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quarta-feira, novembro 09, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 18

Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.

Capítulo 18

As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.

Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.

Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.

Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.

As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.

Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.

Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.

Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.

Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.

Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.

Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.

Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.

Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.

Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.

Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.

De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.

Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?

O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.

Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.

Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.

Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.

Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.

Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.

Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.

Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.

Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.

Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.

Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.

— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?

— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.

— Do que é que você tem medo?

Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.

— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.

— Mas então, o que você quer de mim?

Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:

— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.

— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.

Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:

— Estou com o carro aí na frente.

Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.

Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.

Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.

Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.

Alfredo o espera, sorrindo.

sábado, setembro 17, 2016

CANDIDATO INFLAMADO

Bateram à porta com insistência. Instintivamente, me afastei, sondando outras possibilidades, que não fosse àquela, aterradora, de me deparar com o desconhecido, de me defrontar com a expectativa do outro, que via de regra não é a minha.

Uma visita inesperada, fora de hora, sem qualquer aviso; o pedido de dinheiro por um ser humano alterado na própria concepção de humanidade, onde olhos vermelhos se fundem em olheiras doídas, demonstrando mais humildade do que possui, obedecendo ao ritual produzido pelos desejos involuntários do vício, via de regra, aliado ao ato de roubar.

Talvez um pedido de comida, este sempre melhor aceito, embora menos frequente, quase sempre acompanhado da possibilidade de arrecadação extra, financeira. Ou a venda indecente de revistas religiosas e todo o vocabulário próprio, cujas expressões gastas e repletas de castigos já não atingem a alma de quem apenas aspira seguir a própria fé, ou não. Quando muito, atingem a consideração ao zelo dos vendedores, quando não extrapolam o bom senso e a paciência do comprador.

Uma outra investida em nossa porta, pode ser a entrega da revista ou do jornal, estes com auspiciosos desejos de desvendar o mundo, ou o que dizem dele, desde que não se aceite na sua integridade os conceitos e mensagens subliminares ou pelo menos, se escolha o veículo menos parcial da mídia.

Hoje em dia, a mídia tradicional já nem tem mensagens subliminares, ela entrega de vez a informação manipuladora da ideologia elitista.

Também ocorre a entrega de encartes, publicidade de lojas, de supermercados, de revendedoras de gás e água ou mesmo a visita do carteiro, com a mercadoria esperada e as contas inevitáveis de todo o mês ou avisos de débitos.

Além de todas estas injunções cruéis em nossa vida cotidiana, atualmente há a distribuição sistemática de panfletos.

Panfletos? Sim, panfletos políticos, santinhos, com a figura impudente e maquiada do candidato, via de regra, aquele cujas promessas nunca são avaliadas, quanto mais comprovada a sua eficiência.

São eles que nos chegam a todo o momento, abarrotando a nossa caixa de correspondência, quando não a virtual. Esta, elimina-se rapidamente, mas aquela, material, física e acompanhada da presença humana, é bem mais complicada de eliminar.

Não basta rasgar o papel, consumi-lo no fogo ou arremessá-lo na lata de lixo. É preciso desvendar a porta, abrir a caixa do correio e averiguar entre centenas de papéis inúteis, a maior das inutilidades que é o tal de santinho.

Estão sujando as ruas, conspurcando as calçadas, distribuindo papeis que logo serão atirados em qualquer canto por transeuntes enfarados, entediados e descuidados dos anseios políticos dos futuros candidatos.

Isso, que nem falei nos carros de som e as músicas infames que misturam o nome do candidato a ritimos populares.

Naturalmente, temos os nossos preferidos e é salutar que isto ocorra. Comungam com nossas ideias, ideologias ou conhecimentos da situação política da cidade, do estado e do país. E se não temos, merecemos por certo esta enxurrada de papéis disformes, com caras engessadas em sorrisos falsos e expectativas forçadas.

Mas, tudo o que foi relatado não configura o pior que pode acontecer à tranquilidade de um vivente.

O extremo da crueldade e falta de sorte, acontece quando o candidato se apresenta em nossa porta, via de regra acompanhado de um partidário servil, que acena a cabeça mil vezes concordando com o amigo.

Nestas alturas, o candidato apresenta a pretensa finalidade de resgatar um conhecimento efêmero, (quem sabe um colega do ginásio ou um amigo do irmão do mecânico que certa vez consertou o carro de nossa tia já falecida...), mas que para ele possui a eternidade do universo (pelo menos, agora).

Como refutar suas convicções, ouvir suas promessas, sem transparecer a cara de paisagem.

Afinal, para ele, não interessa a minha opinião contrária ao seu partido que apóia a política entreguista e traiçoeira. Para estes, não há saída melhor.

Não convém argumentar, nem demonstrar qualquer tendência à esquerda. Misturam tudo, como se churrasco levasse pimenta e molho inglês. Fazemos cara de paisagem agora e não votamos ou eles serão a própria paisagem sem vida, mural ruço e mofado, numa câmara cheia de traças e teias de aranha, nos próximos quatro anos.

Que abramos as portas para novos ares, mais adequados a nossas esperanças.

sexta-feira, junho 24, 2016

A avalanche de sons

Hugo acordou com um certo zunido nos ouvidos. Na verdade, nem sabia se o ruído vinha de fora ou era um som interno, que não conseguia identificar.

Aos poucos, diferentes sons eram ouvidos e tinha a impressão que várias pessoas falavam ao mesmo tempo, bem perto de si, além de outros barulhos.

As paredes estalavam, os cabos de luz produziam pequenas alternâncias de ruídos, como movendo-se levemente e até mesmo os plugues das tomadas emitiam sonoridades estranhas. Parece até que borboletas batiam asas próximas ao seu rosto e um cri-cri de grilos se alternava com zumbidos de mosquitos.

Estaria sonhando, pensou.

Levantou-se rápido e foi até a janela. Viu pequenos agrupamentos de pessoas na calçada e um burburinho intenso, como se estivessem à espera de algum acontecimento grandioso. Puxou os óculos da ponta do nariz e tentou enxergar no outro lado da rua.

As sacadas do prédio da frente estavam repletas de homens, mulheres e crianças, todos envolvidos numa balbúrdia animada. Até balões coloridos as crianças soltavam e por vezes, estouravam aumentando ainda mais o tumulto.

Hugo decidiu afastar-se da janela e tomar um banho. Faria as atividades habituais, como sempre.

Logo em seguida, iria ao Café Belém para o desjejum e jogar conversa fora com os amigos.

Não demorou muito, estava na rua, dirigindo-se ao Café, ouvindo cada vez mais forte o ruído que aumentava a cada pequena aglomeração que se formava na calçada.

Quem os visse de cima, observaria uma massa escura e uniforme que fazia e se desfazia em blocos, dividindo-se em alaridos desorganizados. Por sorte, a turba agitada e frenética vinha de outra esquina e ainda não tinha chegado às proximidades do Café com toda a sua extensão.

Finalmente, entrou no Café, no qual percebia poucas mesas vazias, na verdade, apenas duas, uma bem perto da tv gigante que ficava sempre ligada na Globo, o que o irritava profundamente e outra próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu, mas de modo estranho, pois não ouviu som algum. Parece que todos estavam calados e se falavam, era como um filme mudo.

No bar havia silêncio absoluto. Por um lado, Hugo deu graças a Deus, afinal, era tanto ruído, tanta loucura que o ideal era passar o dia no Café Belém.

O garçom, velho conhecido por trabalhar há bastante tempo na casa, aproximou-se e ele pediu o de sempre: café preto, um pão com manteiga e um pratinho com frutas. Podia ser mamão e um kivi cortado em rodelas.

O garçom sorriu, anotou o pedido e afastou-se sem dizer nada.

Que estaria havendo agora? Todos em silêncio.

Voltou-se para trás para ver se a tv estava ligada. Apenas uma imagem imóvel de um comercial de xampu, sem qualquer som.

Hugo começou a sentir um certo frio, talvez até temor pelo que estava acontecendo. Seria só com ele? Será que os demais se comunicavam e ouviam muito bem o que diziam? Será que estava enlouquecendo? Ele, um homem com tantas ideias muito bem articuladas sobre vários assuntos, um literato, um homem de cultura, engajado política e socialmente na sociedade e agora... o que estava ocorrendo no mundo, meu Deus?

Um ruga de preocupação marcava a testa de Hugo e seus olhos se voltavam para todos os lados, observando as paredes, o balcão de granito com seus vários bancos à espera de clientes, as mesas ao centro quase que completamente preenchidas, a não ser aquela próxima à tv. Hoje não haveria problema, pensou, afinal, a tv estava muda e não incomodaria ninguém. Poderia até sentar ali, na frente daquela imagem de mulher alisando os cabelos, patética, olhando o nada, a boca entreaberta querendo dizer algo que não se articulava.

Percebeu o garçom aproximar-se com o café e animou-se um pouco.

Agora poderia falar-lhe, perguntar por exemplo, sobre o futebol, ele que era um gremista fanático. Até tentou fazê-lo, mas o outro afastou-se em seguida, deixando na mesa o pedido, apenas exercendo um sorriso formal.

Hugo ainda perguntou, assistiu o jogo ontem?, mas o garçom voltou-se, apertou o seu pulso de modo consensual para dizer alguma coisa ou ser apenas gentil e afastou-se novamente em silêncio.

Hugo reclamou, que merda, que ninguém fala nada! Mas decidiu tomar o café e dedicar-se à leitura do jornal, que como sempre, o garçom, já na sua chegada, deixara sobre a mesa da qual ele se aproximava.

Hugo leu a notícia sobre Temer que criticava o Mercosul, o qual deveria ser repensado; fez um cara de repulsa e dobrou a página.

Antes de ler a crônica do Juremir Machado, deu uma passada de olhos pelas pessoas que estavam no local.

Numa das mesas havia dois homens conversando animados, um deles apontava para um tablet, mostrando algum post engraçado ou vídeo, não conseguia ver. Entretanto, nada se ouvia, como os demais, apenas aquele fechar e abrir de bocas, gestos espontâneos e empurrões em cadeiras em pleno silêncio. Só faltava ser em preto e branco para completar os quadros sequenciais, pensou Hugo.

Olhou para os demais, um casal e duas crianças noutra mesa. A menina que devia ser menor que o menino, chorava fazendo uma careta terrível, pedindo alguma coisa que os pais negavam. O homem parecia nervoso, mordia os lábios e a mulher falava, estabanada, movendo os braços e mãos como se combatesse os próprios gestos para evitar bater nas crianças. O menino estava entretido no celular e este sim, estava em silêncio, embora o ruído eletrônico do bichinho em suas mãos devia ser insuportável.

Numa outra mesa, havia um homem sozinho. Vestia terno e trazia consigo uma mochila que parecia pesada, pois escorregava a todo momento pela cadeira, caindo no chão. Devia ser muito desastrado, pois cada vez que retirava alguma coisa da mochila, como o celular ou a carteira do dinheiro, esta retomava o mesmo processo de cair. Tudo em absoluto silêncio.

Havia outros, muito mais, mas Hugo desistira deles e decidira tomar o café.

Estava delicioso, aquele pãozinho com mateiga derretendo sobre a massa esfarinhada lhe aguçava a saliva e o prazer.

Pediria outro certamente e mesmo que viesse em silêncio, mas assim daquele mesmo sabor, estava ótimo. Depois provaria as frutas em fatias perfeitas, como pedira. O pessoal do Café Belém conhecia o seu paladar.

Foi o que fez. Deixou o jornal de lado e partiu para o ataque naquele desjejum sóbrio e prazeroso.

Depois ficou observando o garçom, as atendentes que traziam as refeições, o pessoal da cozinha.

Todos pareciam muito corteses uns com os outros.

A moça da caixa também mostrava-se gentil com os que entravam ou saíam do estabelecimento.

Hugo procurou entre os seus pertences, uma caneta e um pedaço de papel. Elaborou um pequeno comentário que faria na Sociedade Literária, na qual participaria mais tarde.

Estava bem disposto, saudável e com muito ânimo para pôr em prática os seus projetos, por isso comporia um pequeno esquema do trabalho.

Sabia por onde começar e o faria por emitir posicionamento político em seus textos, embora soubesse de antemão que o grupo desaprovaria qualquer questão que não expressasse exclusivamente o sabor da brisa e o aroma das almas. Mas isso era irrelevante naquele momento.

Depois de guardar o papel e a caneta no bolso, levantou-se, deu um bom dia ao pessoal do balcão, que retribuiu com um aceno e alguns sorrisos.

Dirigiu-se à caixa, antes passando pelo garçom que se deslocava pelo corredor com um bule numa bandeja e despediu-se apenas com um aceno, porque sabia que receberia o mesmo.

Na caixa, passou o cartão na leitora, cumprimentou a moça com um sorriso e dirigiu-se à porta envidraçada.

Percebeu que nem o salto de seus sapatos faziam qualquer ruído.

Por um momento, observou pela vidraça, centenas de pessoas que transitavam de um lado para o outro, como se várias procissões andassem em sentido contrário.

Ainda olhou para trás para ver se as pessoas em suas mesas continuavam conversando e viu que o processo era o mesmo: muita conversa, muito sorriso, muitos gestos e muito silêncio.

Então, segurou firme a maçaneta e empurrou a porta com cuidado. Nisso, uma avalanche de sons, gritos, buzinas, estrondos de rojões, gritarias, ambulâncias, polícia e bombeiros, tudo misturado expandia em seus ouvidos, deixando-o zonzo e assustado.

Por isso, puxou-a com força, lacrando-a para sempre e correu para a sua mesa.

Ali, restava um silêncio absoluto.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/lego-boneca-o-por-anfiteatro-1044891/

quinta-feira, junho 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 4º CAPÍTULO

Capítulo 4


<p> Capítulo 4

Quando chegou ao quarto onde o amigo estava, Ricardo encontrou-o sonolento. Aproximou-se da cama e Raul abriu os olhos, sorrindo.

—Não reconheci você com este jaleco, cara. Que bom que veio, meu médico preferido.

—Não se agite, Raul. Sei que seu açúcar teve uma queda considerável.

— É verdade, eu tive tonturas, tive náusea e até agora estou suando frio, apesar do sono.

—Isso é assim mesmo, daqui a pouco passa. Mas já é hora de dormir. Afinal, é bem tarde. Assim, você descansa.

— Sabe, Ricardo, eu tenho medo que eles me matem. Que descubram que estou aqui… Você sabe.

–– Ninguém vai descobrir nada. Não pense nisso.

––Você anda muito ocupado, eu sei. Já estou acostumado com abandono, meu amigo. Eu lhe falei da Susi, lembra? Não da cachorrinha que tenho em casa…

––Sei, da sua namorada. Esqueça isso. Pense em melhorar depressa. Amanhã, você sairá daqui.

––Escute, você pensou na proposta que lhe falei?

–– Pensei, mas conversamos amanhã. Agora, eu só vim ver como você está. Não quero importuná-lo mais. Tente dormir. Raul o observou com certa ironia. Segurou a mão de Ricardo e perguntou com cumplicidade:

— Meu amigo, você andou bebendo. Não pode vir atender os pacientes neste estado, ainda mais usando jaleco, entrando no hospital com o crachá de médico…

–– Cale a boca, não repita essa bobagem aqui.

–– E você acha mesmo que é uma bobagem?

–– Não, não é, claro que não. Mas vim aqui para vê-lo. Que está insinuando?

–– Só estou querendo protegê-lo, meu amigo. Uma morte qualquer de um paciente pode responsabilizá-lo por incompetência, por estar usando bebida alcoólica.

––Eu não estou atendendo ninguém, você sabe disso.

––Mas numa emergência, podem precisar de você.

–– Você está me ameaçando?

––Jamais, meu amigo, jamais. Quero proteger você, como disse, até a morte, se necessário.

–– Então não se preocupe comigo. Sei me virar. Por isso, mesmo, vou embora, você já está muito bem, pronto pra outra.

––Meu amigo, quero lhe agradecer por não ter me abandonado. Sei que você vai fazer o que lhe pedi, vai tentar descobrir a causa da morte daquelas pessoas. Você vai provar que elas morreram por terem usado insulina.

— Eu já lhe disse que estou ingressando no hospital, não posso me envolver com nenhuma necrópsia e depois, isso é atribuição dos peritos da polícia civil.

—Mas você vai achar uma maneira de resolver isso, tenho certeza. E vamos culpar aqueles malditos da petshop.

Ricardo afastou-se encontrando alguns colegas que faziam o plantão da noite. Fez o possível para dirigir-se ao estacionamento o mais rápido que pode.

Quando estava no carro, no silêncio entre os poucos carros que ainda estavam no prédio, ficou inquieto, pensando nas palavras de Raul.

Às vezes, parecia que ele pretendia agredi-lo, agindo de forma irônica, como se pudesse acusa-lo de algum delito. Entretanto, o melhor que tinha a fazer era esquecê-lo e voltar para o hotel imediatamente.

Foi o que fez. Tentou dormir um pouco e ao levantar, parecia que carregava uma carga imensa nas costas. Antes de mais nada, decidiu ir até a casa da mãe de Raul. Precisava saber os detalhes da conversa que pretendia ter com ele, de preferência, longe do filho, como dissera.

Dirigiu-se ao endereço que tinha anotado, observou que era uma casa antiga, com um velho portão de ferro, meio enferrujado, precisando de uma boa pintura.

Tocou a campainha e uma mulher atravessou o pátio, vindo pela calçada que conduzia ao portão. Tinha o cabelo pintado de loiro, curto e uma estranha cicatriz perto do olho. Como médico, foi a primeira coisa que reparou. Não esqueceu também da voz rouca de quem havia fumado por muito tempo.

Ela abriu o portão e pediu que entrasse, apresentando-se, logo em seguida.

––Seu nome é Sara. Raul não havia falado na senhora.

–– Não?

–– Na verdade, comentara alguma coisa sobre a sua casa, herança que provavelmente seria dele…

–– Raul às vezes, é uma criança. Mas vamos entrar, não ficaremos conversando aqui no portão, até porque está meio frio, não acha?

Ricardo concordou e avisou que teria pouco tempo, no máximo uma hora, em virtude do compromisso no hospital.

Entraram na casa. Uma sala enorme, com alguns quadros inexpressivos na parede.

Sara o convidara a sentar-se numa das poltronas e afastou-se, dizendo que traria um café. Ricardo insistiu que já havia tomado café no hotel e que não teria muito tempo. O ideal é que fossem direto ao assunto.

Sara então, sentou-se na poltrona a sua frente. Ficou em silêncio, observando-o, o que o incomodou um pouco. Por isso, engatou o assunto:

–– A senhora disse-me ao telefone que gostaria de falar-me na ausência de seu filho. O que aconteceu?

–– Bem, eu diria que não aconteceu absolutamente nada.

–– Como assim?

–– Deixe-me explicar. Raul tem passado por um período muito difícil, desde que brigou com a namorada. Ele estava muito apaixonado, sabe?

–– Sim, ele me contou.

–– Acho que a separação o perturbou de alguma forma, porque anda inventando coisas, anda fantasiando, entende?

–– A senhor se refere aos crimes?

–– Exatamente. Quero dizer, mais especificamente, ao ataque que ele sofreu.

–– Ele foi atacado perto do petshop, no tal parque perto da loja. Foi isso que ele falou.

–– E você acreditou nesta história?

–– Por tudo que ele descreveu, pelo verdadeiro pânico que parece estar sentindo, não teria motivos para duvidar.

–– Mas não acha que aquela história do homem no carro oferecer carona é pura ficção? E depois, perder um cachorro, ele tentar ajudar e ser atacado! É muita fantasia, pelo amor de Deus!

–– Definitivamente, a senhora não acredita nele!

–– Pobre do meu filho! Ele anda imaginando estas coisas. Ele não tomou nenhuma dose de insulina a mais e se tomou foi a normal, de todos os dias. Ele começou a imaginar estas coisas… Tenho medo de que esteja enlouquecendo…

–– Muito bem, tudo é muito estranho, realmente. A história é até um pouco absurda, mas e quanto aos outros crimes? As vítimas existem, estão em todos os jornais. Há um assassino solto por aí.

––É verdade, existem sim. E nem sabemos se foram mortas pelas mesmas pessoas. Mas quanto a ele… não aconteceu nada. Por que o deixariam vivo, você já se perguntou isso?

–– A explicação dele é convincente. Ele seria o único que é realmente doente, por isso se salvou. Segundo ele, injetaram insulina nos outros e estes não sofriam da doença.

–– E quem pode provar que morreram disso?

–– É o que ele quer que eu ajude a provar, conversando com os peritos, com os inspetores que cuidam dos casos. Se fizerem necrópsia nos corpos das vítimas…

–– Se eu fosse você não me envolveria com isso. Vão chegar a um resultado lastimável…
.

–– Como assim?

–– Quero dizer, absurdo. O que eu quero, na verdade, o motivo que o chamei aqui, além de dizer isso, é que você não o abandone, que o ajude a sair dessa situação, entende? Eu preciso que meu filho volte à realidade. Que ele pare de pensar nestas bobagens, que volte a viver! Faz dois anos que se separou dessa mulher que ele tanto venera, agora chega. Tem que esquecer, tem que arranjar um trabalho decente. E só você pode ajudá-lo.

–– Eu estou tentando, dona Sara.

–– Sei, mas você tem que mudar o modus operandi, entende? Tem que esquecer essa história de crimes e levá-lo a se divertir, a conviver com outras pessoas, quem sabe lembrar do passado, do tempo em que eram crianças, rir um pouco, beber nos bares, saírem. É o que ele precisa. Eu até sugeri que você morasse aqui, por um tempo.

–– Foi a senhora que sugeriu?

–– Sim. Não é uma boa ideia? Até você encontrar um lugar para ficar. Esta cidade é pequena, não comporta bons apartamentos. A minha casa é grande, antiga, mas bem aprazível. Você terá um quarto e uma suíte, só sua. O que acha?

–– Raul lhe falou de minha namorada? Ela pretende vir para cá.

Sara aquietou-se. Levantou-se e perguntou novamente se ele não queria café. Desta vez, também sugeriu um chá. Ricardo recusou, dizendo que estava na hora de ir.

–– Eu compreendo meu filho, vá, desempenhe bem as suas tarefas e seja um bom médico. Você tem tudo para ser um grande profissional, diferente de Raul, infelizmente. Mas vá, daqui a pouco, ele estará em casa novamente. Pode ser, que mude de ideia e esqueça essa história de crimes.
Sara interrompeu-se por um instante e antes que ele saísse, pediu:

—- Espere, antes de sair me prometa uma coisa. Não diga nada a Raul sobre a nossa conversa. Ele tem tanta confiança em você, que se soubesse que esteve aqui, talvez desconfiasse de alguma coisa.

Ricardo concordou e afastou-se rapidamente.

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