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terça-feira, dezembro 12, 2017

Um natal ecumênico

Nos dias que antecedem o Natal, percebemos que apesar da correria natural pela proximidade da data, ocorrem, por vezes, acontecimentos inesperados e muitas vezes inexplicáveis.

Numa data distante, num Natal que se vai no tempo, ficaram as lembranças como registros que vira e mexe, nos ocupam a mente.

Lembro de meus pais atarefados, cada um na sua atividade, além da demanda natalina. No jantar, eu e minha irmã conversávamos animados sobre os brinquedos, o tema que mais nos interessava. Ela já tinha escolhido o seu, uma boneca de louça, olhos azuis que abriam e fechavam e comentava isso com a maior eloquência, como se fosse o ápice da modernidade. Já havia, inclusive, escolhido o nome: Maximira Carlota. Eu a ficava ouvindo e me perguntando que nome era aquele. Mais tarde descobrira que era a protagonista de uma radionovela, uma personagem que chorava o tempo inteiro, vivendo a mocinha ingênua e sofredora. Eu sonhava com um caminhão com carroceria ou uma locomotiva. Meu pai falava do trabalho, da possibilidade de no final da semana, mais perto do Natal, ele poder ir à noite, para fazermos as últimas compras. Minha mãe, certamente aumentava a lista que costumava levar para não esquecer nenhum item.

O que ela não sabia, é que grandes surpresas estavam por vir. Tudo começava pela característica ímpar de nossa rua, que era considerada uma rua ecumênica, pelo elevado número de instituições religiosas em poucos metros quadrados.

Por outro lado, era uma rua arborizada sem qualquer preocupação paisagística ou compatível com a infraestrutura urbana, desde salsos-chorão que se derramavam na calçada, uma velha figueira se irmanava com os pássaros da vizinhança e que se distinguia na última esquina, até plátanos que desenhavam as calçadas nos meses de outono. Ah, havia também um pinheiro imenso plantado por um morador alguns anos atrás, que se esgueirava entre os fios de luz, procurando o sol e a energia que demandava seu crescimento.

Quanto ao aspecto religioso, o ecumenismo de nossa rua se sustentava a partir da convivência de pessoas com religiões diferentes, mas que se irmanavam especialmente naqueles dias vindouros ao Natal.

Meu pai era católico praticante, minha mãe, nem tanto. Entretanto, a missa do Galo era sagrada, embora sempre saísse da igreja criticando o sermão do padre que segundo ela, repetia o mesmo mantra, chamando à atenção das pessoas que somente compareciam à missa, no dia do Natal. Mas, em meio a esses desacordos, ela sempre ficava emocionada pelos cânticos, pelas mensagens, pelos abraços e pela alegria que inspirava a todos. Afinal, não era tempo de ter rancores, mas de perdão. A igreja ficava no final da rua, próxima à grande figueira e ao colégio ao lado.

Ao lado de nossa casa, havia um centro espírita, no qual a médium era uma mulher um tanto enigmática, para nós crianças e até curiosa pelo desconhecimento que tínhamos de seu ritual, apenas ouvíamos os pontos que se elevavam à noite, ainda que fosse uma pessoa agradável e muito amiga dos vizinhos. Tinha grande apreço por minha mãe, que embora não compartilhasse de sua crença, passava algum tempo conversando e talvez confidenciando seus sonhos e esperanças. vUm pouco mais adiante, no meio da quadra seguinte, ficava a Igreja Batista, cujo pastor implicava com o jogo de futebol que desfrutávamos em frente ao templo, do qual ele temia que algum crente desprevinido recebesse uma bolada. Entretanto, participava ativamente das reuiões do bairro e principalmente sobre a rua, compartilhando com os demais as medidas de melhorias reinvindicadas pelo pequeno grupo populacional.

Mas naquela época, próxima ao Natal, alguém teve a ideia de reunir o pessoal da rua e quem quisesse participar do bairro. Tratava-se de dona Jandira uma velha enfermeira, que morava sozinha e que segundo ela fora objeto de um sonho muito estranho e do qual, precisava compartilhar conosco. Elaborou pequenos convites e levou-os a todas as casas da rua, aproveitando o nome das pessoas que faziam parte da lista que mensalmente recebiam a imagem de Nossa Senhora de Fátima, em sua capelinha de madeira. Foi bem fácil, até porque, líder que era para organizar adultos e crianças, juntara um bom grupo para levar os convites e marcar a hora do evento.

De tardezinha, os vizinhos aproveitavam o tempo em suas cadeiras de praia, tomando chimarrão e jogando conversa fora, enquanto os meninos abaixavam-se entre uma jogada e outra de bola de gude, pintados pelas sombras dos plátanos, que lhes desenhava as camisas e os braços em movimento. As meninas andavam com os carrinhos de boneca e conversavam animadas entre um calçada e outra, como se passeassem num parque.

No dia marcado, Dona Jandira reuniu a maioria dos moradores. Alguns vinham direto do trabalho, outros se enfeitavam após o banho e as mulheres que eram somente donas de casa, já estavam prontas para o evento. Minha mãe se arrumara rapidamente após voltar da fábrica de tecelagem, preparara um chá, alguns biscoitos porque a reunião desta vez, seria em nossa casa.

Dona Jandira colocara as cartas na mesa. O tema era o Natal e estava na hora de fazermos, segundo ela, uma festa natalina que marcasse de forma brilhante a nossa rua e mais do que isso, a nossa convivência de vizinhos e amigos. Isto era na verdade o que o seu sonho a incumbira: organizar grupos religiosos tão diferentes. A discussão foi se desenvolvendo em vieses diversos, uns interessados em elaborar um presépio vivo, outros em fazer uma árvore gigante e organizar um coral, afinal tinhamos uma professora de música no bairro, outros que deveríamos recolher alimentos e brinquedos para as famílias carentes. Alguns não gostariam de participar em nada, porque não tinham tempo ou estariam viajando. Todos os temas foram levantados, estudados e muito discutidos.

Meus pais pareciam felizes com a discussão. Os amigos reunidos, as pessoas discutindo uma maneira de representar o nascimento de Jesus, o que poderia haver de mais religioso e digno do que aquele desejo?

Eu observava a cena com os olhares de criança, cheios de curiosidade e ao mesmo tempo tendo uma nova visão que se afiançava na minha educação religiosa. Aos poucos, o assunto debatido tomava uma eloquencia poderosa, quase etérea e um bem estar parecia tomar conta do grupo. Eu estava feliz e todos pareciam assim ungidos da alegria que entrara por alguma porta e se intalara entre nós.

Hoje, passado tantos anos, eu acredito que naquele momento ocorreu para o nosso bairro uma manifestação verdadeira do Natal. Não importa o que aconteceu depois, talvez tenha sido somente o complemento das atividades do dia de Natal. Mas o que ficara para sempre, é que o Natal estava em nossos corações, em nossos sonhos, em nossas discussões sobre Jesus, Maria e José e como os representaríamos em nossa humanidade tão frágil.

sábado, agosto 19, 2017

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia.

Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se na paisagem velha conhecida.

Luisa esqueceu-os por um momento e ficou também observando as montanhas. Sentia um certo frio, apesar de ser apenas o início do outono, por isso tentava agasalhar-se, vestindo um casaco fino de lã, com uns botões que se fechavam até o pescoço. Deixou-se ficar assim, tentando envolver-se na paisagem bucólica, mas teve um sobressalto, quando um menino loiro correu na direção do fundo do vagão, com a intenção de pegar alguma coisa que lhe havia escapado, fruto de alguma brincadeira.

Luisa tentou descobrir do que se tratava, mas não conseguia ver nada, pois o brinquedo devia ter escorregado para debaixo dos últimos bancos. O barulho chamou a atenção da senhora de lenço azul, pois olhara para trás por alguns minutos. Logo se voltara para o marido e comentara alguma coisa. Os demais pareciam muito envolvidos com seus pensamentos e problemas ou não se interessavam pelo acontecido. Os pais do menino, no entanto um casal que estava na primeira fileira, aos quais Luisa nem percebera, chamaram o menino com severidade. Ele, entretanto, estava agachado entre os últimos bancos, na tentativa de pegar o brinquedo, mas com o balanço do trem, a coisa desembestara para cada vez mais longe, percorrendo cantinhos estranhos e de difícil acesso. O menino não desistia e por isso, escorregou para debaixo do banco, esticando-se e tentando colher o objeto. Luisa, então, levantou-se e sacou uma foto pelo celular. Guardaria aquela cena consigo: um menino romeno procurando o seu brinquedo. O pai levantou-se e encaminhou-se para os fundos, exigindo que ele saísse daquele lugar. Neste momento, Luisa percebeu tratar-se de um cubo mágico. Ele levantou-se com a calça do agasalho empoeirada, mas orgulhoso por ter resgatado o pequeno jogo. Quando passou por Luisa, atrás do pai, sorriu, ao que ela retribuiu. Neste momento, Luisa sentiu uma espécie de conforto, como se a vida se tornasse mais leve, a partir daquela ação do menino.

Luisa ficou observando-os com a sensação de que estava num mundo distante, provavelmente o passado. Era uma jornalista e como tal, tinha ao hábito de observar as pessoas, ouvir as conversas, tal como costumam fazer os escritores. Entretanto, com o passar das horas, tudo aquilo se apagava e ela sentia-se cansada. Esperava chegar cedo à Bucareste, mas sabia que o trem demoraria pelo menos, umas duas horas.

Quando o trem parara na estação de Bucovina, o distrito romeno de Suciava, já da plataforma ela pressentiu o cenário pastoril da região. Sentiu uma estranha vontade de descer ali, misturar-se com aquelas pessoas e descobrir o que faziam. Sabe agora, que deveria ter seguido em frente e alcançar aquelas duas horas que faltava para Bucareste, mas fez tudo ao contrário. Desceu na estação de Bucovina, o que aumentou o tempo de chegada à capital, pois para chegar até lá, era necessário esperar o próximo trem, o que demoraria muito mais do que imaginava. Mas assim, seguiu seu tino jornalístico.

Luisa desceu do trem e espalhou-se entre alguns romenos que pareciam dirigir-se a algum evento muito importante. Na pequena vila, vinham a pé e a maioria era conhecida, e pelo que Luisa conseguia entender, eram conhecidos de muito tempo, desde outras gerações, sendo a maioria vizinhos muito próximos.

Muitas mulheres com lenços na cabeça, vestidas com casacões e alguns homens de gorro de lã e jaquetas pesadas, outros vestidos com menos acessórios, mas bem agasalhados. O frio parecia ser mais intenso devido à região de montanhas. Isto, porém não os impedia de empreenderem conversas bem altas, com muita risada e comentários, que deviam ser relacionados a fatos locais. Por certo, faziam mais sucesso que qualquer publicação em redes sociais.

Luisa percebeu que os vários grupos se dirigiam à igreja ortodoxa, por isso decidiu segui-los um pouco de longe.

Quando todos entraram, ela se estabeleceu ao fundo da igreja e esperou o início do ritual religioso.

Após uma serie de orações e bençãos inerentes à liturgia, Luisa percebeu que o tema principal da cerimônia era a celebração dos vivos e dos mortos, os parentes dos que participavam da cerimônia. Eles recordavam os seus mortos e manifestavam muito mais do que um sofrimento contido, uma espécie de alegria, relembrando frases, expressões ou desejos dos falecidos.

A surpresa para Luisa, entretanto, não parava por aí, porque eles se afastaram da igreja logo após terminar o culto e dirigiram-se para um pequeno cemitério, ali perto, onde conversavam muito e riam e contavam fatos relacionados com os parentes que ali estavam sepultados. Em seguida, estendiam toalhas sobre os túmulos, abriam cestas e serviam sanduíches organizando um piquenique naquele cenário. Todos lembravam os parentes com ternura, algum sofrimento misturado à alegria, mas principalmente a necessidade de trazer à tona a personalidade do indivíduo, como se ainda estivesse entre eles. Conversavam alto e brindavam à vida.

Luisa conversou com um e outro, mais por mímica do que pela fala, pois não falavam inglês, embora como o seu idioma seja latino, arriscava uma frase ou outra e até mesmo algumas expressões conhecidas.

Agora, sentada próxima à janela, observando a paisagem próxima a Bucareste, lembrava dessas imagens e sentia-se recompensada, como se houvesse encontrado pessoas em plenitude de vida, devido à integridade de pensamento, manifestando a liberdade de ser apenas. Sem máscaras.

Ela gostaria tanto de andar pela bela Bucareste, dirigir a bicicleta às margens do rio, passar pelo pomposo prédio do Parlamento e chegar ao Carol Park, desfrutando a harmonia e o sossego das árvores. Sabia, no entanto, que o povo e suas tradições lhe haviam proporcionado uma vertente que indicava alguma coisa no horizonte, que sabia um dia poder alcançar. E ela nem tinha conhecido o castelo e o túmulo de Vlad, pensou sorrindo.

terça-feira, dezembro 13, 2016

A fotografia da vida de Santa -CAP. 26

Capítulo 27

Linda levantara mais cedo do que de costume. Após chamar um táxi, afastara-se da casa imediatamente, sendo observada por Santa, que se perguntara onde ela iria. O motivo que relatara é que retiraria uns documentos no correio, mas Santa não acreditara na desculpa. Em todo caso, agora nada importava em relação à Linda, a não ser esperar o momento certo para desmascará-la e a afastá-la para sempre de sua casa.

Neste momento, suas preocupações principais referiam-se à situação difícil em que o filho se encontrava. O caso ficava cada vez mais difícil de ser esclarecido, tornanando-o responsável pelo assassinato de Fernando.

Além disso, Alfredo estava ainda mais implicado com a acusação de sequestro revelada na gravação do celular da vítima, no qual o próprio Fernando dizia não querer tomar parte e por isso, se garantia de uma presumível acusação.

Santa observava pela janela Linda afastar-se rapidamente e ficar na porta da casa, quase na esquina à espera do veículo. Em seguida, não a viu mais e voltou para os seus pensamentos que a deixavam mais aflita. Como estaria Alfredo, numa situação deplorável de preso comum, um homem educado, que nunca tivera contato com marginais e que de uma hora para outra, convivia nos mesmos espaços.

Enquanto isso, Linda não demorara muito no seu trajeto, descera rapidamente e se aproximara de uma casa modesta.

Ao chegar na porta, ligou para alguém tentando confirmar o encontro.

A mulher que abriu a porta, parecia um pouco surpresa com a sua presença, embora soubesse que a encontraria lá. Pediu que entrasse e esperasse uma xícara de chá, que prepararia em seguida.

Linda olhou a amiga sem mostrar nenhum interesse. Disse que apenas esperaria a pessoa que chegaria, conforme o combinado.

Lúcia sentou-se ao seu lado e insistiu que tomasse o chá, pois era bom para quem estava nervosa como ela, segundo supunha.

– Você tem razão, Lúcia, mas pretendo acabar com esta história de uma vez por todas. Não tenho vontade nenhuma de tomar chá.

– É uma pena tudo que aconteceu, Linda. Eu sinto muito, de coração. Sei o quanto você está sofrendo e como amava aquele sobrinho.

– Pois é, Lúcia. Eu não podia passar por isso. Tudo poderia ser diferente, se você não tivesse entregado a mensagem com aquela gravação para dona Santa. Depois que ela soube de tudo, as coisas começaram a mudar muito naquela casa, ela fez tudo para me prejudicar.

–Pensei que você se referia ao seu sobrinho. Foi uma morte cruel.

–Sim, também e sabe Deus como morreu, como mataram ele! Tudo resultou naquela morte terrível. Mas eu estou falando noutras coisas.

– Me desculpe, Linda. Você sabe que eu não entendo bem dessas tecnologias, eu estava atrapalhada na igreja, o celular dava um sinal a cada um minuto. Foi então, que dona Santa pediu para ver o que estava acontecendo e tentou ajudar-me.

–Ajudou tanto que pegou pra ela a gravação. Mas deixa pra lá, agora isso também já é passado. Eu preciso descobrir uma coisa e isso é mais importante do que tudo, neste momento!

– Desculpe lhe perguntar Linda, você sabe que não gosto de me intrometer na vida dos outros, mas você é minha amiga e me sinto na obrigação de lhe perguntar. Você se refere ao Bispo Martim?

– Sim, você tem razão, quero ter uma conversa muito séria com ele, mas parece que está receoso em vir. Estou aqui há quase uma hora e nada dele aparecer.

– Ele não é um homem de faltar a seus compromissos, a menos que tivesse algum compromisso urgente, de última hora.

Linda fica em silêncio um pouco, pensativa. Depois, se volta para Lúcia e pede que ao chegar o bispo, ela se afaste e os deixe sozinhos, pois se trata de um assunto confidencial.

– Não se preocupe, Linda, fique à vontade. Você sabe que sou sua amiga.Eu não vou ficar atrás da porta ouvindo a conversa.

Neste momento, elas ouvem o barulho de um carro se aproximando. Lúcia corre à janela e percebe que é o bispo Martim que está chegando. Linda pede que Lúcia se retire para o interior da casa e a deixe sozinha. Depois, decide dar-lhe algum dinheiro para que saia de casa e compre algumas coisas. Pretende ter uma conversa sozinha com o Bispo.

–Mas não é preciso tudo isso, Linda.

–É sim, você estando na casa, ele ficará temeroso em se abrir, não vai querer falar nada. Por favor, Lúcia, voce já me decepcionou uma vez, não o faça de novo. Vá ao shopping, fique um tempo lá, pelo menos uma hora. Olhe aqui tem também dinheiro para o táxi. Você faz isso por mim?

– Está bem, Linda, se você acha melhor desse modo, eu vou. Pode ficar tranquila.

– Agora, abra a porta e aproveite para sair. O homem já tocou duas vezes, daqui a pouco, desiste.

Linda pega um casaco rapidamente e abre a porta, cumprimentando efusivamente o bispo Martim que se surpreende com a sua saída. Ela afasta-se e Linda aparece, pedindo que entre.

O homem a cumprimenta e senta-se no sofá na ponta oposta à que Linda estava sentada. Linda então, levanta e aproxima-se dele sentando-se numa poltrona mais próxima. O bispo fica pouco à vontade e pergunta, intrigado:

– Linda, o que aconteceu? Foi a sua patroa que a mandou até aqui? Não entendi porque não foi até a igreja.

– A igreja não é um lugar adequado para a nossa conversa, bispo.

O bispo retira um lenço do bolso e o passa pela testa secando o suor que a invade, desde às grandes entradas até alguns fios que estão molhados. Olha-a com desconfiança.

– Você não me respondeu, foi Santa que a mandou aqui?

– Não bispo Martim, eu é que queria ter um assunto muito sério com o senhor. Dona Santa não tem nada a ver com isso!

– E por que na casa de sua amiga? Por que não na sua casa, onde mora na mansão com a Santa?

– Eu não moro na mansão, o senhor sabe. Fico numa pequena casa aos fundos. Lembra-se que meu marido era o caseiro, principalmente quando todos viajavam?

– Sim, é claro que sei, foi o que eu quis dizer.

– Pois bem, lá eu não teria liberdade de conversar com o senhor, sem que todos soubessem que estava lá.

– Está bem, Linda, o que é que você quer de mim?

– A verdade, bispo Martim. A verdade.

Ele novamente passa o lenço pela testa, agora trazendo-o até a boca, que parece ressequida. Pede um copo de água e levanta-se apreensivo.

–Sente-se, bispo, sente. Eu já lhe sirvo.

– Obrigado, Linda. Eu só levantei para tomar um pouco de ar, vou abrir a janela um pouco, se não se importa, está meio abafado.

– Está bem, espere aí que já volto.

Linda corre até a cozinha e volta com a água. O bispo torna a sentar-se e enquanto absorve o líquido, a observa com curiosidade. Linda percebe e parece sentir-se mais segura em seus objetivos. Senta-se a sua frente novamente e começa a falar.

– Eu falei sobre a verdade que eu queria saber. Refere-se ao meu sobrinho Fernando.

O bispo Martim estremece o lado esquerdo da boca. Em seguida, faz um gesto sombrio, como se devesse mostrar um sentimento triste. Junta as mãos, tocando-as na boca e abaixando os olhos. Depois, complementa:

– Você deve estar muito triste Linda, eu entendo o seu sofrimento.

– Não tanto quanto devia. Estou triste sim, mas Fernando sempre foi um incômodo para mim. Eu o ajudava, mas ele não correspondia. Estava sempre aprontando das suas. Ele queria vencer na vida a qualquer preço e embora se fingisse de humilde e trabalhasse como jardineiro, ele tinha planos bem pretensiosos.

O bispo insiste no melodrama:

– Ele me parecia muito apegado a você. Sempre demonstrava um carinho por sua pessoa, inclusive eu percebia que a tratava muito bem.

– O senhor não precisa tentar me agradar. Eu sei que ele não gostava de mim, ele me suportava, porque precisava do emprego, para poder ficar em liberdade. E ele não gostava das condições que eu impunha.

O bispo Martim mostra-se surpreso.

– Mas então?

– Então bispo Martim, que não quero falar sobre mim, nem sobre a maneira como ele me tratava. Quero falar na relação que o senhor tinha com ele.

O bispo empalidece. O lábio volta a tremer e parece sentir-se perdido, sem saber o que dizer. Linda percebe o seu estado perturbado e prossegue, enfática:

– Não cabe a mim julgar ninguém, nem me interessa a vida dos outros, mas sei perfeitamente que existia uma relação muito estreita entre vocês dois.

O bispo abre o colarinho, tentando sentir-se melhor. Cada vez mais pálido e com a voz trêmula, se atreve a retrucar:

– Não diga bobagens, Linda. Você está falando coisas que desconhece.

– O senhor tem razão, bispo, sei muito pouco sim, por isso quero que me diga a verdade. Estou esperando.

Desta vez, ele parece recobrar a confiança, embora se levante com dificuldade. Depois disso, afasta-se em direção à porta. Volta-se e encara Linda com desprezo.

– Sabe de uma coisa, Linda? eu não tenho nada a fazer aqui. Não sei a que você se refere e não estou interessado. Por favor, se me dá licença…

Linda porém o intercepta antes que chegue à porta, retirando uma arma da bolsa e apontando-a em sua direção. Ele se assusta, arregalando os olhos, surpreso. Pergunta, ainda tentando tomar o controle da situação.

– O que está acontecendo Linda, você está louca? Você me respeite e sente-se onde estava. Você, uma mulher temente a Deus, fazendo um papel destes! Largue esta arma, Linda!

– Acha que estou louca bispo? Pois então, o senhor que deve ser um homem temente a Deus, deve obedecer-me e contar tudo o que sabe ou lhe meto uma bala na cabeça. É isso que quer?

Ele da alguns passos incertos aproximando-se do sofá onde estava. Pede que ela se acalme e reflita bem no que está fazendo. Aos poucos, senta-se, sempre com os olhos fixos em Linda. Sua expressão revela intenso pavor. Linda ao contrário, está segura i e determinada a conseguir a confissão que deseja.

– Vamos, que está esperando? Eu não tenho todo o tempo do mundo.

– Mas o que você quer saber, Linda? Pelo amor de Deus!

– Não fale em Deus, seu canalha! Eu nunca vi alguém testemunhar ao contrário a doutrina da igreja com tanta eficiência como você! Eu quero saber se Fernando pagava você para terem relações sexuais, se fazia chantagem com você, quero saber tudo!

– Mas para que, Linda? O que você vai conseguir com isso? O que vai conseguir com estes insultos a minha pessoa? Eu sou um religioso, Linda, veja bem a que você está me expondo.

– Por enquanto, eu não lhe expus a nada. estamos só nós dois nesta casa e a única coisa que quero é a verdade. Agora, desembucha que estou perdendo a paciência!

O bispo quase se descontrola, soluçando por alguns minutos, mas logo se recompõe, assoando o nariz e limpando diversas vezes o suor da testa, que se torna mais intenso. Com os olhos vermelhos, tenta se defender:

– Você sabe, como todo ser humano, eu tenho falhas. Sou fraco, muito fraco, e olhe que lutei toda a minha vida, mas há um momento, em que cedemos, em que não temos forças suficientes para vencermos a tentação.

–Não enrola, bispo. Vá em frente, sem muita lamúria.

–Bem Linda, eu sempre tive atração por rapazes.

– Parece que você tem atração por tudo, pegou até a velha mãe de Sandoval! Talvez tenha tesão até por árvores!

– Por favor, não me humilhe, Linda. Eu estou desconhecendo você, tão ponderada, tão afeita à moral, à educação, à religião. Por que me trata assim? Eu estou desesperado, falar isso para você é muito difícil para mim.

– Eu também o desconheci muitas vezes, mas isso não vem ao caso. Quero ouvir de você tudo! é só o que me interessa!

– Pois bem, quando eu visitava a dona Santa, eu costumava conversar com o rapaz. Ele sempre fora muito gentil, até parecia ter uma empatia comigo.

Linda sorri irônica, mas fica em silêncio, esperando o desfecho.

– Certa noite, ele me pediu carona, parece que pretendia fazer algumas compras, se não me engano, precisava de algumas roupas. – ele faz uma pausa e olha para Linda submisso – Linda, você não se importaria de apontar a arma para outro lado, sei lá, de repente, você se engana e atira. Eu fico nervoso com esta situação.

– Está bem, mas não faça nenhuma besteira, não tente se levantar deste sofá, que eu atiro. Agora, prossiga.

– Bem, como eu estava dizendo, as caronas se sucederam. Sempre que o via, até mesmo na rua, ele me pedia que o levasse em algum lugar. E sabe, ele me olhava de uma maneira que não deixava dúvidas. Ele me seduzia com o olhar, Linda, então, eu não tive alternativa, eu acabei caindo na dele, entende?

– E depois, o que aconteceu?

– ele começou a pedir-me presentes, roupas, sapatos, até dinheiro.

– E onde se encontravam?

– Linda, é claro que nos motéis. Eu pagava a ele, Fernando era um garoto de programa, pelo menos para mim, embora eu sentisse muito mais do que uma simples atração sexual. Eu tinha um carinho especial por ele.

– Um garoto muito caro, não?

– Sim. Ele era esperto, começou a exigir bem mais do que eu podia dar, eu precisava arranjar dinheiro todas as vezes que nos encontrávamos, além das coisas que comprava.

– Muito mais do que bens materiais, ele era caro em relação ao que ele sabia. Você poderia perder o seu cargo, ser execrado da comunidade, talvez até expulso da igreja ou no mínimo, mandado embora.

– Sim, é verdade.

– E o que aconteceu depois?

– Depois não aconteceu nada. O pobre rapaz foi assassinado. Eu não sei de nada, não sei o que aconteceu.

–Mas ele lhe fazia chantagens.

– Não, ele apenas brincava, que um dia contaria tudo, que falaria na igreja, no bispabo, mas nunca dei importância. Sabia que era apenas uma maneira de me prender a sua sedução, sabe? Na verdade, ele nunca fez chantagens.

– E esta carta aqui que eu tenho a cópia, que ele mandaria para o bispado, contando tudo, toda a sacanagem que vocês faziam? Isso não é chantagem?

O bispo fica desolado. Abaixa a cabeça, quase levando-a ao colo, segurando-a com as mãos. Ainda, sem olhar para Linda, pergunta:

– E como você tem esta cópia?

– Porque eu sabia tudo que acontecia com ele. Não se esqueça que ele morava comigo, me devia favores. Fernando era um cara que devia à justiça e eu o ajudava, tanto que ele nunca teve problemas, mesmo estando no regime de condicional.

– Mas eu jamais tive contato com esta carta. Soube qualquer coisa, mas não dei importância, ele nunca me faria mal.

– Não se faça de idiota, bispo Martim. Você sabia e muito mais, porque ele lhe fazia chantagens, a ponto de lhe pedir muito dinheiro. E outra coisa de muito valor que não era sua: a bússola de ouro. Ele queria a bússola que estava na igreja, que pertecera à família de dona Santa.

– Por favor, Linda, pare com isso, por favor, você está me deixando doente, estou passando mal. Olhe, como estou suando.

– Não é pra menos, mas se quer acabar com isso, fale tudo. Diga o que aconteceu com Fernando.

– Eu já lhe disse tudo, eu caí na tentação, fui um louco, um idiota, eu nunca deveria ter feito aquilo! Estou muito arrependido, se eu soubesse meu Deus, o que ele faria, jamais teria me aproximado daquele rapaz!

– Fora toda a sacanagem que fizeram juntos, isso não me interessa. Quero saber sobre as ameaças. Quero saber se você se vingou de Fernando, pela sua boca, agora, neste momento ou lhe mando para o inferno! – nete momento, ela volta a apontar a arma para o bispo – Estou aqui pra tudo bispo, quero a verdade ou lhe dou um disparo bem no peito! É isso que você quer?

– Voce pretende me matar de qualquer jeito, eu já entendi tudo.

– O senhor é inteligente, bispo. Mas se não há alternativa, então fale tudo. Fernando o ameaçava, o que mais ele fazia para apavorá-lo?

– Está bem, está bem, eu falo então. Ele escrevera a carta, mas havia um video, um video íntimo nosso, que ele dizia que publicaria na internet.

– Que nojo! Você me dá asco, bispo!

– Você não pode me julgar, Linda. Ninguém pode me julgar, só Deus! Além disso, você não é a santinha que parece, você tem um filho com o Sr. Sandoval. Pensa que é melhor do que eu?

– Mas eu não matei ninguém!

– O que você quer dizer?

– Que você veio aqui, na noite do crime, que você o matou antes de Alfredo chegar! Você é o assassino! Foi você seu miserável! Confesse, desgraçado, confesse que matou o meu sobrinho!

– Já que você quer saber, Linda, eu matei sim! Matei aquele desgraçado que queria a minha ruína, que queria acabar com a minha vida! Eu o matei porque era ele ou eu, pois saiba, eu tinha a chave da casa, eu transava com o seu sobrinho na casa que era de sua irmã, e foi ali, que marquei mais uma vez um encontro, só que para matá-lo! Agora me mate, acabe comigo e me mande para o inferno, como você disse! Vamos, acabe com isso!

– Não, você está enganado, eu não vou matá-lo, você vai para um lugar muito pior, pois a polícia vai prendê-lo agora, porque eu combinei com eles que estão na escuta e com um toque no celular já estão aqui para pegá-lo.

Neste momento, a porta se abre e três policiais surgem, enfrentando o bispo Martim, acusando-o de homicídio premeditado e algemando-o.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

terça-feira, setembro 13, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 2

No 1º capítulo de nosso folhetim dramático, conhecemos um pouco a personalidade de Santa, a matriarca da família, uma mulher extremamente religiosa, católica tradicional, que preparava-se para a sua festa de 60 anos na Igreja que conhecia desde criança. Enquanto se encaminha para a missa em sua homenagem, lembra de sua primeira comunhão, das impertinências do irmão, dos cuidados da mãe, da indiferença do pai em alguns momentos, enfim, de sua vida infantil naquele ambiente religioso. Agora, chegando ao momento de entrar na igreja, sentia uma dificuldade, um certo aperto no coração e por isso, fazia-se perguntas inquietantes. Veja a seguir, como hoje é terça-feira e o nosso folhetim é publicado aos sábados e nas terças, o 2º capítulo de nossa eletrizante história. Aqui, aparecerá a família de Santa e suas condutas bem diferentes de suas expectativas. Espero que gostem. Abraços.
CAPÍTULO 2

Quem a conduzia até ali? A sua vaidade? Não, uma mulher temente a Deus, uma dama dos círculos mais nobres da sociedade, uma mulher respeitada por ser o que realmente era. Não podia ceder agora. Não era o momento.

O marido se aproximou, intrigado. Segurou-a novamente pelo braço. Abriu aquele sorriso matreiro, que em algumas vezes a fizera pecar e a convenceu de vez.

— Vamos, vamos sim. Estou nervosa.

— Não é pra menos – antecipou satisfeito.

Os fotógrafos aproveitaram a pausa para mais flashes, quanto mais instantâneos, melhor.

Uma das ajudantes da coleta do ofertório, correu ao seu encontro para informar que logo tocariam a música de entrada, para ela se preparar.

Santa sorriu, obedeceu e deu passos serenos e firmes, ao lado do marido, na direção da porta da igreja.

As luzes se acenderam. Eram focos brilhantes de todos os lados, obedecendo a rigorosa decoração.

Santa pensou que fosse chorar, mas se conteve nas fisionomia dos seus, que se apresentavam nos bancos, um a um, aos quais ultrapassava, no andar cadenciado.

Estavam quase todos juntos, com exceção do filho mais novo, um pouco afastado; um artista multimídia, que observava todo o cenário, talvez engendrando uma futura apresentação de seu trabalho. Era magro, cabelo liso, caído na testa, de um dourado falso, que ocultava vez que outra o olho direito. Vestia-se casual e não parecia muito preocupado com detalhes de pompa.

No banco mais a frente, estava a filha de olhos vermelhos, uma lágrima insistente correndo pela bochecha e embargando a voz, quando se dirigia ao irmão mais velho, que parecia não entender nada do que dizia.

Era alta, elegante, vestida de preto, com uma rosa também preta no decote. Poucos brilhos, poucas joias, mas o suficiente para bordar uma figura deslumbrante.

O marido, em seu lado esquerdo, observava a cena silencioso, cumprindo talvez um compromisso inevitável. Estava vestido de acordo com a ocasião e suava aos borbotões. O cabelo puxado para trás, mostrando entradas proeminentes, um olhar obtuso à deriva e a boca de lábios finos, que ora resmungava o desconforto que sentia. A mulher, pouco o notava.

Santa logo percebeu que os amigos se aglomeravam um pouco atrás dos parentes.

As mulheres bem vestidas em generosos decotes, os homens formatados em ternos comportados. Um que outro se salientava pelo penteado mais ousado ou mesmo por cochichos e sorrisos fora de hora.

Santa por um momento, teve a impressão de ver a mãe, logo seguida pela babá, esgueirando-se pelos bancos e pedindo silêncio com aquele sorriso doce de publicidade. Via-a se enfileirando no corredor, ultrapassando as crianças que se perfilavam e lhes falava com agradável sonoridade. Um sorriso aqui, um muxoxo ali e ela liderava a situação, sempre seguida pela babá, que apalermada no burburinho, às vezes se perdia dela.

Mas foi só por um momento, em seguida se concentrou no altar.

Avistava de longe, o bispo se adiantar, e tinha a impressão que seus olhos estavam vermelhos.

Quem sabe ele também sonhara com aquele momento? Quem sabe ele imaginara a sua igreja cheia de pessoas ilustres, acomodando-se entre os bancos devidamente ornamentados, entre velas que se acendiam à trajetória de Santa e flores que pareciam se abrir, à sua passagem.

Talvez tudo fosse um sonho. Também para ele.

Mas, por certo, ele poderia ver no primeiro banco, um pouco, à esquerda, o prefeito e a mulher, assim, enlaçados, esbanjando afetuosidade e ótimo relacionamento, também um que outro vereador, tanto da situação quanto da oposição e até alguns candidatos, que não dispensavam a oportunidade de aparecerem.

Como não exultar com a igreja tão cheia de celebridades, de notáveis que abrilhantavam o evento!

Agora, ela e o marido estavam cada vez mais próximos da chegada.

Piscou para o filho artista, que estava à esquerda dos demais e ele a olhou intrigado, quem sabe se perguntando que papel fazia a sua mãe, naquele momento. Não sorriu, mas acenou lentamente, levantando uma mão absorta, no ar, que se abandonava em seguida, no colo, embora a mãe já disparasse o olhar para outra direção.

Ela agora dedicava-se ao trio: os dois irmãos e o genro. O filho, sisudo, mas que por ora abria-se num sorriso para a mãe. Ajeitava, sôfrego, a gravata, acondicionando-a de modo a ficar reta, o que parecia fora de seu alcance. Também estava ansioso.

A filha se apoiava no marido, os olhos marejados, quase se transformavam em soluço. Sorriu para a mãe, para não assustá-la. Também porque deveria conter-se: era uma promotora estadual, uma mulher afeita à singularidade da discrição, do cuidado, da sutileza. Devia evitar a emoção.

O genro limitou-se a acenar, prudente.

A música parou e Santa, ao lado do marido, se posicionou no primeiro banco, no local especialmente dedicado a eles, que ficava bem ao centro e próximo ao altar.

Respirou fundo e ouviu as primeiras palavras do bispo, as quais se referiam a ela, antes de iniciar a missa.

No sermão, mais uma vez o seu nome foi lembrado, desta vez, para discorrer toda a sua trajetória de mãe, esposa fiel e digna representante da sociedade, além de benfeitora e participante entusiasmada da comunidade.

De repente, o bispo desceu do púlpito e se aproximou do casal.

Todos os olhares imediatamente se voltaram para os dois. Ele solicitou que o coroinha lhe trouxesse uma pequena caixa.

Pegou-a com cuidado, enquanto o menino se afastava rapidamente para o seu lugar.

Santa aguardava a surpresa, com verdadeira expectativa.

O bispo então, abriu a caixa e retirou uma pequena joia, uma espécie de bússola estilizada, constituída de prata, ouro branco e alguns brilhantes incrustados. A pergunta que emendou à Santa tinha a finalidade maior que a plateia participasse, tal o esforço verbal que produziu, sem utilizar o microfone.

– Então, nossa benemérita amiga, sabe o que é esta pequena joia?

Santa engoliu em seco. Os olhos brilharam profundos, em lágrimas que se espalharam rápidas pela face. Utilizou um lenço que o marido com presteza lhe entregou, e tal como ela, sua expressão era de extrema perplexidade.

Antes mesmo que Santa respondesse, o marido resmungou, apalermado: – Minha avó se revirou no túmulo.

Santa o olhou espantada. O bispo fingiu não ouvir e repetiu a pergunta.

Ela então, respondeu, indecisa.

– Na verdade, não sei bem.

O bispo prosseguiu, entusiasmado: – Mas a comunidade se lembra muito bem, minha amiga. Esta joia foi o simbolo de sua apresentação à igreja.

Ela gostaria de perguntar – como assim ? – se não lembrava do que se tratava. Entretanto, se conteve, quieta.

Evitou qualquer gesto, a não ser o de enxugar as lágrimas.

Tinha consigo que tal objeto devia fazer parte de sua infância, que suscitava lembranças da mãe, da sua família, mas não conseguia identificar a razão de estar nas mãos do bispo.

Também havia aquela observação infeliz do marido. O que ele queria dizer com aquilo?

— Pois bem, sua mãe doou esta pequena relíquia para a igreja. Isso aconteceu no seu batizado, mas quis a Providência, que um padre de nossa comunidade, um velho e diligente capuchinho, guardasse-a com cuidado e ela permaneceu conosco até os dias de hoje. Ele se foi, a joia ficou e a história transcorreu. Este pequeno relicário, tenha a certeza, é o símbolo da sua fé. Por isso, tivemos a feliz e providencial ideia de devolvê-la à senhora, Dona Santa. Acho que esta bússola que indicou o seu caminho para a igreja, que transformou a sua trajetória numa vida santificada, esta bússola, hoje lhe pertence.

– Mas eu não posso aceitá-la.

– Aceite-a sim, porque é sua e de hoje em diante, norteará o restante de sua vida. É um objeto abençoado que só lhe transmitirá paz. Além disso, a senhora é a única pessoa indicada para ter uma bússola em sua vida. Quem sabe, não norteará mais pessoas para que se engajem no caminho do bem? Contamos com a senhora, Dona Santa.

– Santa teve a impressão que a voz do bispo se tornava um pouco rouca e uma emoção mais forte o atingia.

Então, fitou o marido, solicitando a sua intervenção.

Ele estremeceu levemente as pernas, denunciando a total incapacidade de decisão. Fitou-a, meio intrigado e abriu bem os olhos sob as sobrancelhas cerradas. Por um momento, parecia envolvido em terríveis pesadelos, mas subitamente, como se tomado por uma entidade salvadora, abriu-se num sorriso condescendente. https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

Ela aceitou a joia.

Foi assim que Santa participou do momento mais doce de sua existência.

Mas a incongruência de seus pensamentos não demoraram a deixá-la ansiosa.

Uma joia tão importante para a igreja e que possuía um significado para a sua vida, deveria representar uma grande responsabilidade.

Suas mãos, por um momento, começaram a suar e seu coração tomou-se de pequenos saltos, agitando o sangue que corria nas veias.

Que mensagem seria aquela para a sua vida? Que caminhos deveria tomar de agora em diante? E o que o marido pretendia com aquele devaneio? Um mistério que somente o futuro resolveria.

Fonte da ilustração: Josué Miguel Escudero. in site: https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

sábado, setembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 1

Santa, a matriarca de uma família rica e respeitada, muito religiosa e benfeitora da comunidade prepara-se para uma ocasião especial, que é o seu aniversário de sessenta anos celebrado por uma missa. Aos poucos a fotografia de sua vida revela que a harmonia da família é apenas um flash da câmera e aos poucos, todos vão mostrando o seu discurso, em cujo tema a hipocrisia humana é flagrada.

Assim começa o nosso folhetim dramático.

A seguir o 1º capítulo (as publicações dos capítulos são feitas aos sábados e terças-feiras)

Fonte da ilustração: MichaelGaida. Do site www.pixbay.com

Nem sempre se tem a convicção de que a vida revela uma atmosfera de conforto ao espírito, mas para Santa, tudo parecia suave e doce, a ponto de transportá-la aos melhores momentos de sua infância.

Enquanto se dirigia para a igreja, lembrava da mãe, sempre zelosa com o vestuário e de seu cuidado obsessivo com o comportamento. Nada lhe escapava: um gesto sorrateiro, um olhar gracioso para o irmão, uma implicância com o véu. A vida andava numa trajetória densa e comportada. De acordo com seus princípios.

Era uma primavera, como a de hoje. Havia aquele friozinho insistente, produzido pelo vento que enrolava papéis na esquina. Talvez o único rodamoinho que se permitisse.

A mãe descera do carro, segurando o vestido, acomodando-o como podia, para manter-se em pé, sem que o mesmo lhe subisse à cabeça. Nesta tarefa quase inglória, conduzia as duas crianças. Não confiava na babá.

Um pouco mais atrás, taciturno, com as mãos coladas aos bolsos, surgia o pai, devagar, com uma aparência não tão comportada e mais acostumada a lugares profanos. A missa não parecia ser o melhor programa, mas ele a acompanhava.

Santa percebia o quanto o pai se aborrecia com aqueles rituais. A mãe, ao contrário, sentia-se renovada e feliz. Era mais do que um dever de cristã: uma alegria genuína.

Ao entrar na igreja, ela separara os irmãos, com a ajuda da babá. Um iria para a esquerda, ao lado dos meninos, e Santa seguia a sua turma que a aguardava próxima ao altar. Era a primeira comunhão, uma solenidade tão esperada.

O irmão se colocara na posição entre dois colegas menores, ajudado pela professora de catecismo. Antes mesmo de qualquer observação da professora, o menino voltou-se para trás, à procura da mãe e gritou com a voz aguda, atingindo o ápice, no leve burburinho: — Mamãe, a minha vela tá torta!

Houve uma risada geral das crianças próximas. A professora o advertiu que ficasse quieto, esclarecendo que aquela envergadura era produzida devido ao calor da mão, mas ele insistiu na reclamação.

Santa olhou para o irmão e escondeu o riso, com a mão em concha. A mãe, apesar da impossibilidade de conseguir outra vela, aproximou-se do menino, reprendendo-o, fazendo-o calar-se com dificuldade.

Quando os ânimos se acalmaram, ela se afastou rapidamente, já que a cerimônia não demoraria a iniciar.

Mãe, pai e babá sentaram-se um pouco atrás, confiantes em que poderiam orientá-los, tanto a um, quanto ao outro, apesar da distância física entre os irmãos e a própria distância entre os bancos.

Santa esvoaçava o véu e o vestido, assumindo uma postura digna, quase santificada, segurando o rosário entre as mãos enluvadas. Santa, que naquela época, era chamada de Santinha pelos pais, olhou de vesgueio, com cuidado, volteando levemente o pescoço. Pôde ver a mãe toda animada, mas o que mais a impressionou foi certificar-se de que havia uma lágrima salgando a face inexpressiva do pai. Uma emoção talvez atingisse aquele coração dissimulado, revelando a alma que evitava mostrar-se.

Santa ou Santinha virou a cabeça feliz. Fitou a cruz e agradeceu emocionada o singular encontro espiritual do pai. Nem se deu conta de que o irmão era chamado à atenção pelo diálogo inesperado com um colega, talvez até contando piadas.

Agora, após tanto tempo, estava ela naquele carro, sentindo a sensação primitiva da primeira comunhão, dos primeiros gestos de afeição à religião, pela sensação quase explícita de se encontrar com Jesus. Estava ela, se encaminhando à rica catedral, não como a criança que explorava um mundo novo, mas a mulher de 60 anos, Dona Santa, que havia enfrentado tantos percalços na vida, mas que se abastecia plenamente dos frutos religiosos, para se manter uma mulher digna.

Além de tudo, era uma benfeitora, participante da Igreja como ministra da comunhão, querida na comunidade e que agora se preparava para enfrentar um dos dias mais felizes de sua vida: a festa de seu aniversário.

Desceu do carro ao lado do marido. Ela estava exuberante, no vestido esvoaçante, que lembrava um pouco aquele da primeira comunhão, descontando as proporções exageradas de massa corporal que adquirira. Mas era assim: um vestido leve, que lhe descia até a canela, num tom verde- água, pernas emolduradas por um sapato de salto preto, que acompanhava a bolsa da mesma cor. As pernas também já não eram as mesmas, os sapatos mal cabiam nos pés, tão inchadas se encontravam. O passo, entretanto era firme tal como o daquela época.

O olhar, embora guarnecido por pequenas bolsas, atenuadas pela maquiagem, ainda apresentava o mesmo brilho e a mesma curiosidade que a abastecia nos momentos de plena euforia.

Quem a observasse ao sair do carro, e havia uma centena de curiosos próximos à catedral, perceberia um penteado simples, no cabelo doirado, preso num coque suave, com contornos quase infantis, que lhe caíam nos olhos pequenas mechas douradas, como uma franja mal comportada. Seus olhos azuis acinzentados davam uma cumplicidade de magia e festa, produzindo uma delicadeza cúmplice com o acontecimento. Era uma mulher jovial e ainda muito bonita.

O marido, ao contrário, apesar da estatura esguia, sua constituição física era um tanto desarmoniosa: os braços imensos para o corpo franzino, as pernas finas, cujas calças balançam ao mínimo movimento, um nariz alongado e olhos sumidos, quase fechados sob sobrancelhas extremamente cerradas. Tinha, porém uma coisa que o salvava: o sorriso largo e amigável. Não se podia dizer o mesmo da voz, que via de regra, balançava os tons mais diminutos, tornando-os estridentes e intoleráveis. Falava aos gritos, e costumava ser prolixo. Entretanto, era um bom homem, não tão chegado às coisas do céu, mas criara uma família com seu temperamento comportado de industrial pequeno, mas bem sucedido.

Os dois se aproximaram da igreja. Por um momento, Santa soltou o seu braço, parou e recuou alguns passos, como se não se atrevesse a entrar naquela igreja da qual participara inúmeras vezes. E o fizera nas situações mais diversas, desde as dedicadas às ajudas comunitárias até em planejamentos onde passava noites a fio, para resolver determinadas pendengas na comunidade. Outras vezes, ficara apenas rezando para que os seus projetos se coadunassem com os do Senhor e a coisa andasse, talvez não como desejasse, mas de acordo com a vontade do Altíssimo.

Entretanto, não estava pronta ainda. Suas pernas tremiam e suas mãos se apegavam ao peito, como se protegessem de alguma coisa desconhecida e inexorável, que fosse arremessá-la para longe e tirá-la do caminho proposto.

quinta-feira, julho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 12


Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de tão misterioso nesta cidade? O que todos queriam esconder?

Júlio decidiu fazer o lanche habitual para depois dirigir-se à casa de Rosa, que hoje não viera ao hotel.

O garçom se aproximou amistoso.

– Então, gostou do lanche?

– Tanto quanto ontem. Perfeito.

– Acho que na alta temporada, o patrão vai aceitar a sua sugestão de lanche e começar a servir todos os dias para todos.

– Hum, boa ideia.

– Só que pra ser sincero, não acredito que dê certo. Aqui neste fim de mundo, nem no verão vem muita gente. Uma meia dúzia de gatos pingados.

– Você… Como é o seu nome mesmo?

– Anderson.

– Anderson, você sempre morou aqui?

– Eu nasci aqui, morei uns meses na capital, mas não me adaptei. Acabei voltando.

– É, a vida é dura. Na cidade grande, a gente tem que ter uma boa estrutura.

– O senhor falou tudo.

– Anderson, eu gostaria de saber onde mora a senhora que trabalha aqui no hotel, a da portaria.

– Ah, a Rosa? Sim, claro. Mora nessa mesma rua, umas seis quadras adiante.

– Ela é a mãe de Paulo, o mecânico?

O rapaz sorri, irônico:

– Dizem que é mãe dele, mas é o que a cidade quer ouvir. Ela é uma mulher madura e o povo não aceita.

– Não aceita o que?

– Que ela seja amante dele.

– Amante?

– Sim, preferem que seja mãe. É uma gente muito tacanha.

– Mas como vão dizer que é mãe se no passado, nunca a conheceram como mãe dele.

– Vai pensar o quê? Essa gente é maluca. Preconceituosa e louca, isso sim. Pra eles, o que vale é a aparência. Não importa se a pessoa é puta ou ladra, o que vale mesmo é como ela se apresenta na sociedade. Mas falando do Paulo, o que dizem, que o verdadeiro problema é que ele veio pra cá, procurando a mãe que não via desde pequeno. Encontrou essa tal de Rosa e ela o ajudou alugando um dos seus apartamentos. Dizem por aí, que ele nunca pagou nada e para completar, todos passaram a dizer que ela era a mãe dele.

– Que coisa absurda, você não acha?

– Tudo nesta cidade é absurdo, doutor.

Júlio voltou para o quarto para tomar um banho e trocar de roupa, quando recebeu uma ligação no quarto. Esperava que fosse seu amigo Jairo justificando ter dado o seu nome ao farmacêutico para investigar o caso. De todo modo, foi uma boa medida. Afinal, seria recompensado e cobraria uma bela quantia ao pobre homem. Não poderia é ser desonesto com a tal Sara Soares e deveria rescindir o contrato. Por outro lado, havia um caso concreto, um homem que precisava encontrar o assassino da filha ou pelo menos, saber o que tinha acontecido. Quanto à Sara, tudo o que dissera parecia ser uma justificativa para vingar-se de Rosa. Ele precisava esclarecer o crime, pois os fatos transcorriam de modo a condenarem uma pessoa inocente, como o médico ao qual o farmacêutico acusava com tanta veemência. Até que provasse o contrário, qualquer um seria o culpado, até mesmo a própria maestrina, como alguns suspeitavam. Também havia a hipótese da jovem ter se suicidado. Ou quem sabe, fora um acidente? O telefonema, porém não era de seu amigo e Júlio surpreendeu-se em saber que Rosa estava ligando para ele. Não pretendia sair àquela hora, deixaria a conversa com a mulher para o dia seguinte, mas ela demostrava muito interesse em falar-lhe. Na verdade, não se pode perder a oportunidade quando aparece assim, pensou o detetive. Talvez fosse um fato novo e se a maestrina queria tanto falar com ele, é porque havia alguma coisa a ser investigada.

Algum tempo depois, Júlio estava na frente do portão de grade, esperando ser atendido. Observou que uma luz se acendeu bem ao fundo, no interior da casa, deixando um pequeno foco para a calçada de lajotas. Olhou em torno e percebeu os olhos de um cão que o observava em silêncio. Tocou a campainha novamente e o animal rosnou sem mover-se. Rosa, em seguida apareceu, pedindo que o detetive aguardasse que ela levaria o cão para uma área, ao lado da casa. D’tartagham era um cachorro tranquilo, mas não se pode confiar, informou Rosa sorrindo.

Júlio voltou-se para o carro, que deixara sob o holofote de um poste e ficou esperando por Rosa. Por um momento, pensou o que estava fazendo ali. Um homem de sua experiência, de repente, atender o chamado de uma mulher, que poderia se configurar numa cilada. Respirou fundo. Ajeitou a gola rolê, cobrindo ainda mais o pescoço, fechou o paletó e aguardou que ela voltasse, com certa ansiedade. Em seguida, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos que imaginava serem absurdos, afinal, quem era Rosa, uma professora, maestrina do coral da igreja e em alguns dias da semana trabalhava na portaria do hotel. Como poderia pensar em alguma cilada de uma mulher como aquela? Por outro lado, jamais poderia imaginar numa história tão absurda com o mecânico da oficina, contudo, sempre fica a dúvida, afinal quem pode entender a psicologia humana? Cada um é como é, pensou. Nisso, Rosa apareceu, abriu o portão de ferro e pediu que entrasse. Júlio sentou-se numa poltrona próxima à área onde estava o cachorro e mesmo na escuridão podia ver os olhos do animal pela vidraça da janela, o qual parecia à espreita de algum movimento. Ao mesmo tempo, talvez pela área desembocasse alguma brisa, pois sentia o ar escasso no ambiente. Ela entendeu a dificuldade de Júlio, pois perguntou se queria que abrisse a janela.

–Se acha que não ficará muito frio, preferiria sim. - Respondera, agora mais tranquilo.

Ela abriu um pouco a persiana, depois sentou-se no sofá a sua frente. Antes perguntara se ele não gostaria de uma bebida.

–Não, não, obrigado. Acabei de fazer um lanche substancioso. Bem, parece que você queria falar comigo, Rosa.

– Pois é, pensei inclusive que o senhor não viria. Deve ter tantos compromissos e eu incomodando-o uma hora dessas. Mas é que não gostaria de falar-lhe no hotel, muito menos na igreja, onde temos o coral. Lá há sempre muita gente, principalmente neste horário.

– Não se preocupe, Rosa. Se eu não pudesse, diria na hora em que me convidou. Parece que você está preocupada com alguma coisa.

– Pra falar a verdade, estou sim. O senhor sabe que eu sou maestrina do coral da igreja.

– Sim, e pelo que me consta tem um bom grupo lá.

– Sim, por isso tenho muitos conhecidos, alguns amigos de algum tempo.

Júlio aquietou-se, esperando que ela falasse. Percebeu que Rosa estava disposta a contar-lhe alguma coisa muito grave, mas não poderia apressar os fatos.

Rosa levantou-se, foi até a janela que ficava na outra extremidade da sala e observou a pouca luminosidade do jardim. Perguntou, displicente:

– O senhor reparou com o meu jardim é escuro? Já mandei trocar as lâmpadas várias vezes, mas os marginais que passam por aqui jogam pedras e acaba nisso, nessa escuridão. Já estou desistindo, sabe?

– Mas é uma cidade tão pequena. Não reconheceram os vândalos?

– Ninguém dá a mínima para o que acontece com a gente, nessa cidade. Eu posso ser assassinada, posso morrer a qualquer momento e ninguém faz nada.

– Você parece muito nervosa, Rosa.

Rosa voltou a sentar-se e pôs as mãos na cabeça, como se fosse chorar, num gesto que parecia de desespero. Num segundo, porém, se recompôs e após um longo suspiro, levantou a cabeça, encarando Júlio de um modo bastante grave. A seguir, perguntou, disfarçando o nervosismo:

– Tem certeza de que não quer alguma coisa, detetive? Posso servir um suco.

– Não, não, como lhe disse, Rosa, para mim está de bom tamanho. Quero apenas conversar com você, saber o que lhe aflige, por isso vim aqui.

Ela permaneceu em silêncio, como se temesse prosseguir no assunto. Júlio então, a encorajava:

– Você me disse que tem muitos conhecidos no seu grupo, alguns amigos. E então, queria falar sobre isso, não?

– Sim, entre os meus amigos está o Pe. João. Ele é uma pessoa boníssima, tem os seus defeitos, como todo mundo, mas tem se mostrado um grande amigo.

– Há outras pessoas que considera amigas, dentro do coral?

– Eu tinha uma grande amiga, a esposa do Seu Domingues.

– E ela deixou de sê-lo?

– Infelizmente, ela morreu. Não sei se o senhor teve a oportunidade de conhecer o Seu Domingues? – Júlio acenou negativamente e ela prosseguiu. – É um velhinho muito querido aqui da cidade, o senhor vai encontrá-lo sempre jogando damas na praça ou então sentado tomando sol. Também passa muitas horas na loja de conveniência, onde trabalha uma nossa colega do coral, Marília.

– Por que ele fica lá?

– Aquela loja era dele há muitos anos. Tinha um posto de gasolina, a loja e até uma farmácia. Quando a mulher morreu acabou vendendo tudo, vive sozinho num apartamento, mas gosta de ficar na loja, tomando um café e conversando. Isso, quando está de bom humor, porque de uns tempos pra cá, anda muito amargurado.

– Pela morte da mulher?

– Pela idade, pelas dificuldades que possui como todo idoso, naturalmente e claro, sim, pela morte da mulher.

– É normal, você não acha?

– Até certo ponto, sim, mas é que segundo ele, tem outros motivos.

– Outros motivos?

– Bem, dizem que a mulher morrera em virtude de um erro médico. A coitada tinha diabete e parece que o médico deu uma dose errada, sei lá, uma coisa meio absurda, sabe?

– Este médico que atualmente é residente no hospital?

– Sim, o dr. Ricardo. Mas isso não aconteceu agora, foi no tempo em que ele era apenas um estagiário. Tinha se graduado, mas ainda não havia passado na prova de residência, por isso ficara estagiando por dois anos na cidade. Pelo menos, é isso que dizem.

– Esta história é comentada na cidade ou apenas pelo tal de Seu Domingues?

– Dá na mesma, detetive. Todo mundo sabe o que acontece. Seu Domingues deve ter comentado com alguém, e certamente passou de um para outro e todos acabam falando a mesma coisa.

– É, falam de todo mundo. Mas me diga, Rosa, o que a deixou preocupada, além das histórias de seus amigos, deve haver alguma coisa que diga respeito a você?

– Por exemplo?

Júlio pensou em disparar rapidamente, a palavra Paulo, o mecânico, mas se conteve. Não era o momento de abrir o jogo. Precisava saber mais, descobrir o motivo do chamado de Rosa. Então, deu meia volta e remendou:

– Por exemplo, pessoas do seu grupo que a importunam. Pensei que um desses a incomodasse, ou que a deixava apreensiva.

– Bem, acho que o senhor tem razão. Mas falei na mulher do Seu Domingues, chamava-se Lorena, sabe, era uma criatura dócil, amiga. Isso me deixou apreensiva, sim, porque é o caso da diabete. O senhor deve saber que há casos de pessoas que morreram envenenadas com insulina, nem sei se se pode afirmar assim, chamar de envenenamento, mas aconteceu de pessoas que não tinham a doença, morreram por terem sido injetadas nelas o medicamento.

– Isso foi provado?

– A polícia está investigando. Alguns casos foram arquivados. Não há como provar, sabe.

– Você acha isso possível?

– Eu fiquei pensando neste caso da Lorena. E depois me falaram de outros casos semelhantes, não de erro médico, mas relacionados à insulina. Para encurtar o caso, detetive, eu estou com medo, porque hoje fui ao médico, fiz uns exames e descobri que estou com diabete. Eu estou com medo de morrer doutor!

– Rosa, você se deu conta que há dois tipos de crimes na cidade e que um determinado grupo de pessoas chama a atenção e dá muita importância a um tipo de crime e outro grupo está muito preocupado com o outro.

– Como assim, detetive?

– Há estes crimes que você descreveu, sobre pessoas que foram, segundo o que se comenta, injetadas com insulina e morreram por não possuírem a doença, não é isso? Há outras pessoas que falei, como Sara Soares e parece que seu filho também foi vítima disso, embora não tenha conversado com ele ainda.

– O senhor se refere a Raul.

– Sim, parece que ele faz parte do coral e é muito amigo seu, não?

Rosa parecia desconsertada. Caminhava de um lado para o outro da sala, como se não soubesse o que dizer.

Júlio concluiu:

– Mais tarde, eu faço questão de falar sobre ele, mas quero completar o meu pensamento. Falei no primeiro tipo de crimes que estão acontecendo aqui, mas há um outro, que se refere a uma moça que foi assassinada ou se suicidou, não sabemos, mas é um caso que envolve alguns suspeitos e muita dúvida pela polícia. Há um pai em absoluto desespero, que quer justiça. Há um médico, este mesmo que é residente na cidade, que está sendo acusado e ninguém fala, a não ser algumas pessoas interessadas no assunto. Você entendeu o que eu quero dizer, Rosa?

–Eu soube sobre o crime sim, mas para mim, a polícia está investigando e vai chegar a uma conclusão. Mas no primeiro tipo, como o senhor diz, a coisa está muito obscura. Por isso, eu estou com medo. E quanto ao médico, ele me parece envolvido nos dois tipos.

– Mas vamos falar sobre o seu amigo Raul.

Rosa respirou fundo. Não gostaria de falar em Raul. Como dizer-lhe que a presença de Raul a deixava feliz, que era uma pessoa muito bem integrada no curso, o único que não professava a religião católica, mas que gostava do que fazia. Estava sempre pronto a aprender novos acordes, aceitava as críticas, era um participante que ajudava ao crescimento do grupo.

– E você Rosa, eu lhe peço que seja sincera, já que pretende que eu possa ajudá-la de algum modo. Você gostava de Raul? Quero dizer, sentia alguma atração por ele, como homem?

Rosa rapidamente corou, sentindo-se pouco à vontade com a pergunta de Júlio, mas tentou responder com firmeza.

– Eu sou uma mulher madura, detetive, ele é um homem que talvez tenha os seus trinta e poucos anos.

– Mas e daí, isso interfere em alguma coisa?

– Não sei, pode ser que não, mas em se tratando dessa cidade…

– Deixemos a cidade de lado e o que o povo pensa desse tema. Responda objetivamente a minha pergunta, por favor.

– De modo algum! - Responde categórica. - Ele foi um bom amigo, apenas. Sentia uma atração por ele, não vou negar, mas não fisicamente. Era uma coisa de carência, de querer ajudá-lo, talvez até meio materna, mas nunca passou disso.

– Você disse que ele era um bom amigo, então deixou de sê-lo?

– É uma longa história. Raul andou me apresentando, sabe? Começou a fumar maconha, talvez tenha sempre usado, mas ficou meio irresponsável. Certa vez, entrou em minha casa com a minha chave, drogou o meu cachorro, a partir daquele dia, fiz tudo para que saísse do coral. Só que nesse meio tempo, segundo o que dissera, tentaram matá-lo, injetando insulina, como nos outros. Só que ele não morreu, porque tinha a doença e os criminosos não sabiam.

– Então a coisa é mais séria do que pensamos. Precisamos fazer um relatório, vou tentar pegar informações com a polícia sobre esses casos. Entretanto, estou muito preocupado com o outro caso.

– Antes detetive, me diga, não acha que estou com razão por ter medo? Se descobrirem que sou diabética, poderão me matar também!

– Mas quem faria isso? Qual seria o motivo para matar todo mundo que tem diabete, embora pelo que entendi, só morre quem não tem a doença. Então, não tem sentido tentarem matar quem está doente.

– Sei lá, talvez alguém que quisesse se vingar.

– Alguém como o Sr. Domingues que você falou? Afinal, a mulher morrera por um erro médico. Ela tinha a doença. Vai ver que ele queira se vingar do médico, fazendo morrer todos que não tenham a doença e talvez jogando a culpa nele.

– Mas isso é um absurdo.

– É um absurdo, mas os criminosos estão aí para provar que cometem absurdos.

–Talvez o senhor tenha razão, mas me diga, como pode ajudar-me, detetive?

– Esperando que você me conte tudo o que sabe, Rosa.

– Como assim? Eu já lhe contei tudo o que sei, esteja certo.

– Você conhece o ex-namorado da jovem assassinada, Taís?

Rosa estremeceu. Deu um salto para trás, como se fosse atingida por um projétil vindo da janela. Lá fora, D’tartagham ladrou com extrema fúria, que impressionou Júlio. Rosa então aproximou-se de um pequeno móvel que tinha algumas bebidas e serviu-se de um licor. Ofereceu-o ao detetive, que recusou mais uma vez. Tomou-o de um só gole e comentou, distraída:

– Não sei exatamente a quem o senhor se refere.

Júlio foi categórico:

– Refiro-me ao mecânico que trabalha na oficina dos Irmãos Silva. Pelo que me consta, você o conhece.

– Sim, devo conhecê-lo, como o senhor sabe, todos conhecem a todos nesta cidade. - Respondeu ansiosa.

– Mas pelo que um dos Silva me afirmou, você o conhece muito bem, até o tem ajudado desde que veio para cá, à procura da mãe. Se não me engano, você até alugou um apartamento em troca de alguns favores.

– Do que o senhor está falando detetive? A maneira como fala está me ofendendo. Estes miseráveis Silva nem sabem o que estão dizendo.

– Na verdade, fui irresponsável, agora. O Silva disse que o mecânico a conhecia e que você o tinha ajudado, mas não me contara tudo isso que relatei. Eu confundi as fontes.

– Qual foi o vagabundo que lhe informou isso?

– Não interessa agora, Rosa. Quero saber se é verdade, se você conhece o mecânico Paulo e se tem alguma relação com ele. O que significa este rapaz para você?

Ao ouvir a pergunta sobre Paulo, Rosa emudeceu. Ele então mudou de tática.

– Está bem Rosa, então vou tornar a perguntar sobre a filha do farmacêutico. O que você tem a me dizer sobre o crime?

Rosa o olhava intrigada. Parecia que as coisas estavam por demais confusas, para enveredar por aquele assunto. Afinal, não foi para isso que chamou o detetive. De súbito, respondeu, irritada.

– Eu acho que ninguém a matou, ela devia estar tomando um daqueles banhos que costumava e despencou rio abaixo.

– Como assim?

–Ela tomava banhos a qualquer hora do dia e da noite e nua, como veio ao mundo! Era uma leviana! Ou o senhor pensa que era uma santinha?

– Disso eu não estava informado. Ninguém comentou. Viu que não é tudo que falam na cidade?

–É, talvez só falem o que interessa para eles, para agredir alguém.

– Você a considerava uma leviana por isso?

– Só por isso, não. Ela era uma jovem muito atirada, dava em cima de qualquer homem que lhe passasse à frente. E não pense que eu é que achava isso, toda a cidade comentava!

–E quanto a Paulo?

Rosa prosseguia no mesmo tom enfático, diferente da mulher tranquila e ponderada que demonstrava ser.

–O que eu tenho a dizer, é o que todos dizem por aí. Taís era namorada dele e o traiu com aquele médico. Não tinha compostura. Era uma desequilibrada. Além disso, fumava maconha e bebia como uma viciada!

– Meu Deus, tudo isso! Mas namorou Paulo durante muito tempo?

– Uns dois anos. Ele pretendia até casar-se com ela, contra a minha vontade é claro. Mas ele gostava muito dela, estava encantado e passava a mão por cima de todos os seus defeitos. Ela fazia qualquer coisa para conseguir as drogas, até se prostituir. Era uma infeliz!

Júlio percebia que os olhos de Rosa brilhavam, como se estivesse falando com a própria vítima. Então, perguntou, oportuno.

– Rosa, quer dizer que você odiava esta moça.

– Com todas as forças de minha alma. Ela era capaz de tudo e ia acabar com a vida de Paulo.

– Você ama muito este rapaz.

Ela fez um silêncio pesado. Então, levantou-se do sofá e aproximou-se de um balcão escuro, onde pegou um maço de cigarros. Retirou um, deixou entre os dedos, mas não o acendeu. Encostou-se no balcão. Quando falou, o fez quase numa súplica, encarando fixamente o detetive.

– Dr. Júlio, eu lhe peço, esqueça esta história. Volte para a sua cidade, essa moça, pobre coitada, a gente sabe, não merecia isso. Veja bem, não vai resolver nada. Nem o senhor nem ninguém vai trazê-la de volta.

– Por que quer que eu esqueça o caso? Fui contratado por Lucas, o pai da moça.

– Lucas, aquele maldito! Por que não deixa a filha descansar em paz?

– Mas qual é o motivo de querer deixar tudo como está? Não é melhor resolver o problema?

– Não, doutor, não é melhor. - E quase chorando. - Tenho certeza de que vão acusar o Paulo, só porque ele é um pobre coitado. É a parte mais fraca. Jamais vão acusar aquele doutorzinho de merda, o senhor pode ter certeza.

Júlio a ouvia surpreso. Fez uma pequena pausa e logo argumentou:

– Você sabe que na condição de detetive, preciso saber algumas coisas, como por exemplo, qual é a sua verdadeira relação com este rapaz.

Ela largou o cigarro sobre o balcão, desistindo de fumar e voltou a sentar-se no sofá. Enxugou algumas lágrimas e tentou parecer mais calma.

–Ele não é nada meu, mas me considera como uma mãe e diz para todo mundo que sou a mãe que procura há muito tempo. Eu, apenas lhe dei guarida, um dia. Ajudei-o quando precisou e foi ficando aqui, num apartamentinho que tenho para alugar. Sabe, doutor, ele tem a cabeça fraca, não é muito inteligente. Mas para mim, todos são iguais, por isso, eu o considero muito. Não quero que sofra por causa daquela desmiolada!

– Sinto muito, Rosa, não posso ajudá-la neste sentido. Não posso fazer nada. E depois, se acharem o verdadeiro culpado, ele será isento de tudo, se for realmente inocente.

– Não, vão fazer tudo para colocá-lo na prisão, tenho certeza!

– Mas afinal, por que motivo? Quem está mais enrascado, na minha opinião, é o médico. A menos, que existam outros fatos que eu desconheça.

– Não, não há nada. Só posso dizer que ele é inocente.

– Pois se ele é inocente, não tem por que se preocupar, precisa só responder algumas perguntas, como por exemplo, onde ele estava no dia da morte da moça.

– Isso, o senhor terá que perguntar pra ele. Eu não posso lhe dizer nada.

– E ele foi fazer o que na Capital?

– Ele foi lá buscar uns documentos. Foi assaltado certa vez na capital e agora os documentos foram encontrados.

– E quanto a você?

– Quanto a mim? O que quer dizer? Eu não tenho nada a ver com esta história.

– A mesma pergunta clássica: onde estava no dia do crime?

– Eu não sei. Como vou me lembrar? Nem sei o que comi no jantar ontem! Mas o senhor devia pesquisar o tal médico, porque o carro conversível dele estava parado por lá, bem na outra margem do rio, próximo à ponte. Já soube disso?

– E como você soube? Rosa, já percebeu que de repente, passou a incriminar o médico sobre um crime que você nem estava interessada? Parece que este rapaz é odiado nesta cidade, porque é culpado de tudo.

– Não sei, ouvi falar. Todo mundo fala tudo nesta cidade, lembra? Eu não tenho nada contra o médico, nem contra ninguém. Como lhe disse, estou assustada.

– Em todo caso, é bom você tentar lembrar o que fazia naquele dia, porque você demonstrou que odiava esta moça.

– O senhor não vai querer me acusar, detetive?

– Eu não acuso ninguém, Rosa. Procuro provas, só isso.

– Bem, acho que nosso assunto se esgotou. O senhor em vez de tentar me ajudar, acabou me acusando.

– Como lhe disse, não acuso ninguém. Mas há de convir que a sua reação foi muito estranha. Defendeu este rapaz, o tal mecânico com unhas e dentes, como se eu estivesse acusando-o de alguma coisa.

– Eu já lhe disse, doutor, estou muito nervosa e Paulo é uma pessoa muito boa, não merece que o acusem. Sei que mais cedo ou mais tarde, vão fazer alguma maldade contra ele, só porque ele andou com esta moça. Mas tenho certeza de que tem muito mais gente envolvida.

– Isso nós vamos descobrir!

terça-feira, junho 28, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 9º CAPÍTULO

Capítulo 9

Júlio esperou algum tempo, após tocar a campainha do portão. O muro não era alto e podia ver a casa ao fundo, uma calçada de lajotas que perfilava um pequeno jardim e dois bancos instalados oportunamente sob uma árvore frondosa. Observou que a mulher que surgia à porta, parecia abatida e o atendia quase como uma obrigação, talvez por o ter chamado e agora não tinha como dispensá-lo. Ela apresentou-se, conduziu-o ao interior da casa , indicou-lhe uma poltrona para que sentasse, enquanto trazia um café. Ele recusou o café e insistiu que não entendera exatamente o que ela queria dizer no e-mail que lhe enviara.

—Vou lhe antecipar que sou um detetive particular, não tenho relação nenhuma com o setor policial.

— Caro detetive, eu quero a polícia longe de mim. Foi por isso que o chamei. Inclusive, por uma felicidade do destino, eu descobri que o senhor viria para cá, pois estava interessado em escrever um livro sobre a sua vida.

Júlio a olhava surpreso, imaginando como ela poderia saber de seu projeto. Ela percebendo o estranhamento do homem, decidiu esclarecer.

— Não leve a mal, é que meu filho costuma cantar no coral da igreja, sabe. Ele tem uma amiga que também trabalha no hotel. Parece que ela comentou alguma coisa.

— A senhora fala da mulher que trabalha na portaria?

— Essa mesma. Ela também é maestrina do coral e o seu nome é Rosa. Já conversou com ela, certamente. Se não me engano, ela trabalha três noites na portaria do hotel e mais duas manhãs nos dias que sobram.

— A senhora parece bem informada sobre ela.

Sara ficou em silêncio. Ajeitou-se na cadeira e retirou um pequeno folder com a ilustração do coral de uma apresentação passada. Mostrou a ele.

— Olhe, aqui ela escreveu à caneta os seus horários no hotel para facilitar o seu encontro, quando não está na igreja. Ela era professora, sabia?

— Não, dona Sara, eu não sei nada dessa senhora. Mas me diga uma coisa, como ela poderia saber sobre os meus planos, antes de eu vir para cá?

— Não sei de nada, a bem da verdade ela comentou isso com o meu filho. Provavelmente o senhor tenha dito alguma coisa, quando reservou o quarto.

Júlio então lembrou-se que comentara alguma coisa, como escrever um livro, que morava na cidade, que boca a sua, pensara. Mas agora isso não tinha qualquer relevância. Queria saber o motivo de ter sido chamado por aquela mulher.

— Não sei se deveria tê-lo chamado, Sr. Júlio, o meu filho chegará a qualquer momento. É que ele é o motivo de eu ter me comunicado consigo. Aliás, ele é motivo de minha preocupação.

— Mas então?

— Não sei se o senhor percebeu, mas estou muito nervosa. Meu filho é uma pessoa especial, um rapaz maravilhoso, mas anda meio problemático e isso já faz um bom tempo.

— Está bem, dona Sara, neste caso, a senhora me explique do início. Se o seu filho chegar, seremos o mais discretos possível. Quero que me esclareça porque pretendia que eu a ajudasse. Falou-me de serviços investigativos, mas não foi precisa no que queria.

— Está bem. Veja detetive, posso chamá-lo assim?

— A senhora já me chamou assim, quando cheguei e fiquei muito lisonjeado. Na verdade, estou meio enferrujado, mas ainda sou um detetive particular. O interessante, é que já me procuraram pela mesma razão.

— Sim?

— Mas, deixemos pra lá. Vamos ao que tem a me dizer, por favor.

— Quando eu mandei o e-mail, como lhe disse, houve este comentário que o senhor viria para cá. Eu já sabia de seus serviços como advogado e detetive. Não foi difícil fazer uma pequena pesquisa no google.

— Por isso me procurou. Mas qual é o motivo?

— Como lhe disse, eu estava muito preocupada com meu filho. Ele tinha uma namorada chamada Susi, com quem viveu por mais de dois anos, bem esta moça o abandonou e ele ficou muito depressivo, fazendo umas bobagens, inventando coisas meio absurdas.

— Não entendi como poderia ajudá-lo. A menos que estas bobagens a que a senhora se refere sejam atos ilícitos, contra a lei.

— Não, nada disso. Meu filho é um excelente rapaz. Eu me refiro ao fato de ele contar histórias que não condizem com a realidade. Ele falou que tentaram matá-lo.

— E como aconteceu isso?

— Bem, é uma história meio fantasiosa. Mas eu lhe explico em detalhes mais tarde. O problema, que junto a tudo isso, estão ocorrendo fatos extraordinários na cidade. Houve alguns assassinatos, não sei se o senhor soube.

— Sim, em sua maioria arquivados, com exceção do último, da filha do farmacêutico que dizem foi assassinada. Não há uma certeza absoluta.

— Eu soube do caso da filha do Seu Jairo, sim. Foi terrível.

— Mas a senhora me mandou o e-mail antes. Tem a ver com os crimes?

— Meu filho tem algumas suspeitas, mas eu não concordo com ele.

— Acho que preciso conversar com o seu filho.

Sara calou-se, ainda mais ansiosa. A respiração sôfrega, um ar de arrependimento pelo que dissera. Por fim, concluiu:

— Eu mandei o e-mail porque estou assustada sim, com o que está acontecendo. Mas é que tenho uma pessoa suspeita.

— A senhora se refere ao médico?

— O doutor Ricardo? Imagine, ele é um homem decente. Um ótimo médico. Quando chegou na cidade, eu até gostaria que morasse aqui, até arranjar um lugar para ficar, mas ele foi resistente. Acabou ficando no hotel mesmo. Acho que fizeram um acerto com ele, como um aluguel, entende? O coitado não achou nenhum apartamento que servisse até agora.

— Ouvi comentários de que o acusam do assassinato da moça.

— Esta gente fala o que não sabe. Todos aqui falam de todo mundo. São um bando de bisbilhoteiros, uma gente que não tem o que fazer! Só porque ele namorou a moça, inventaram esta história. Aliás, nem sei se ele teve algum envolvimento com ela, na verdade.

— Parece que a senhora está bem inteirada dos assuntos.

— Aqui, a gente fica sabendo de tudo, meu amigo.

— Me diga então, de quem a senhora suspeita?

— Eu deveria falar com a polícia, mas não tenho provas, é só uma intuição. De todo modo, o que vou lhe pedir que este assunto tem que ficar entre nós, não quero me envolver com esta gente! Tenho medo que alguma coisa me aconteça, entende?

— Sem dúvidas. Sigilo total.

— E depois, eu tentei falar com o senhor, principalmente, porque meu filho está neste coral há algum tempo, e sempre foi humilhado por esta mulher. Eu juntei as coisas e fiquei me perguntando se ela não teria alguma ligação com os crimes, não digo todos, mas os que se referem aos turistas… e agora, pensando bem, até mesmo em relação à jovem que morreu.

— De quem a senhora está falando?

— Da mulher sobre a qual conversamos ainda há pouco: de Rosa, a maestrina. A mesma mulher que trabalha no hotel onde o senhor está hospedado. A mesma que comentou sobre a sua vinda para cá. É sobre ela que me refiro. A mulher que tem interesse no meu filho.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/inspetor-homem-detetive-masculino-160143/

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