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sábado, janeiro 21, 2017

Um passeio no Gordini, com meu pai

Fui apresentado ao Gordini de forma inesperada. Tinha uns oito anos, quando um amigo de meu pai deu-nos carona. Nos acomodamos no carro branco, com os bancos de cor bege, e imediatamente começaram a comentar sobre o tamanho do carro, acostumados com veículos avantajados da época, com espaços generosos entre os bancos e porta-malas gigantescos.

O Gordini, antigo Dauphini não era nada disso. Era pequeno, com espaços milimetricamente medidos para ajustar nossos corpos e alguns pertences. Era o que me parecia, ao observar meu pai e o amigo, quase encostarem a cabeça no teto. Nem sei se era impressão minha, ou sugestão pela conversa.

Mas, também, pra mim, isso não era muito importante. O fato de estar ali, com eles, com meu pai dando os seus palpites sobre carros e motos e fazendo perguntas amistosas sobre o automóvel, já mobilizava toda minha atenção, ao ponto de imaginar, um dia comprar um carro como aquele.

Eles conversavam animados. O dono, que a recém havia comprado, enaltecia as qualidades do veículo, informando que a velocidade poderia chegar a 115 km/h, o que me parecia um fato extraordinário. O único carro que podia ultrapassar esta velocidade, era o do Batman, mas até ai, as coisas eram outras.

Meu pai perguntou sobre o consumo, ao que o amigo respondeu, satisfeito, que chegava a 13km/l. Parecia feliz e elogiava o pequeno carro branco, durante todo o percurso. Eu percebia aquele cheiro de carro novo, há pouco comprado e lembrava de alguns livros, que tinham aquele cheiro peculiar da tinta ou do tipo de papel utilizado.

Nossa pequena viagem prosseguia, porque o amigo de meu pai resolvera mostrar a velocidade que o carro atingia, naturalmente não a máxima, mas a que seria adequada numa estrada. Meu pai concordou que o veículo era muito confortável, e por certo desempenharia uma velocidade segura.

Eu torcia para que o homem corresse, empolgado com a oportunidade de me embrenhar nas dunas do Cassino. Imaginava que ele iria até lá, afinal um lugar adequado para tal feito.

Seguíamos então pela Avenida Buarque de Macedo e dobramos na esquina do cemitério, pegando em seguida o que chamávamos de linha do parque, em direção ao Cassino, indo até o antigo V (atualmente o viaduto do trevo).

Foi ai que o amigo de meu pai decidiu mostrar a potência do automóvel. Aos poucos, atingiu, já na estrada, uma velocidade de 50km por hora e por momentos chegando a 60. Meu pai ficou impressionado pelo pouco tempo dispendido em alcançar tal velocidade.

Uma poeira levantava as rodas traseiras nublando o vidro, deixando pra trás um pequeno redemoinho, que esmaecia rapidamente nas valetas secas da primavera. O motor emitia um ronco consistente que sustentava a marcha constante. Eu percebia, desenhado no retrovisor um meio sorriso do amigo de meu pai, orgulhoso com a aquisição.

Enquanto falavam, ele estacionou o veículo numa pequena entrada de um sítio, desceram e o homem imediatamente, me perguntou: – e aí, guri, que tu achou do carro?

“Gostei”, foi o que respondi. Talvez elaborasse uma redação sobre o tema, se tivesse tempo, mas falar ali, não tinha muito o que improvisar. Passou a mão pela minha cabeça e deu uma risada. Meu pai, segurou-me pelo braço e me conduziu para o carro, porque dali, voltaríamos para a cidade.

Meu sonho de dunas havia acabado. Mas valeu à pena. Valeu à pena a estreia no Gordini, a conversa dos dois e a maneira solidária de meu pai, ao me olhar. Sabia que estava ali, ao meu lado e queria me dizer muitas coisas. Era o seu jeito. Sempre me olhava com carinho, que expressava muito mais do que falava.

Mais tarde, soube que o Gordini foi um dos primeiros carros populares do Brasil, da Renaut, mas fabricado pela Willys. Antes de se tornar o Gordini, ele era o Dauphine, que não se deu muito bem entre nós e inclusive, apelidado de Leite Glória, pois desmanchava sem bater. Isso acontecia porque as estradas eram muito ruins e suspensão constituída por bolsas de ar que se endureciam com a carga, foi projetada para estradas europeias.

Rebatizaram então, o Dauphine, como Gordini, que teve alguns ajustes, como o câmbio que passou a ter quatro marchas para a frente e o motor que elevou a potência para 40cv e mais tarde, em 1964, para a potência de 55cv, apresentando ainda dois carburadores e taxa de compressão maior.

Segundo a Willys-Overland era mais luxuoso, com melhor acabamento interior, frisos e trincos metálicos elegantes; mais confortável devido possuir quatro portas, grande porta-malas, forração de carpete e espaço interno bem aproveitado e mais estável, seguro, suspensão reforçada, firme nas curvas e em qualquer terreno.

A partir daqueles momentos tão agradáveis com meu pai e seu amigo, passei a sonhar com o Gordini, um carro que me parecia ideal. Imaginava que ao crescer, compraria um Gordini, tal qual o do amigo de meu pai. Talvez, não branco, como o dele, mas de uma cor mais forte e intensa, quem sabe um amarelo? Pensava que meu pai tinha a mesma intenção, mas o que ele fizera a seguir, fora comprar uma tv Philips de 28 polegadas, acho que para assistir as propagandas do Gordini.

De qualquer modo, não concretizei este sonho. O Gordini terminou em 68 e em minha juventude, o sucesso da época era o Chevette e o fusca, claro, em se falando dos carros médios e pequenos.

O que ficou de verdade, foi a lembrança de mais um momento passado ao lado de meu pai, que por certo, tinha os seus sonhos, e de algum modo compartilhava comigo.

terça-feira, dezembro 20, 2016

O peso da liberdade

O peso da liberdade Sentia as madrugadas se espraiarem e a sensação de que a vida se alongava, ali, naqueles momentos fugazes. Nada havia para impor: a natureza se completava. A vida estava além das paredes de seu quarto. Estirava-se nas sombras encardidas dos muros mal pintados, nas sacadas fragmentadas, nas quais figuras se expunham assim, descomedidas e sem pudor.Transformavam-se em manchas de água, nas calçadas limpas, sereno incrustado da umidade gélida produzida. Era assim. A natureza se esbaldava em fervor, em criação e criatura, em inventar a vida. Para ele, as madrugadas não passavam de um espiar solitário pelas persianas. Um olhar entrecortado em tiras. Um olhar apenas. Nada que impusesse uma vontade forte, que se derramasse em seu corpo e atingisse a alma. Que nada. Bastavam os sons difusos da noite insípida em que se resumiam suas horas. Uma coisa insossa. Uma coisa sua, mas que não compartilhava com ninguém. Melhor assim. Melhor deixar-se vesgo e perturbado ante o desconhecido que só vislumbrava às apalpadelas na vidraça. Na persiana. No frio da janela. Um olhar qualquer. Nada definitivo. Nada planejado. Nada. Pudesse seguir os instintos e atravessar as paredes, afundar-se na lama que jaz ao lado da janela. Chafurdar e encher-se de gozo. Para ele, porém, a vida era comedida. Não podia ultrapassar os limites. Não devia se arriscar. Pensar apenas. Imaginar. Quase sonhar. Um homem às vezes sonha de vesgueio, com cuidado para não destruir o mínimo de sonho. Um sonho frágil, pouco acalentado, logo acordado para a realidade. Mas um sonho. Na verdade, quisera ousar o sonho dos outros, daqueles além de seus limites, do outro lado de sua janela. Quisera sentir o orvalho mais perto, tão perto que encheria o nariz e os pulmões. A lua lambendo a pele, deixando-a quase translúcida. E um bem-estar de quem atinge a plenitude. Talvez um dia, transpusesse a sua janela e espiasse de perto o que acontecia, ali, ao lado e participasse também. Nem que fosse num salto, num segundo, mesmo que se arrependesse, que retrocedesse, que fugisse. Mas talvez cultivasse uma fresta na mente, que vez por outra se enchesse de luz, produzindo um caminho para viver em paz. Quando saiu de casa, sentiu o bafejo da brisa noturna. Mais do que brisa. Era um frio miúdo, que por vezes, arrepiava a testa e os cabelos. Olhou assustado para o nada. Escuridão total. Nem sabe exatamente o motivo do medo. Teria motivo? Talvez o de ainda estar vivo. As coisas se acomodavam, os dias se sucediam, as noites se alternavam em luzes acesas e latidos ao longe. Estava sempre só. Desanimado. Não era pra tanto, pensava. Devia sentir-se feliz, por alguns minutos. Devia sentir a alma elevada, o coração acalmado. Sua vida era como a de todos. Por que se sentia atribulado por picuinhas do espírito? Por que não desviar o desconforto e partir para a própria misericórdia? Isso, ter dó de si, é o que precisava. Mas não aquela piedade medíocre, aquele ar de pobre coitado. Ao contrário, uma piedade doída, verdadeira, do fundo da alma, que o alimentasse, que alicerçasse os pensamentos e a coragem. Quem sabe tendo dó de si, virava-se de frente para o mundo. E percebesse que ao descer as escadas do prédio, o porteiro tinha um modo aflitivo de o olhar, como se o alertasse para o perigo. Talvez porque pouco o visse sair, principalmente à noite. Que interessava ele, agora? Não passava de um velho amordaçado nas ondas do rádio. Sempre à espreita de uma tragédia. De certa forma, agora, sentia-se livre, pois pelo menos, ultrapassara a soleira da porta. Estava atravessando ruas, pisando nos paralelepípedos, enfrentando esquinas. Podia caminhar, sentir o sereno esfriar a testa, o cabelo molhar e avistar ao longe, figuras disformes que passeavam rápidas pelas calçadas circundantes. Na verdade, sentia a boca ressequida. Alguma coisa que o impede de absorver a liberdade em sua plenitude. Mas quem consegue? Quem realmente é livre? Melhor voltar até a garagem, pegar o carro, sentir-se mais protegido, encontrar um lugar para passar a noite. Talvez beber alguma coisa forte, que lhe queime a garganta e acione o cérebro. Então retirou o carro do estacionamento e dirigiu-se às ruas próximas. Não fazia muito que saíra de casa, mas tempo suficiente, para sentir-se angustiado. O tempo era o resultado de suas memórias. E elas permaneciam e se renovavam a cada calçada que atravessava, cada canteiro que avistava, cada praça que circundava. Lembranças da infância, da adolescência, de tempos marcantes. Tempos em que talvez não fosse tão solitário. Estacionou o carro sob a luz amarela do poste. A avenida ampla vislumbrava algum movimento de pedestres. Namorados que se deslocavam em direção aos cinemas ou a bares. Grupos de rapazes que se dirigiam para casa ou talvez para a universidade. Poucos velhos apressados, segurando as bolsas, entrando e saindo de farmácias, ansiosos em voltar para casa. Observava as pessoas, à sombra das árvores que deitavam os ramos sobre os veículos estacionados em oblíquo. Ouviu uma daquelas músicas antigas que o transportavam ao passado, "Perfídia" executada por Glenn Miller .“For I found you, the love of my life, in somebody else's arms”. Nada mais oportuno do que estes versos cheios de melancolia. Deixou-se ficar assim, introspectivo, absorvido pela linguagem lírica da melodia. Nada o atrapalhava, nada o transportava a lugar nenhum, ou o afastava daquele, no qual seu coração o pusera. Mas às vezes, o imponderável acontece. Nada é uma expressão muito forte, tanto que uma batida no vidro o despertou do sonho. Olhou transtornado para a imagem que se derramava no vidro como uma estampa disforme e não disse nada. Por um momento pensou que... não pensou em nada. Tentou voltar ao enlevo, ao passado, à melodia. Mas a voz ecoou enérgica e definitiva, como uma lâmina na carne. Um revólver calibre 38 raspando a vidraça e a voz ameaçadora exigindo que abrisse o carro. Ele obedeceu trêmulo. O mundo desabava em segundos. Ele vislumbrava uma mulher passeando com um cachorro na direção da praça e perdendo-se na escuridão salpicada de luzes indefinidas. Só neste momento percebera que três homens entraram no carro e o empurravam rapidamente para o banco detrás, enquanto um deles acionava a direção. Em segundos, o carro se afastava em disparada. Sua boca babava no assento do banco com uma arma apontada para a cabeça. Gritos, ordens, ameaças. Em poucos minutos, paravam numa rua escura, uma espécie de encruzilhada onde havia linhas de trens. Retiraram-no do carro, abriram o porta-malas e o enfiaram lá dentro, revelando a intenção definitiva de cumprirem o seu objetivo. O carro partia novamente. Ele sentia um calor constante no corpo, talvez do cano de descarga que ficava ali por baixo, não sabia, tudo se alternando entre tremor e pânico. Uma vontade de urinar que não conseguia adiar. O mijo humilhante alagou até seu pescoço, cujo corpo se dobrara numa postura fetal, a única que lhe cabia. O carro voou por estradas se afastando da zona urbana. Sua cabeça doía, sentindo o peso da lataria nas costas. As batidas cada vez mais fortes, produzidas por retornos mirabolantes, aliados à precariedade das estradas, além do alta velocidade desenvolvida. De repente, o carro parou. Os homens cochichavam. Portões com engrenagens enferrujadas se abriam e pacotes se amontoavam dentro do veículo. Os homens se espremiam nos bancos, como se outros entrassem e participassem da operação. Um deles se aproximou e abriu levemente o porta-malas: um vento frio encheu-lhe as narinas. Respirou fundo. A falta de ar passara. Resmungou entre dentes: – Por favor, deixa aberto... quase não respiro. – Cala a boca, não fala comigo. Só eu falo. Que tu tem ai pra botá gasolina? Essa porra tá vazia! Arrancou-lhe do pulso, o relógio, perguntando se a “bosta” tinha algum valor, ao mesmo tempo que avistara a corrente no pescoço, puxando-a com violência, já que o celular já era moeda de troca desde o início. Em seguida, lacrara a tampa do porta-malas, gritando palavras de ordem. – Cala a boca, tu vai morrê se não fechá essa trela! Tu vai morrê queimado, seu puto! Os demais resmungavam em tom cada vez mais baixo, quase um zunido. Alguém se encarregou de trazer a gasolina. Encheram o tanque. Dentro do porta-malas, ele tinha a impressão de que o líquido escorria pelo seu corpo. Ouvia comentários sobre incêndio do veículo. O desespero, aos poucos, dava lugar a uma intensa resignação. Tentou rezar, mas não conseguia. Não recordava as palavras, nem das pessoas. Quem se lembraria dele? Quem sentiria a sua falta? Quem investigaria para descobrir que morrera assim, transformado num monte de cinzas? O carro se afastava, antes, porém ele ouvia estampidos ao longe. Será que alguém fora assassinado? Talvez um vigia aparecesse e exercesse alguma reação? Eles apagaram um comparsa? O que queriam com ele, por que não o deixaram morrer? O carro disparava numa velocidade alucinante. A escuridão total denunciava a zona rural. De repente, luzes passavam aqui e ali, pelas frestas do porta-malas, como se atravessassem uma ponte. E se eles decidissem se livrarem do carro e o jogassem no rio? Não interessava. Estava morto. Sabia que seu destino estava selado. Era só questão de tempo. Agora, o carro parara novamente e o ruído abafado do motor se misturava a coaxos de sapos, o que significava que ainda estavam na zona rural. De imediato, decidiram livrar-se dos pacotes pesados ou caixas de dentro do veículo. Os homens se comunicavam em ruídos e somente um se aproximava dele. Percebera tratar-se de uma estratégia, para que não os reconhecesse. Mas de que adiantaria isso? Bastava apagá-lo de vez! Não teriam mais problemas. Ele não significava nada para eles. Há muito não tinha qualquer importância para ninguém. Aquele que costumava falar com ele, avisou, ameaçador: – O carro vai parar mais duas vezes, tu vai descer na segunda. A tampa vai tá aberta. Conta até 50, entra no carro e segue em frente. Não olha pra trás. Nós tamos de olho. Um deslize e tu vai sê apagado! Foram as últimas palavras, a ansiedade aumentou, um zunido nos ouvidos, um corte na testa que sangrava, a impossibilidade de articular as palavras, de mexer as pernas, de se sentir apto para sair do carro. Como faria isso? Nem pensava, nem engendrava qualquer imagem, porque sua mente não funcionava de modo racional. Seu coração batia exaltado. As costas contraídas, o corpo todo latejava, num misto de dormência e dor. Quando o carro parou numa rua escura, tentou ingenuamente contar, mas não conseguia articular na mente, os numerais. Não tinha o manejo adequado ao raciocínio. Um vento fino assombrava a fresta do porta-malas. Falou coisas desconexas, riu como se houvesse bebido ou usado uma droga forte, forçou as pernas para se levantar e pular para fora. Os ossos pareciam chocar-se desarticulados, deslocando-se pelo corpo, envolvendo as pernas, os braços e o pescoço. Então tropeçou na grama molhada de sereno e nem entendeu o peso da liberdade. Entrou no carro, seguiu em frente e nem sabe para onde foi.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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