No 1º capítulo de nosso folhetim dramático, conhecemos um pouco a personalidade de Santa, a matriarca da família, uma mulher extremamente religiosa, católica tradicional, que preparava-se para a sua festa de 60 anos na Igreja que conhecia desde criança. Enquanto se encaminha para a missa em sua homenagem, lembra de sua primeira comunhão, das impertinências do irmão, dos cuidados da mãe, da indiferença do pai em alguns momentos, enfim, de sua vida infantil naquele ambiente religioso. Agora, chegando ao momento de entrar na igreja, sentia uma dificuldade, um certo aperto no coração e por isso, fazia-se perguntas inquietantes. Veja a seguir, como hoje é terça-feira e o nosso folhetim é publicado aos sábados e nas terças, o 2º capítulo de nossa eletrizante história. Aqui, aparecerá a família de Santa e suas condutas bem diferentes de suas expectativas. Espero que gostem. Abraços.
CAPÍTULO 2
Quem a conduzia até ali? A sua vaidade? Não, uma mulher temente a Deus, uma dama dos círculos mais nobres da sociedade, uma mulher respeitada por ser o que realmente era. Não podia ceder agora. Não era o momento.
O marido se aproximou, intrigado. Segurou-a novamente pelo braço. Abriu aquele sorriso matreiro, que em algumas vezes a fizera pecar e a convenceu de vez.
— Vamos, vamos sim. Estou nervosa.
— Não é pra menos – antecipou satisfeito.
Os fotógrafos aproveitaram a pausa para mais flashes, quanto mais instantâneos, melhor.
Uma das ajudantes da coleta do ofertório, correu ao seu encontro para informar que logo tocariam a música de entrada, para ela se preparar.
Santa sorriu, obedeceu e deu passos serenos e firmes, ao lado do marido, na direção da porta da igreja.
As luzes se acenderam. Eram focos brilhantes de todos os lados, obedecendo a rigorosa decoração.
Santa pensou que fosse chorar, mas se conteve nas fisionomia dos seus, que se apresentavam nos bancos, um a um, aos quais ultrapassava, no andar cadenciado.
Estavam quase todos juntos, com exceção do filho mais novo, um pouco afastado; um artista multimídia, que observava todo o cenário, talvez engendrando uma futura apresentação de seu trabalho. Era magro, cabelo liso, caído na testa, de um dourado falso, que ocultava vez que outra o olho direito. Vestia-se casual e não parecia muito preocupado com detalhes de pompa.
No banco mais a frente, estava a filha de olhos vermelhos, uma lágrima insistente correndo pela bochecha e embargando a voz, quando se dirigia ao irmão mais velho, que parecia não entender nada do que dizia.
Era alta, elegante, vestida de preto, com uma rosa também preta no decote. Poucos brilhos, poucas joias, mas o suficiente para bordar uma figura deslumbrante.
O marido, em seu lado esquerdo, observava a cena silencioso, cumprindo talvez um compromisso inevitável. Estava vestido de acordo com a ocasião e suava aos borbotões. O cabelo puxado para trás, mostrando entradas proeminentes, um olhar obtuso à deriva e a boca de lábios finos, que ora resmungava o desconforto que sentia. A mulher, pouco o notava.
Santa logo percebeu que os amigos se aglomeravam um pouco atrás dos parentes.
As mulheres bem vestidas em generosos decotes, os homens formatados em ternos comportados. Um que outro se salientava pelo penteado mais ousado ou mesmo por cochichos e sorrisos fora de hora.
Santa por um momento, teve a impressão de ver a mãe, logo seguida pela babá, esgueirando-se pelos bancos e pedindo silêncio com aquele sorriso doce de publicidade. Via-a se enfileirando no corredor, ultrapassando as crianças que se perfilavam e lhes falava com agradável sonoridade. Um sorriso aqui, um muxoxo ali e ela liderava a situação, sempre seguida pela babá, que apalermada no burburinho, às vezes se perdia dela.
Mas foi só por um momento, em seguida se concentrou no altar.
Avistava de longe, o bispo se adiantar, e tinha a impressão que seus olhos estavam vermelhos.
Quem sabe ele também sonhara com aquele momento? Quem sabe ele imaginara a sua igreja cheia de pessoas ilustres, acomodando-se entre os bancos devidamente ornamentados, entre velas que se acendiam à trajetória de Santa e flores que pareciam se abrir, à sua passagem.
Talvez tudo fosse um sonho. Também para ele.
Mas, por certo, ele poderia ver no primeiro banco, um pouco, à esquerda, o prefeito e a mulher, assim, enlaçados, esbanjando afetuosidade e ótimo relacionamento, também um que outro vereador, tanto da situação quanto da oposição e até alguns candidatos, que não dispensavam a oportunidade de aparecerem.
Como não exultar com a igreja tão cheia de celebridades, de notáveis que abrilhantavam o evento!
Agora, ela e o marido estavam cada vez mais próximos da chegada.
Piscou para o filho artista, que estava à esquerda dos demais e ele a olhou intrigado, quem sabe se perguntando que papel fazia a sua mãe, naquele momento. Não sorriu, mas acenou lentamente, levantando uma mão absorta, no ar, que se abandonava em seguida, no colo, embora a mãe já disparasse o olhar para outra direção.
Ela agora dedicava-se ao trio: os dois irmãos e o genro. O filho, sisudo, mas que por ora abria-se num sorriso para a mãe. Ajeitava, sôfrego, a gravata, acondicionando-a de modo a ficar reta, o que parecia fora de seu alcance. Também estava ansioso.
A filha se apoiava no marido, os olhos marejados, quase se transformavam em soluço. Sorriu para a mãe, para não assustá-la. Também porque deveria conter-se: era uma promotora estadual, uma mulher afeita à singularidade da discrição, do cuidado, da sutileza. Devia evitar a emoção.
O genro limitou-se a acenar, prudente.
A música parou e Santa, ao lado do marido, se posicionou no primeiro banco, no local especialmente dedicado a eles, que ficava bem ao centro e próximo ao altar.
Respirou fundo e ouviu as primeiras palavras do bispo, as quais se referiam a ela, antes de iniciar a missa.
No sermão, mais uma vez o seu nome foi lembrado, desta vez, para discorrer toda a sua trajetória de mãe, esposa fiel e digna representante da sociedade, além de benfeitora e participante entusiasmada da comunidade.
De repente, o bispo desceu do púlpito e se aproximou do casal.
Todos os olhares imediatamente se voltaram para os dois. Ele solicitou que o coroinha lhe trouxesse uma pequena caixa.
Pegou-a com cuidado, enquanto o menino se afastava rapidamente para o seu lugar.
Santa aguardava a surpresa, com verdadeira expectativa.
O bispo então, abriu a caixa e retirou uma pequena joia, uma espécie de bússola estilizada, constituída de prata, ouro branco e alguns brilhantes incrustados. A pergunta que emendou à Santa tinha a finalidade maior que a plateia participasse, tal o esforço verbal que produziu, sem utilizar o microfone.
– Então, nossa benemérita amiga, sabe o que é esta pequena joia?
Santa engoliu em seco. Os olhos brilharam profundos, em lágrimas que se espalharam rápidas pela face. Utilizou um lenço que o marido com presteza lhe entregou, e tal como ela, sua expressão era de extrema perplexidade.
Antes mesmo que Santa respondesse, o marido resmungou, apalermado: – Minha avó se revirou no túmulo.
Santa o olhou espantada. O bispo fingiu não ouvir e repetiu a pergunta.
Ela então, respondeu, indecisa.
– Na verdade, não sei bem.
O bispo prosseguiu, entusiasmado: – Mas a comunidade se lembra muito bem, minha amiga. Esta joia foi o simbolo de sua apresentação à igreja.
Ela gostaria de perguntar – como assim ? – se não lembrava do que se tratava. Entretanto, se conteve, quieta.
Evitou qualquer gesto, a não ser o de enxugar as lágrimas.
Tinha consigo que tal objeto devia fazer parte de sua infância, que suscitava lembranças da mãe, da sua família, mas não conseguia identificar a razão de estar nas mãos do bispo.
Também havia aquela observação infeliz do marido. O que ele queria dizer com aquilo?
— Pois bem, sua mãe doou esta pequena relíquia para a igreja. Isso aconteceu no seu batizado, mas quis a Providência, que um padre de nossa comunidade, um velho e diligente capuchinho, guardasse-a com cuidado e ela permaneceu conosco até os dias de hoje. Ele se foi, a joia ficou e a história transcorreu. Este pequeno relicário, tenha a certeza, é o símbolo da sua fé. Por isso, tivemos a feliz e providencial ideia de devolvê-la à senhora, Dona Santa. Acho que esta bússola que indicou o seu caminho para a igreja, que transformou a sua trajetória numa vida santificada, esta bússola, hoje lhe pertence.
– Mas eu não posso aceitá-la.
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– Aceite-a sim, porque é sua e de hoje em diante, norteará o restante de sua vida. É um objeto abençoado que só lhe transmitirá paz. Além disso, a senhora é a única pessoa indicada para ter uma bússola em sua vida. Quem sabe, não norteará mais pessoas para que se engajem no caminho do bem? Contamos com a senhora, Dona Santa.
– Santa teve a impressão que a voz do bispo se tornava um pouco rouca e uma emoção mais forte o atingia.
Então, fitou o marido, solicitando a sua intervenção.
Ele estremeceu levemente as pernas, denunciando a total incapacidade de decisão. Fitou-a, meio intrigado e abriu bem os olhos sob as sobrancelhas cerradas. Por um momento, parecia envolvido em terríveis pesadelos, mas subitamente, como se tomado por uma entidade salvadora, abriu-se num sorriso condescendente. https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/
Ela aceitou a joia.
Foi assim que Santa participou do momento mais doce de sua existência.
Mas a incongruência de seus pensamentos não demoraram a deixá-la ansiosa.
Uma joia tão importante para a igreja e que possuía um significado para a sua vida, deveria representar uma grande responsabilidade.
Suas mãos, por um momento, começaram a suar e seu coração tomou-se de pequenos saltos, agitando o sangue que corria nas veias.
Que mensagem seria aquela para a sua vida? Que caminhos deveria tomar de agora em diante? E o que o marido pretendia com aquele devaneio? Um mistério que somente o futuro resolveria.
Fonte da ilustração: Josué Miguel Escudero. in site: https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/
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