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sábado, dezembro 17, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 28 - ÚLTIMO CAPÍTULO

Capítulo 28 - Final

Santa e os filhos esperavam angustiados a longa espera por Alfredo. Embora felizes pelo pesadelo ter acabado, ainda havia marcas muito fortes que comprometiam um momento mais festivo. No fundo, Tavinho e Letícia sentiam-se culpados por terem sugerido a limpeza no cenário do crime, o que de certo modo, estimulou a prisão de Alfredo. Quando o viram, abraçaram-no, aliviados. Santa enxugava algumas lágrimas ao ver o filho tão abatido, mas estava feliz.

Após alguns minutos de intenso desafogo emocional, Alfredo perguntou por que o pai não havia vindo.

Todos ficaram em silêncio. Santa pediu que se afastassem logo dali, já que estava tudo em ordemcom os documentos e pertences pessoais e se dirigissem ao carro que os estava esperando. Alfredo insistiu que o levassem ao seu apartamento, pois precisava tomar um banho e trocar a roupa. Foi o que fez, acompanhado de Tavinho e mais tarde iriam para a casa para comemorarem com Santa, que mandara preparar um jantar especial para aquela noite.

No apartamento, enquanto Alfredo se dirigia ao banho, Tavinho tocou no assunto do pai.

– Nosso pai está muito aborrecido com você, ou melhor, aborrecido é eufemismo, ele está indignado. Não era pra menos, né? Ele até acredita que você sempre o odiou.

Enquanto se ensaboava, Alfredo comentava a observação do irmão.

– Eu sei do que você está falando. Talvez ele tenha razão em reagir assim, afinal eu ia cometer uma loucura.

– Que ideia era essa de sequestrar o velho? Você pirou?

– Na verdade, não era bem um sequestro. Eu confiava muito no jardineiro e sabia que ele não faria nenhum mal ao nosso pai. Sei que foi uma ideia idiota, mas eu estava desesperado com aquela intenção dele de afastar mamãe de tudo, de torná-la uma incapaz. Eu não podia aceitar aquilo, então pensei , que com ele fora de cena, seria mais fácil acertar as coisas. – De vez enquanto, ele sai um pouco do boxe para que Tavinho o ouça e volta para o chuveiro deixando-se envolver pela torrente de água, como se fosse necessitasse de um banho eterno – Mas, eu só queria ele longe por um tempo e pregar-lhe um susto por ter enganado a mamãe, tê-la traído daquela maneira. Depois, que eu resolvesse a situação, ele voltaria são e salvo.

– Mas nós concordamos com a proposta de nosso pai. Todos aceitaram, ficaram quietos.

– Veja bem, eu não estava convencido. Achava que era uma maneira dele livrar-se dela. Ainda tinha a intromissão dessa mulher, essa tal de Linda que não sai da nossa vida.

– Entretanto, foi essa mulher que o salvou. Foi ela que foi atrás do bispo, que descobriu tudo, que colocou ele contra a parede e fez um acordo com a polícia. Havia uma escuta no local, sabia?

– Pois é, isso sim é uma coisa estranha. Mas é problema dela. Depois do que ela estava aprontando para a nossa mãe, eu não quero vê-la mais na minha frente.

Termina de secar-se e veste a roupa enquanto Tavinho passeia pelo quarto. Pega um livro que estava sobre a cômoda, examina-o e volta-se para Alfredo, concluindo:

– A bem da verdade, todos nós erramos. Eu, em ficar quieto, na minha, você por tomar esta atitude disparatada, Letícia pelo fato de ir na onda do velho, e ele por querer se apropriar de todo o patrimônio, além de ser chantageado por Linda. Sabe de uma coisa, Alfredo, havia aí uma história que não sabemos muito bem.

– Eu sei muito bem: ganância. Se esta mulher estava fazendo jogo duplo e chantageava ele, é porque sabia de alguma sacanagem de nosso pai. Esta mulher deveria estar no olho da rua! Não sei porque a toleram tanto!

– Mas há mais uma coisa que você não sabe, o que nosso pai agora pretende fazer.

– Não me diga que tem mais alguma coisa, depois dessa tramoia toda.

– Sim, ele vai sair de casa. Disse que fará uma viagem pelo exterior durante alguns meses e depois provavelmente entrará no processo do divórcio, em definitivo.

– E mamãe, o que pensa disso? Ela que sempre quis a família unida, que lutou por isso!

– Por incrível que pareça, ela está conformada com a situação. Uma mulher tão religiosa, tão apegada à família tradicional, é de se pensar né? Mas, que seja assim, que a coisa se resolva da melhor forma possível.

Alfredo acaba de calçar os sapatos, pega as chaves do carro e do apartamento e convida Tavinho a se dirigirem à casa da família. Por um momento, parou e olhou para o irmão. Aproximou-se.

Tavinho o olhava, surpreso.

– O que aconteceu, Alfredo?

– Sabe, Tavinho, naquela prisão, passando por tudo o que passei, eu pensei muito em nós, na nossa família. Acho que na verdade, nós estamos nos conhecendo e nos aproximando agora. Nunca fomos realmente unidos, como nossa mãe sonhara, acho que até mesmo por culpa deles, daquela falsa moral, daquele apego às aparências, sendo tudo que era desfavorável aos conceitos estabelecidos, escondido sob o tapete.

– E por que este discurso, agora?

– Porque uma das pessoas que nunca entendi, foi você. Quero aceitá-lo meu irmão, como você é. Talvez um dia, você me aceite também.

Tavinho por um momento emociona-se, mas disfarça com um sorriso irônico. Mesmo assim, aproxima-se de Alfredo e o abraça. Depois, afasta-se rápido, apressando-o para sairem.

– Não se esqueça, que o jantar de dona Santa promete! Vamos embora!

Algum tempo depois, estava todos reunidos à mesa posta para o jantar. Santa, apesar dos últimos transtornos e reviravoltas que sua vida dera, incluindo a ausência do marido, sentia-se tranquila, quase feliz com a presença dos filhos. Além dos três, também o genro estava presente, e como de hábito, fazendo indagações inconsequentes, como o motivo da ausência de Sandoval. Letícia não controla a impaciência:

– Você sabe que eles estão se separando, deixe de ser idiota.

– Eu sei, mas nada o impedia de estar aqui.

– Ainda tem o problema do… você sabe.

– Tenho certeza de que ele vai perdoar Alfredo.

– Cale a boca.
Alfredo decide intervir no diálogo que lhe diz respeito.

– Deixe Letícia, ele tem razão. Papai também não deve ter vindo por minha causa, mas eu o compreendo. Só o tempo pode amainar esta situação.

Santa que se mantivera calada até então, tenta encerrar o tema.

– É verdade, meu filho, não vamos mais falar nisso.

Neste momento, Linda entra na sala e aproxima-se da mesa, à espera de alguma ordem. Alfredo, exasperado, pergunta:

– O que esta mulher está fazendo aqui?

Santa intervém, nervosa:

– Por favor, Alfredo, vamos ficar em paz. Já passamos por tantos momentos difíceis. Linda está aqui apenas para nos servir e comandar os demais criados. É a sua função.

– Mas esta mulher é a causadora de todos estes momentos difícieis aos quais a senhora se refere. Não se esqueça que ela a traiu!

– Alfredo, você sempre foi tão tolerante, eu não o estou reconhecendo.

– Deixe-o dona Santa, se quiser eu me retiro.

Alfredo grita, ainda mais indignado:

– Não, nao saia ainda. Tenho uma pergunta para lhe fazer. Qual era o seu interesse nesta historia toda? Porque partindo de você, coisa boa não era, pela sua conduta recente. Mas como você armou para descobrirem que o bispo Martim era o culpado? Como chegou até ele?

Linda suspira, angustiada. Olha a princípio para Santa, como se lhe pedisse orientação para prosseguir. Santa abaixa os olhos indecisa. Os demais observam a cena, intrigados. Linda então, continua.

– Eu tinha algumas dúvidas, senhor Alfredo, mas com o passar do tempo, analisei os fatos e associei uma coisa com a outra. Por fim, investiguei nas anotações de meu sobrinho, nos seus objetos particulares.

Alfredo prossegue, impiedoso.

– Ah, tinha me esquecido, você é boa nisso. Está sempre fuxicando na vida de todo o mundo. Mas por que não me deixou apodrecendo na prisao? Queria se passar de boazinha para minha mãe? Ou para meu pai, para conquistá-lo?

– Senhor Alfredo, nao me humilhe! – exclama com os olhos marejados de lágrimas. Alfredo levanta-se da mesa e todos os olhares o seguem, como se temessem uma agressão maior.

– Humilhá-la? Você humilhou a todos nós nesta casa! Ou quer que eu a agradeça? Pois saiba, que eu jamais agradecerei pelo que fez. Não me interessa como conseguiu as provas, nem se estava preocupada em descobrir o verdadeiro assassino ou porque cargas dágua se envolveu nisso. Aliás, você se dá muito bem com estes tipos, é da mesma laia.

Linda então o encara e grita numa voz potente, como se houvesse reunido todas as forças para aquele desfecho.

–Eu fiz porque nao suportei vê-lo preso. Eu sabia que era inocente.

– Ora, não seja idiota. Não se faça de boazinha, estou cheio da sua hipocrisia!

Santa então pede que ele volte a sentar-se e a deixe em paz. Segundo ela, não é o momento para aquela discussão inútil.

– Você ainda a defende, mamãe? Defende esta mulher que manupulou a nossa vida, que chantageou meu pai, que a traiu? Pois saiba que a quero longe desta casa, quero esta mulher no olho da rua! E tem mais, se eu soubesse que era você quem me ajudou, eu preferia ficar preso.

– Eu não queria, eu não queria… que você… eu nao queria que sofresse, eu sempre o defendi… eu …

Santa a interrompe, cada vez mais ansiosa:

– Pare Linda, nao fale mais nada.

– Não fale o quê, mamãe? O que esta megera ainda tem a dizer? Eu já deixei bem claro que não preciso dela para nada! Mas fale, infeliz, o que você queria dizer?

Linda parece transtornada, apenas encarando Alfredo, como se somente ele existisse naquele momento. Por fim, responde o que pretendia contar.

–Eu sou sua mãe, Alfredo.
Santa levanta-se, pedindo que Linda se afaste. Os demais observam a cena, embasbacados. Alfredo começa a rir com ironia.

– Ah, hoje é o dia das piadas? Que interessante! Qual é a próxima? Que você vai casar com o meu pai?

Santa então decide dizer a verdade. No íntimo, acha que basta de mentiras e que tudo deve ser esclarecido de uma vez por todas. Linda encosta-se na parede oposta ao lugar onde se encontra Alfredo, ocultando o rosto com as mãos. Santa aproxima-se de Alfredo e complementa o assunto.

– Alfredo, meu filho, é verdade. Vocês acabaram sabendo que seu pai tivera um filho com Linda. Essa era a chantagem que ela fazia, mas o que não sabíamos, nem eu, até o momento, era que … – Santa interrompe-se, emocionada – era que você era o filho de Linda com Sandoval. Sei que também sou culpada, eu nunca disse que você era adotado, pois para mim, você sempre foi o meu filho, como todos os outros. Só que para meu castigo, por eu ter escondido de você a vida toda isso, é que a criança que Linda tivera com Sandoval era você, a criança que eu adotara, sem saber. Quando seu pai confessou sobre a chantagem, eu exigi o DNA e então… não havia mais como não ter a prova. Mas você é o meu filho, não importa a mãe biológica, eu o criei com todo o carinho, todo o meu amor.

– Você está louca, mamãe, voce quer acabar comigo, é isso? Já não basta o que me aconteceu?

Houve um silêncio absoluto por um pequeno intervalo de tempo, quebrado apenas por Ricardo, que comenta com Letícia:

–É por isso que ele é assim, nao acha? Tá no dna, olha o sobrinho, quer dizer, o primo dele.

–Cale a boca, Ricardo.

Linda volta-se da parede e antes de sair, decide desabafar.

– Eu vou sair, dona Santa, Alfredo tem razao, eu devo ir embora – Alfredo a interrompe, gritando que não pronuncie o seu nome. Linda prossegue, mesmo assim – Antes de sair, preciso dizer que fiz tudo para que ele fosse libertado. Quando soube que estava sendo acusado, que era suspeito da morte do meu sobrinho, eu fiz das tripas coração para descobrir o verdadeiro assassino. – E voltando-se para Alfredo, que neste momento está com o rosto enfiado na mesa, completamente abalado, ela insiste – Eu fiz isso por você, Alfredo. Não importa o que pense, o que sinta por mim. Fui uma sombra ao seu lado, mas sempre estive por aqui, cuidando de você, toda a minha vida, todos os dias, toda as horas, todos os minutos sempre ao seu lado, mesmo que fosse apenas uma criada. Fiquei calada para sustentar o título de familia bem estruturada que vocês representavam. Mas voce é o meu filho e bem ou mal, embora você nem se lembre, eu semper o ajudei e sempre estive ao seu lado.

Ao terminar, afasta-se em silêncio, fechando a porta atrás de si. Todos os olhares agora se voltam para Alfredo, que também se levanta, indicando que deixará a sala.

– Mamãe, vou me retirar. Isso tudo me dá nojo!

Santa ainda tenta remendar a situação:

–Um dia, voce me entenderá.

–Não, nunca a entenderei. Nunca entenderei como me adotou sem se preocupar em saber a minha origem, sem nunca me contar quem eu era. Também nunca entenderei, dona Santa, a senhora, uma mulher tão religiosa, como conseguiu mentir por todo este tempo. Agora fica cada vez mais clara a lógica dessa família falsa. Uma arremedo de família. Eu nao quero mais participar dessa mentira.

Afasta-se em seguida, enquanto Santa o chama em desespero:

– Alfredo, volte aqui meu filho.

Da porta, ele responde com raiva:

–Não me chame de filho, você não é minha mãe.

Todos ficam em silêncio. Em seguida, Tavinho dirige-se na direção da porta e Santa pede que fique. Ele responde, desolado.

– Não, mamãe, vou procurar Alfredo. Não sei mais que revelações ainda teremos hoje. Estou cansado e não quero saber mais nada.

Letícia levanta-se e Ricardo resmunga, perguntando pelo jantar. Ela se aproxima da mãe e faz uma breve carícia em seu rosto. Depois, diz-lhe baixinho, que acha melhor irem embora. Na verdade, não há nada para celebrar.

– Mas vocês não acham que estão sendo cruéis demais? O que vai ser de mim?

– Mamãe, a vida continua. Não se preocupe, que tudo se acerta.

Ricardo insiste: – Não é melhor a gente comer e depois ir embora?

Letícia faz uma careta, exigindo que ele a acompanhe. Em seguida, saem deixando Santa sozinha, à beira da imensa mesa de jantar. Ao vê-los se afastarem, ela ainda pergunta, desconsolada: – E a fotografia que tiraríamos juntos? A fotografia de nossa vida?

FIM

terça-feira, novembro 29, 2016

Labirinto

Assisti na tv que um homem foi atingido por um raio e sobreviveu. Depois, ouvi vozes ao telefone, como se estivesse aguardando alguma ligação. Como se alguém houvesse ligado!

Passeei pela casa, acabrunhado.

Um gato pulou a janela, parou no parapeito, olhou-me de soslaio, sorrateiro e deu meia volta. Ainda o vi, perder-se sobre os telhados.

Uma luz vibrante iluminou por completo a cena. O sol se punha tão rápido!

Afastei-me da janela, voltei para a tv. Estava desligada, mas tinha a absoluta certeza de alguém falava lá dentro, naquela caixinha de luz.

Será que voltarão? Será que o telefone tocará novamente?

Há meses, não vejo meu filho. Está um rapaz e tanto! Cabelos pelos ombros, hoje quase não o reconheço.

Estou envelhecendo aqui, sozinho, nesta casa.

Se ao menos, pudesse sair, afastar-me deste labirinto que me oprime, desviar os ouvidos dessas vozes que me sussurram coisas obscenas.

Sei que não posso. E tenho medo de afastar-me.

Aqui estou seguro, mesmo que os gatos pulem as janelas, atravessem os telhados, deslizem pelos terraços e roubem minha comida.

Compartilham com as pombas as minhas migalhas. Só a elas me dirijo. Elas bicam a minha vidraça. Perscrutam o espaço, andam em casais. Já me conhecem, se entregam, seguras.

Eles me observam de longe, esperam um descuido para ingressarem na janela, se imiscuírem na minha vida. Tentam me seduzir. Às vezes, os odeio.

Hoje estou menos ansioso. Não me preocupo tanto com eles.

Não fossem estes sons estranhos, esta gente que fala nos meus ouvidos, que me diz coisas que não quero ouvir. Insistem que eu fale, sem se importarem com o que tenho a dizer. Reprovam, certamente, o meu comportamento.

Volto para a sala. Espio a tv desligada e me deito no sofá, estirado, pernas soltas, caídas para o lado.

O raio atingiu o homem e ele não morreu. Será que teve algum dano? Que o paralisasse, que o impedisse de falar, ou que talvez o deixasse cego, surdo? Mas ele sobreviveu.

Como eu. Sem me expressar, sem compartilhar meus sentimentos. Eu sobrevivi.

Meu filho deve vir hoje. É provável que apareça daqui a pouco e chute todos os pombos de minha janela.

Depois se afastará, como sempre, dando um tchau distraído, a um homem qualquer que nem parece seu pai. E não terei forças para impedi-lo, para falar-me de minhas frustrações, minhas pequenas infelicidades diárias, minha dose de raiva, de agonia, de aflição. Minha vontade de morrer.

O telefone toca. Deve ser ele, avisando que não virá. Afinal, é jovem, tem de viver a sua vida, não perder as oportunidades. Encontrar-se com os amigos, tomar um chope.

Mas, quem sabe, lá debaixo ele olha para a minha janela, dá uma espiada nos pombos, e imagina que estou por ali, assistindo a tudo. Talvez ele beba também a minha saúde.

Se pudesse, estaria lá, com ele. Conversaria com os seus amigos, falaria das coisas importantes da vida, como este momento que estaria vivendo, ao lado de meu filho.

Mas quem me escutaria? Quem acharia importante eu estar ali, junto, ao lado de meu filho? Teriam, por certo, assuntos mais urgentes, mais pontuais. Falariam de futebol, mulheres, talvez política. Ririam muito de tudo e de todos. E seriam felizes.

Este telefone não para. Ainda nem levantei para a atender a primeira chamada e ele voltou a tocar de novo. Como é difícil sair deste sofá. É macio, aconchegante, embora sinta as molas nas costas. O pano está tão velho que se avista as fibras, os fios trespassados, pequenos buracos que se formam. E as molas mais parecem costelas de gente magra, expressando toda a miséria de suas vidas. Dói-me as costas, custa-me levantar, enfiar os pés nos chinelos, dobrar os joelhos, segurar-me firme à mesa que tenho ao meu lado.

Mais um pouco, estarei lá, ouvindo o meu filho, esperando que me convide, quem sabe, assistir um filme, jogar xadrez ou apenas conversar, longamente, como nos velhos tempos.

Tempos em que ele era menino e eu o fazia sonhar. Sonhava com mundos distantes, estrelas que se mexiam no céu, nuvens que se enfeitavam para guarnecer a noite. E com ele, eu sonhava junto, olhando o mesmo céu que o fazia viajar.

Quem sabe me convida para viver as suas fantasias, olharmos as estrelas, aqui, da minha janela, esquecidos destes terraços escuros, destes telhados tisnados pela poluição.

Quem sabe ele virá aqui e me convidará para sair, tirando-me desta pasmaceira, fazendo-me viver a vida que já foi minha.

Talvez, mergulhar um pouquinho naquele chope, jogar conversa fora, passear pelas calçadas sem compromisso, observar a natureza.

Ah, pensei tanto nestas coisas, arrastei tantos estes chinelos pela casa, que o telefone parou de tocar e nem tive tempo de atender. Pela segunda vez!

Mas, vou sentar aqui, ao lado, esperar. Ele deve estar ansioso para ver-me. Nem vai me ligar, pelo contrário, vai entrar por aquela porta, sorrindo, empurrando com a mão os cabelos que lhe caem na testa e se aproximando, me abraçará. Dirá baixinho que não me esqueceu e que sairemos daqui, esqueceremos os gatos, os pombos, a televisão que fala sozinha, as vozes estranhas do telefone sem fio.

Me pegará pelo braço e sairemos por aí, chutando pedra, como bons amigos: pai e filho na contramão da vida.

Eu não disse?

Agora não me enganei, a porta está se abrindo, a maçaneta gira devagar, do jeito dele, centrado, seguro, sereno.

Empurra a porta lentamente para me fazer uma surpresa.

E eu fitarei o brilho dos seus olhos e nada me impedirá de ser feliz.

Não é ele.

Dói-me a cabeça, porque esperei demais.

Quem é este homem que me traz um prato de sopa, por que se veste de branco como um enfermeiro?

Por que me chama de avô?

sábado, outubro 22, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

No capítulo décimo segundo, a família acabou concordando com a proposta de Sandoval de considerar Santa como incapaz, para que ela não conseguisse mexer no patrimônio. No entanto, Sandoval jamais poderia imaginar que Linda gravara toda a conversa e que faria chantagem, a ponto de também impor as suas condições. É o que veremos no capítulo a seguir de nosso folhetim dramático. Boa leitura!

Capítulo 13

Linda olha em torno, como se aqueles móveis que há tanto tempo convivera, também fossem seus, de direito. Por fim, responde a pergunta de Sandoval com muita segurança.

— Quero que me considere da família, afinal temos um filho juntos. Faço questão que o assuma e repasse a parte da fortuna que lhe cabe de direito. E depois que dona Santa estiver fora do páreo, eu pretendo tomar conta da casa. Nada mais junsto, não acha? E depois, quem sabe um dia não casamos oficialmente?

— Você é mesmo uma desvairada! Eu jamais cometeria uma sandice destas! Fique sabendo de uma coisa, Linda eu posso chamar qualquer empregado e ele arranca este celular

de suas mãos e a mando embora desta casa para sempre.

— Se eu fosse o senhor, não faria isso. Em primeiro lugar, porque já enviei a mensagem gravada para outro celular e em segundo, se o senhor olhar pela janela, vai ver um belo rapaz caminhando pelo jardim. É meu filho, ou melhor, o nosso filho e ele sabe de tudo que está acontecendo aqui.

— Sua desgraçada, você quer acabar comigo. Quer destruir a nossa família. Mas fique sabendo que não conseguirá levar este plano maluco adiante, não pense que uma simples ameaça destas vai me convencer!

Linda fica calada. Dá alguns passos até a janela e olha por um instante para fora. Em seguida, volta-se para ele e pergunta em tom de ameaça:

— Então o que o senhor pretende fazer? Quer que eu conte à Dona Santa tudo o que está acontecendo? Quer que eu lhe diga o que a família está planejando contra ela?

— E como você foi parar aí, sua infeliz, eu não acredito que esta ideia tenha sido sua!

Linda ri, irônica.

— Para o senhor ver o grau de confiança que dona Santa tem no senhor, foi ela quem pediu para que eu me escondesse e lhe contasse tudo o que estava sendo decidido na reunião. Acho que ela foi mais esperta que o senhor.

— Eu não preciso das suas opiniões. O que aquela idiota estaria planejando? Só podia juntar-se com uma gente como você! E está traindo-a, veja, que bela amiga ela arranjou!

— Ela também arranjou um marido que a traiu e pior do que isso, está traindo-a pelas costas convencendo a família de que é uma louca. Nós somos iguais, Sandoval, nós lutamos pelas mesmas coisas, com as mesmas armas!

Sandoval, de repente, tem um acesso de tosse, que o deixa quase engasgado. Os olhos enchem-se de lágrimas e ele vai até a janela. Lá avista o rapaz que senta-se num dos bancos. Volta-se, muito vermelho. O coração aos pulos. Um ódio que o assola, mas que precisa controlar, para contornar o problema. Acha que deve fazer uma trégua, quem sabe, um pacto.

— Pois muito bem, digamos que eu aceite as condições insanas que você está me propondo, você acha que a minha família acreditaria que eu chegaria ao ponto de me sujeitar à chantagem de uma simples empregada?

— O senhor foi bem convincente com eles. Então use o seu grau de convencimento para que entendam que eu não estou brincanco. Agora, depende do senhor, não de mim. Eu proponho que dona Santa vá parar no hospital psiquiátrico. É a única maneira de resolvermos esta situação. O resto se acomoda, com o passar do tempo!

— Você hem, tao prestativa, tao religiosa, acompanhando a minha mulher na igreja, ajudando-a, você a odeia, isso sim! Você quer acabar com a vida dela, quer destruí-la!

— Sim, eu a odeio com todas as forças do meu coração. Ela me humilhou durante todos estes anos! Ela me transformou numa figura apagada, alienada da vida, somente esperando o momento certo da minha vingança! O senhor não sabe quanto eu esperei por esta oportunidade, por este momento!

— Ela era boa pra você, sua ingrata!

— Era conveniente apenas. Eu era a sombra que a acompanhava, eu era sempre a pessoa que estava ao seu lado, em todos os momentos, bastava um chamado para que eu corresse para o seu lado. Era a empregada disponível, 24 horas por dias, quase uma escrava. Na verdade, dona Santa nunca foi minha amiga, ela não suportava a ideia de eu ter um filho com o marido dela. E o que ela fez? Lidou com a situação com dignidade? Me correu de casa? Não, ela abafou a história, para manter as aparência da família aristocrática e extremamente religiosa. Ela me transformou na criada intima, para que o segredo ficasse só entre nós. Ela nunca pensou na vida que o meu filho levava longe de mim, nunca teve piedade pelas minhas noites de desespero quando ele estava doente e eu não podia encontrá-lo, enquanto os filhos dela estavan fortes e sadios ao seu lado! Eu odiava dona Santa, ah como a odeio! Ela me roubou o melhor de minha vida, a convivência com o meu filho.

— Você só quer vingança.

— Não, quero muito mais, quero a minha vida de volta, e somente o senhor pode conseguir isso.

— Mas você não acha que é um objetivo inglório? Acha que é possível enlouquecer uma pessoa? E depois, não acha desumano demais, Linda? Eu não acredito que vivendo tanto tempo ao lado de Santa, você tenha esta coragem! É muito cruel!

— Mas não é o que a família decidiu?

— Não, não é verdade. Nós apenas queremos que ela seja considerada incapaz para tomar decisões quanto ao patrimônio, decisões financeiras. Você quer enlouquecê-la realmente. Você quer inclusive que ela seja hospitalizada numa clínica.

— Mas não é o mais correto? Por que perder tempo, se a coisa pode andar mais depressa? Eu sou considerada sua amiga, ela jamais vai perceber, se eu ministrar medicamentos e o senhor sabe muito bem como consegui-los, além disso, podemos fazer com sofra ameaças, a ponto de não suportar mais!

— Você pensou em tudo, Linda. Você é muito cruel.

— Será melhor para todos. Pense bem – neste momento, Linda passeia pela biblioteca muito segura, como se tivesse as cordinhas nas mãos, para manipulá-lo – a sua filha esquecerá para sempre as sacanagens do marido, afinal, a situação da mãe é mais importante. Porá uma pedra no passado. O Tavinho vai continuar na dele, malandrão, como de hábito. O Alfredo vai viver a vida que sempre quis, já que contou que é viado, com certeza agora vai sair do armário de uma vez!

— Cale a boca, sua vagabunda!

— É melhor se acalmar, Sandoval, não vou mais chamá-lo de senhor, a partir de agora, só na frente da família. É melhor se acalmar, porque está nas minhas mãos.

Sandoval vai até a prateleira, arrasta um livro e retira uma garrafa de bebida. Serve-se no copo que está sobre a mesa e senta-se, desolado. Tenta acalmar-se.

— Meus filhos nunca admitirão essa situação, você sabe, Letícia é uma promotora, uma mulher das leis, inteligente, esperta, não engolirá essa loucura! Sem dúvida, eles entrarão na justiça contra você.

— Se o senhor oficializar a paternidade de meu filho, nada poderão fazer.

Sandoval cala-se aterrado. Nunca imaginara que pudesse ouvir tantas elucubrações de uma mente tão deturpada como a de Linda. Ela só pode ter enlouquecido, pensa.

Afinal, depois de tanto tempo, trazer essa história à baila, fazer chantagem e imaginar este plano mirabolante para livrar-se de Santa, chegava a ser imoral.

Alguém estaria por detrás de tudo isso, certamente Linda não planejara tudo sozinha. Ele precisava descobrir.

Tenta pensar numa saída, mas não vê nada ao seu alcance. Por fim, um pensamento lhe vem à mente, uma ideia que pode ser a sua salvação, a salvação da família.

Aproxima-se da janela e espia ao longe. O rapaz, agora, caminha pelo jardim, de braços cruzados.

Sandoval fecha lentamente a persiana e vai para atrás da escrivaninha, pensativo. Santa o observa intrigada.

Ele senta-se, abre a gaveta da escrivaninha e retira um talão de cheques.

— Linda, eu sei que você deseja muito mais do que isso, mas eu posso lhe adiantar alguma coisa para você me dar um tempo. Você sabe, eu não posso convencer a família de uma hora para outra, eu não posso fazer o que você me pede em relação a este rapaz. Pelo menos, por enquanto. – mostra-se que está convencido e que fará o que ela deseja – até mesmo essa possibilidade de enlouquecer Santa, não é de uma hora para outra, você sabe disso.

— E o que você propõe?

— Um tempo, seis meses por exemplo, para eu poder colocar tudo em dia. Precisarei esquecer a história da incapacidade dela por um tempo, também, terei que me conformar… bem, você sabe, vou ter que agir de outro jeito.

— Seis meses é muita coisa. Três meses, eu lhe dou três meses.

— E você acha que vamos conseguir … sabe, deixar Santa doente, como você quer?

— Como nós queremos. Como a família quer, não se esqueça.

— Não é bem assim, é diferente, mas … que seja. Você acha que teremos tempo?

— Deixe comigo, eu sei o que faço. Mas antes de tudo, já que me ofereceu dinheiro, quero o suficiente para comprar uma casa para o meu filho.

— Está bem, é justo, é justo.

— Um milhão. É o mínimo para comprar uma casa modesta.

— Você está louca? Acha que vou dispor de uma quantia assim de uma hora para outra?

— Sandoval, vamos ser bem honestos. O nosso pacto começa agora. É pegar ou largar. Se pegar, siga as minhas regras. Só isso.

Sandoval abaixa a cabeça sobre a escrivaninha, num suspiro. Neste momento, alguém bate à porta.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/smartphone-mão-telefone-mobile-1445490/acessado em 22/10/16.

terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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