eu tenho, como lhe disse, tenho uma proposta e acho bom o senhor me ouvir!

— Está me ameaçando?

— Estou sim, porque tenho comigo a gravação de tudo que se passou nesta biblioteca. E vou correndo mostrá-la a dona Santa, ao menos que o senhor ouça o que eu tenho a lhe propor.

— Eu não acredito, eu não acredito que isto está acontecendo na minha casa!

Ele aproxima-se um pouco, e Linda o avisa a parar, porque a gravação do celular já foi enviada para outro número. Neste caso, mesmo que ele a apague, ela já tem uma cópia.
Sandoval fica desesperado.

— Você está louca, Linda. Completamente louca! Pensa que vai ter alguma vantagem em me fazer chantagens? Você não sabe que está num nível inferior, numa classe baixa, muito distante da de nossa família? Você não é nada e mesmo que tenha alguma prova contra mim, nenhum juiz a aceitará. Pense bem.

Linda, no entanto, não parece ouvi-lo. Está muito calma e ciente de seus objetivos.

— Muitas coisas estão acontecendo, que o senhor não sabe. Esta noite um cara entrou no jardim, pulou a área e entrou na copa, deixando propositadamente um cartão com a mensagem de Dona Santa. Ela já anda bem apavorada. Quem sabe a loucura se concretiza?

— O quer dizer com isso?

— O senhor não disse que ela está ficando louca? Pois bem, os seus argumentos são bastante fracos. Mas hoje, ela se mostrou bem assustada. Eu até poderia dizer que havia um traço de loucura na sua fisionomia.

Faz-se um silêncio. Sandoval pensa por um minuto. Encara Linda com raiva, mas entende que ela sabe de alguma coisa sobre Linda.

— Quem era este cara? O que ele queria? Você sabe?

— Calma, seu Sandoval, talvez não soubesse de nada. Talvez fosse apenas uma armação para assustar a pobre coitada.

— Então quer dizer… Linda, você planejou isso?

— Digamos que eu planejei. Agora o senhor já sabe do que sou capaz. Quer ouvir a minha proposta?

Sandoval está transtornado. Seu olhar é de fúria e de espanto. Nunca imaginaria que Linda fosse capaz de elaborar uma história tão maquiavélica.

Ela, no entanto, parece segura, ao ponto de enfrentá-lo, no aguardo paciente de quem conhece os seus limites. Olha-o impassível, com o trunfo nas mãos.

Sandoval a ouve com a argúcia, não convencido ainda de suas artimanhas.

Ele que poderá reverter a situação, afinal, Linda não é nenhuma expert em alinhavar planos mirabolantes. Aí está o seu ponto fraco, não tem dúvidas.

— Você contratou um homem para assaltar a casa, jogar a mensagem de Linda que era dirigida ao bispo Martim e fugir, para deixá-la apavorada, como se a pessoa pretendesse se vingar.

— Mais ou menos isso.

— Em quem era esse homem?

— Meu sobrinho, o senhor conhece, ele já trabalhou aqui, como jardineiro. Conhece a casa como a palma da mão.

— Gentalha! – Respira fundo, com raiva, mas continua – Me diga, quer dizer que este homem que você contratou, este seu sobrinho, como você disse, tinha a incumbência de enlouquecer Santa, de deixá-la transtornada, para que eu aceite tudo o que você planejou.

— Exatamente e quando ela estiver fora do páreo, eu serei a dona desta casa.

Sandoval dá uma gargalhada forçada, com a intenção de menosprezá-la, ao mesmo tempo para deixar claro que é uma hipótese impossível. Linda prossegue, animada:

— É a minha chace de ser a dona desta casa. O senhor nem precisa viver aqui, comigo, basta que me deixe reinar sozinha e absoluta.

— Com que você aprendeu este palavreado? Com a própria mulher que você quer enlouquecer, tirar do seu caminho?

— Dona Santa me ensinou muito, é verdade, mas nunca me apoiou quando soube que estava grávida, obrigou-me a levar o meu filho para bem longe de mim, preocupou-se apenas com o bom nome da família, com as aparências do seu casamento. Sabe, seu Sandoval, eu acho que chegou a minha vez.

—  E você acha que vai ser assim tão fácil? Que vou deixar que tome conta do meu patrimônio, que se torne a dona da casa? Era só o que faltava, meu Deus! Eu querendo livrar-me da loucura de Santa e vem essa vadia querer a mesma coisa! Ora vá se enxergar, Linda!

— Acho que é o mínimo que pode fazer pelo tempo todo em que me dediquei a esta casa.

— Mas você não entendeu, sua louca? Santa está viva! Você quer matá-la também?

— Vocês querem enlouquecê-la, eu só queria ajudar. Basta que façam o que combinaram, afinal, o que a família combinou, não apenas o que uma simples empregada deseja. Todos estavam de acordo em acabar com o reinado da mamãe!

— Não fale desse jeito sua megera!Você é muito dissimulada, mesmo!

— Eu? Dissimulada? É que o senhor não olhou para si próprio, não observou bem os seus queridos filhos, mas se quiser, eu tenho tudo gravado e posso lhe refrescar a memória. Eu, de minha parte, só estou querendo o meu quinhão! Quero o que de fato me pertence!

— E o que você realmente quer, sua demente?

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/casa-construção-in%C3%ADcio-arquitetura-540796/FrankWinkler

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