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quinta-feira, agosto 04, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 18

Capítulo 18

Naquela noite, Júlio Ramirez não conseguia dormir. A cidade natal que cultivava em sua memória como um sonho de paz e felicidade se revelava um aglomerado de pessoas estranhas, com princípios totalmente diferentes dos seus. Nada era como imaginara, ao pensar até em voltar a morar ali. Entretanto, este tempo estava sendo de uma aprendizagem do ser humano, especialmente para o seu livro, que além de uma biografia, provavelmente seria um estudo sociológico. Havia muito a contar sobre àquela gente que costumava ser tão polida e ao mesmo tempo com segredos inconfessáveis. Provavelmente, eram iguais a todo o mundo, só que ali, o caldo cultural era muito expressivo, juntando todos com características muito peculiares.

Estava assim pensativo, quando tocou o celular quase ao seu ouvido e estremeceu, assustado. Estava ficando velho, pensou, qualquer ruído bastava para deixá-lo em estado de alerta. Devia ser uma mensagem qualquer, dessas de publicidade que acabam com a paz de cada um.

Entretanto, decidiu ver do que se tratava. Era uma mensagem de Ana, a menina que costumava fazer as suas festinhas no rio e que afirmara ter ouvido o grito por socorro de Taís. Custou-lhe abrir os olhos e encarar a luz azul do visor. Não conseguia entender, além disso, as letras eram pequenas e precisava de óculos. Agora sentia frio, por não ter se coberto, nem colocado um pijama. Procurou os óculos pela mesinha de cabeceira, achou-os no chão. Pegou-os esticando um braço, sentindo uma torção no músculo pela extensão involuntária e colocou-os imediatamente no rosto.

Leu a mensagem e ficou intrigado. “Por favor Dr. Júlio, venha aqui, na ponte, a mulher quer me matar, ela está desesperada. Acha que eu sei de tudo”.

A mensagem fora digitada há alguns segundos. Mas e se fosse uma cilada? Por que o queriam na ponte? Talvez quisessem acabar com ele para parar com a investigação que começava a incomodar muita gente. E se a polícia estivesse envolvida? Se tivessem matado a moça, por algum motivo relacionado ao tráfico de drogas?

Afinal, parece que havia uma turminha da pesada por ali. Sabia porém que precisava ir, tinha que atender o chamado. Não poderia deixar a menina à própria sorte. Mas por que diabo ela estava na ponte àquela hora. Será que esta garota não tem família?

Júlio então vestiu a roupa rapidamente e desceu até a portaria, onde deparou-se com Anderson, o garçom. Perguntou-lhe por Rosa.

— Pois é, eu estou fazendo o papel de porteiro, o senhor acredita? Aqui eu faço de tudo. Isso é que dá trabalhar em hotel pequeno, uma espelunca como essa.

— Você parece irritado, Anderson. Acalme-se rapaz.

— É que Rosa deveria estar aqui, hoje era dia dela. Faz uns plantões, sabia?

— Certamente aconteceu alguma coisa, mas me desculpe Anderson, estou com um pouco de pressa.

Afasta-se e corre para o estacionamento. No carro, fica o tempo todo revendo a cena em que Ana lhe contava sobre o que sabia do crime, ou o que imaginava, ao mesmo tempo que se mostrava transparente em seus objetivos. Não se importava em perguntar se ele já tinha fumado um baseado. Era lá que costumava encontrar os seus amigos, por isso voltava todos os dias ao lugar. Esta mensagem, no entanto o intrigava. Por que Ana o chamaria daquela maneira. Tudo estava muito estranho. Não demorou muito, porém, Júlio chegava à região em que a adolescente indicara, ficando um pouco afastado, à espreita. Escondeu-se atrás de um painel de publicidade, mas percebeu que havia duas mulheres na parte final da ponte e dali, apesar da pouca iluminação percebia que se tratava de Ana realmente. Não conseguia identificar a outra pessoa. Quem poderia ser, quem estaria ameaçando a menina e por que motivo? Era o que precisava descobrir. Aproximou-se um pouco, tentando esconder-se para não ser visto e tomar alguma atitude, caso fosse necessária. Foi aí que teve a grande surpresa: reconheceu a mulher que discutia com extrema agressividade. A mulher a quem Ana se referia era Rosa, a maestrina. Então era como pensava, Rosa estava envolvida de alguma forma com o crime. O que levaria uma mulher aparentemente segura e independente tomar aquela atitude com Ana? Se bem, que Rosa já apresentara nuances bem estranhas em sua personalidade.

Júlio ficou num ponto estratégico, sem que Rosa o visse, mas que poderia interceder no caso de uma tentativa de agressão mais perigosa. No fundo, considerava um exagero o fato de Ana pedir por socorro, aventando uma presumível tentativa de assassinato, mas mesmo assim, não custava prevenir. Esforçou-se para ouvir o diálogo exaltado.

–O que a senhora quer de mim? Eu já lhe disse que não sei de nada.

– Você não sabe de nada agora, mas andou dizendo coisas por ai, que deixou muita gente de cabelo em pé. Andou até vendo o carro do médico no dia do crime, você é uma vadia drogada, e eu sei que vai fazer tudo pra conseguir se safar da prisão.

Júlio não podia acreditar que Rosa estivesse tão desfigurada, como se tomada por uma fúria incontrolável. Revelava-se uma mulher violenta, capaz de cometer qualquer ato de vingança.

– Não seja idiota. Eu não tenho motivo para ser presa. Além disso, sou menor. E o que eu fiz pra senhora? O que tem a ver com o crime? Por acaso foi o seu amorzinho Paulo que matou a moça?

– Sua desgraçada, cale essa boca. Você não me fale do Paulo, que é um rapaz bom, direito. O que você tinha que dizer que viu o carro para o detetive, agora ele já sabe que não foi o médico que estava no carro, porque estava na oficina, naquele dia. Agora, ele já deve estar sabendo que o Paulo estava dirigindo o carro do médico, sua vaca!

– E o que ele fazia com o carro do doutor? Veio participar do nosso lual?

– Ele não usa as suas drogas, sua vagabunda! Você tem que sumir dessa cidade, já que não tem mãe, não tem família, vive com tio que não passa de um marginal!

– Então é verdade! Foi o Paulo que matou a Taís! Claro, ele era apaixonado por ela, estava morto de ciúmes. O seu amorzinho é o assassino! Pois fique sabendo que vou contar para o detetive e ele vai apodrecer na cadeia!

— Não vai não, isso eu tenho certeza de que não vai fazer, sua putinha, sabe por quê? Porque eu vou matar você! Vou fazer o mesmo que ele fez com Taís, a outra vagabunda , vou te atirar daqui. É isso o que você queria, não é?

Segura-a pelo pescoço, tentando arrastá-la para o meio da ponte. Neste momento, Júlio surge de seu esconderijo, gritando: – Parem. Parem onde estão. Parem ou eu atiro!

– Detetive! - exclama Rosa em absoluto desespero. Júlio continua apontando a arma, enquanto a acusa.

– Vou chamar a polícia, Rosa você será presa por tentativa de homicídio e o seu protegido por assassinato.

– Não, doutor, pelo amor de Deus, ele é inocente. Eu juro! Essa menina anda inventado coisas por aí.

– Mas foi você mesma quem afirmou que ele pegou o carro do médico que estava na oficina, certamente para incriminá-lo, para ele mesmo fazer o negócio. Foi um plano muito bem pensado, não é Rosa?

– Meu Deus, o que eu fui fazer - grita em desespero, sentido-se perdida - que desgraça, meu Deus! Paulo não pode sofrer uma fatalidade destas! Ele vai morrer, ele é muito fraco, doutor!

– Mas foi forte o suficiente para matar uma moça indefesa. Assim como você iria fazer! Agora fique quieta ai, que a polícia já vai chegar! E você, Ana, para onde vai?

– Vou embora, não tenho nada mais a fazer aqui.

– Tem sim. Você vai depor na polícia. E eles farão um mandado de busca a Paulo, que está na capital, pois que volte em seguida. Será preso.

– Eu não sei quase nada doutro, só o que lhe falei, que ouvi o grito de Taís, quando foi assassinada. Eu nem sabia que o idiota tinha pego o carro do doutor.

– Você sabe mais coisas, sim, Ana e terá de depor. Vamos. Não tente fugir.

Nisso,Ana foge, desaparecendo na escuridão da ponte, perdendo-se entre as ribanceiras e entrando no bosque, região que ela conhece muito bem. Júlio até dispara um tiro para assustá-la e impedir a fuga, mas é ineficiente. Rosa sorri com ironia, enquanto resmunga: – Sobrou pra mim, aqui, a velha que não tem nada a ver com isso.

quinta-feira, julho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 12


Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de tão misterioso nesta cidade? O que todos queriam esconder?

Júlio decidiu fazer o lanche habitual para depois dirigir-se à casa de Rosa, que hoje não viera ao hotel.

O garçom se aproximou amistoso.

– Então, gostou do lanche?

– Tanto quanto ontem. Perfeito.

– Acho que na alta temporada, o patrão vai aceitar a sua sugestão de lanche e começar a servir todos os dias para todos.

– Hum, boa ideia.

– Só que pra ser sincero, não acredito que dê certo. Aqui neste fim de mundo, nem no verão vem muita gente. Uma meia dúzia de gatos pingados.

– Você… Como é o seu nome mesmo?

– Anderson.

– Anderson, você sempre morou aqui?

– Eu nasci aqui, morei uns meses na capital, mas não me adaptei. Acabei voltando.

– É, a vida é dura. Na cidade grande, a gente tem que ter uma boa estrutura.

– O senhor falou tudo.

– Anderson, eu gostaria de saber onde mora a senhora que trabalha aqui no hotel, a da portaria.

– Ah, a Rosa? Sim, claro. Mora nessa mesma rua, umas seis quadras adiante.

– Ela é a mãe de Paulo, o mecânico?

O rapaz sorri, irônico:

– Dizem que é mãe dele, mas é o que a cidade quer ouvir. Ela é uma mulher madura e o povo não aceita.

– Não aceita o que?

– Que ela seja amante dele.

– Amante?

– Sim, preferem que seja mãe. É uma gente muito tacanha.

– Mas como vão dizer que é mãe se no passado, nunca a conheceram como mãe dele.

– Vai pensar o quê? Essa gente é maluca. Preconceituosa e louca, isso sim. Pra eles, o que vale é a aparência. Não importa se a pessoa é puta ou ladra, o que vale mesmo é como ela se apresenta na sociedade. Mas falando do Paulo, o que dizem, que o verdadeiro problema é que ele veio pra cá, procurando a mãe que não via desde pequeno. Encontrou essa tal de Rosa e ela o ajudou alugando um dos seus apartamentos. Dizem por aí, que ele nunca pagou nada e para completar, todos passaram a dizer que ela era a mãe dele.

– Que coisa absurda, você não acha?

– Tudo nesta cidade é absurdo, doutor.

Júlio voltou para o quarto para tomar um banho e trocar de roupa, quando recebeu uma ligação no quarto. Esperava que fosse seu amigo Jairo justificando ter dado o seu nome ao farmacêutico para investigar o caso. De todo modo, foi uma boa medida. Afinal, seria recompensado e cobraria uma bela quantia ao pobre homem. Não poderia é ser desonesto com a tal Sara Soares e deveria rescindir o contrato. Por outro lado, havia um caso concreto, um homem que precisava encontrar o assassino da filha ou pelo menos, saber o que tinha acontecido. Quanto à Sara, tudo o que dissera parecia ser uma justificativa para vingar-se de Rosa. Ele precisava esclarecer o crime, pois os fatos transcorriam de modo a condenarem uma pessoa inocente, como o médico ao qual o farmacêutico acusava com tanta veemência. Até que provasse o contrário, qualquer um seria o culpado, até mesmo a própria maestrina, como alguns suspeitavam. Também havia a hipótese da jovem ter se suicidado. Ou quem sabe, fora um acidente? O telefonema, porém não era de seu amigo e Júlio surpreendeu-se em saber que Rosa estava ligando para ele. Não pretendia sair àquela hora, deixaria a conversa com a mulher para o dia seguinte, mas ela demostrava muito interesse em falar-lhe. Na verdade, não se pode perder a oportunidade quando aparece assim, pensou o detetive. Talvez fosse um fato novo e se a maestrina queria tanto falar com ele, é porque havia alguma coisa a ser investigada.

Algum tempo depois, Júlio estava na frente do portão de grade, esperando ser atendido. Observou que uma luz se acendeu bem ao fundo, no interior da casa, deixando um pequeno foco para a calçada de lajotas. Olhou em torno e percebeu os olhos de um cão que o observava em silêncio. Tocou a campainha novamente e o animal rosnou sem mover-se. Rosa, em seguida apareceu, pedindo que o detetive aguardasse que ela levaria o cão para uma área, ao lado da casa. D’tartagham era um cachorro tranquilo, mas não se pode confiar, informou Rosa sorrindo.

Júlio voltou-se para o carro, que deixara sob o holofote de um poste e ficou esperando por Rosa. Por um momento, pensou o que estava fazendo ali. Um homem de sua experiência, de repente, atender o chamado de uma mulher, que poderia se configurar numa cilada. Respirou fundo. Ajeitou a gola rolê, cobrindo ainda mais o pescoço, fechou o paletó e aguardou que ela voltasse, com certa ansiedade. Em seguida, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos que imaginava serem absurdos, afinal, quem era Rosa, uma professora, maestrina do coral da igreja e em alguns dias da semana trabalhava na portaria do hotel. Como poderia pensar em alguma cilada de uma mulher como aquela? Por outro lado, jamais poderia imaginar numa história tão absurda com o mecânico da oficina, contudo, sempre fica a dúvida, afinal quem pode entender a psicologia humana? Cada um é como é, pensou. Nisso, Rosa apareceu, abriu o portão de ferro e pediu que entrasse. Júlio sentou-se numa poltrona próxima à área onde estava o cachorro e mesmo na escuridão podia ver os olhos do animal pela vidraça da janela, o qual parecia à espreita de algum movimento. Ao mesmo tempo, talvez pela área desembocasse alguma brisa, pois sentia o ar escasso no ambiente. Ela entendeu a dificuldade de Júlio, pois perguntou se queria que abrisse a janela.

–Se acha que não ficará muito frio, preferiria sim. - Respondera, agora mais tranquilo.

Ela abriu um pouco a persiana, depois sentou-se no sofá a sua frente. Antes perguntara se ele não gostaria de uma bebida.

–Não, não, obrigado. Acabei de fazer um lanche substancioso. Bem, parece que você queria falar comigo, Rosa.

– Pois é, pensei inclusive que o senhor não viria. Deve ter tantos compromissos e eu incomodando-o uma hora dessas. Mas é que não gostaria de falar-lhe no hotel, muito menos na igreja, onde temos o coral. Lá há sempre muita gente, principalmente neste horário.

– Não se preocupe, Rosa. Se eu não pudesse, diria na hora em que me convidou. Parece que você está preocupada com alguma coisa.

– Pra falar a verdade, estou sim. O senhor sabe que eu sou maestrina do coral da igreja.

– Sim, e pelo que me consta tem um bom grupo lá.

– Sim, por isso tenho muitos conhecidos, alguns amigos de algum tempo.

Júlio aquietou-se, esperando que ela falasse. Percebeu que Rosa estava disposta a contar-lhe alguma coisa muito grave, mas não poderia apressar os fatos.

Rosa levantou-se, foi até a janela que ficava na outra extremidade da sala e observou a pouca luminosidade do jardim. Perguntou, displicente:

– O senhor reparou com o meu jardim é escuro? Já mandei trocar as lâmpadas várias vezes, mas os marginais que passam por aqui jogam pedras e acaba nisso, nessa escuridão. Já estou desistindo, sabe?

– Mas é uma cidade tão pequena. Não reconheceram os vândalos?

– Ninguém dá a mínima para o que acontece com a gente, nessa cidade. Eu posso ser assassinada, posso morrer a qualquer momento e ninguém faz nada.

– Você parece muito nervosa, Rosa.

Rosa voltou a sentar-se e pôs as mãos na cabeça, como se fosse chorar, num gesto que parecia de desespero. Num segundo, porém, se recompôs e após um longo suspiro, levantou a cabeça, encarando Júlio de um modo bastante grave. A seguir, perguntou, disfarçando o nervosismo:

– Tem certeza de que não quer alguma coisa, detetive? Posso servir um suco.

– Não, não, como lhe disse, Rosa, para mim está de bom tamanho. Quero apenas conversar com você, saber o que lhe aflige, por isso vim aqui.

Ela permaneceu em silêncio, como se temesse prosseguir no assunto. Júlio então, a encorajava:

– Você me disse que tem muitos conhecidos no seu grupo, alguns amigos. E então, queria falar sobre isso, não?

– Sim, entre os meus amigos está o Pe. João. Ele é uma pessoa boníssima, tem os seus defeitos, como todo mundo, mas tem se mostrado um grande amigo.

– Há outras pessoas que considera amigas, dentro do coral?

– Eu tinha uma grande amiga, a esposa do Seu Domingues.

– E ela deixou de sê-lo?

– Infelizmente, ela morreu. Não sei se o senhor teve a oportunidade de conhecer o Seu Domingues? – Júlio acenou negativamente e ela prosseguiu. – É um velhinho muito querido aqui da cidade, o senhor vai encontrá-lo sempre jogando damas na praça ou então sentado tomando sol. Também passa muitas horas na loja de conveniência, onde trabalha uma nossa colega do coral, Marília.

– Por que ele fica lá?

– Aquela loja era dele há muitos anos. Tinha um posto de gasolina, a loja e até uma farmácia. Quando a mulher morreu acabou vendendo tudo, vive sozinho num apartamento, mas gosta de ficar na loja, tomando um café e conversando. Isso, quando está de bom humor, porque de uns tempos pra cá, anda muito amargurado.

– Pela morte da mulher?

– Pela idade, pelas dificuldades que possui como todo idoso, naturalmente e claro, sim, pela morte da mulher.

– É normal, você não acha?

– Até certo ponto, sim, mas é que segundo ele, tem outros motivos.

– Outros motivos?

– Bem, dizem que a mulher morrera em virtude de um erro médico. A coitada tinha diabete e parece que o médico deu uma dose errada, sei lá, uma coisa meio absurda, sabe?

– Este médico que atualmente é residente no hospital?

– Sim, o dr. Ricardo. Mas isso não aconteceu agora, foi no tempo em que ele era apenas um estagiário. Tinha se graduado, mas ainda não havia passado na prova de residência, por isso ficara estagiando por dois anos na cidade. Pelo menos, é isso que dizem.

– Esta história é comentada na cidade ou apenas pelo tal de Seu Domingues?

– Dá na mesma, detetive. Todo mundo sabe o que acontece. Seu Domingues deve ter comentado com alguém, e certamente passou de um para outro e todos acabam falando a mesma coisa.

– É, falam de todo mundo. Mas me diga, Rosa, o que a deixou preocupada, além das histórias de seus amigos, deve haver alguma coisa que diga respeito a você?

– Por exemplo?

Júlio pensou em disparar rapidamente, a palavra Paulo, o mecânico, mas se conteve. Não era o momento de abrir o jogo. Precisava saber mais, descobrir o motivo do chamado de Rosa. Então, deu meia volta e remendou:

– Por exemplo, pessoas do seu grupo que a importunam. Pensei que um desses a incomodasse, ou que a deixava apreensiva.

– Bem, acho que o senhor tem razão. Mas falei na mulher do Seu Domingues, chamava-se Lorena, sabe, era uma criatura dócil, amiga. Isso me deixou apreensiva, sim, porque é o caso da diabete. O senhor deve saber que há casos de pessoas que morreram envenenadas com insulina, nem sei se se pode afirmar assim, chamar de envenenamento, mas aconteceu de pessoas que não tinham a doença, morreram por terem sido injetadas nelas o medicamento.

– Isso foi provado?

– A polícia está investigando. Alguns casos foram arquivados. Não há como provar, sabe.

– Você acha isso possível?

– Eu fiquei pensando neste caso da Lorena. E depois me falaram de outros casos semelhantes, não de erro médico, mas relacionados à insulina. Para encurtar o caso, detetive, eu estou com medo, porque hoje fui ao médico, fiz uns exames e descobri que estou com diabete. Eu estou com medo de morrer doutor!

– Rosa, você se deu conta que há dois tipos de crimes na cidade e que um determinado grupo de pessoas chama a atenção e dá muita importância a um tipo de crime e outro grupo está muito preocupado com o outro.

– Como assim, detetive?

– Há estes crimes que você descreveu, sobre pessoas que foram, segundo o que se comenta, injetadas com insulina e morreram por não possuírem a doença, não é isso? Há outras pessoas que falei, como Sara Soares e parece que seu filho também foi vítima disso, embora não tenha conversado com ele ainda.

– O senhor se refere a Raul.

– Sim, parece que ele faz parte do coral e é muito amigo seu, não?

Rosa parecia desconsertada. Caminhava de um lado para o outro da sala, como se não soubesse o que dizer.

Júlio concluiu:

– Mais tarde, eu faço questão de falar sobre ele, mas quero completar o meu pensamento. Falei no primeiro tipo de crimes que estão acontecendo aqui, mas há um outro, que se refere a uma moça que foi assassinada ou se suicidou, não sabemos, mas é um caso que envolve alguns suspeitos e muita dúvida pela polícia. Há um pai em absoluto desespero, que quer justiça. Há um médico, este mesmo que é residente na cidade, que está sendo acusado e ninguém fala, a não ser algumas pessoas interessadas no assunto. Você entendeu o que eu quero dizer, Rosa?

–Eu soube sobre o crime sim, mas para mim, a polícia está investigando e vai chegar a uma conclusão. Mas no primeiro tipo, como o senhor diz, a coisa está muito obscura. Por isso, eu estou com medo. E quanto ao médico, ele me parece envolvido nos dois tipos.

– Mas vamos falar sobre o seu amigo Raul.

Rosa respirou fundo. Não gostaria de falar em Raul. Como dizer-lhe que a presença de Raul a deixava feliz, que era uma pessoa muito bem integrada no curso, o único que não professava a religião católica, mas que gostava do que fazia. Estava sempre pronto a aprender novos acordes, aceitava as críticas, era um participante que ajudava ao crescimento do grupo.

– E você Rosa, eu lhe peço que seja sincera, já que pretende que eu possa ajudá-la de algum modo. Você gostava de Raul? Quero dizer, sentia alguma atração por ele, como homem?

Rosa rapidamente corou, sentindo-se pouco à vontade com a pergunta de Júlio, mas tentou responder com firmeza.

– Eu sou uma mulher madura, detetive, ele é um homem que talvez tenha os seus trinta e poucos anos.

– Mas e daí, isso interfere em alguma coisa?

– Não sei, pode ser que não, mas em se tratando dessa cidade…

– Deixemos a cidade de lado e o que o povo pensa desse tema. Responda objetivamente a minha pergunta, por favor.

– De modo algum! - Responde categórica. - Ele foi um bom amigo, apenas. Sentia uma atração por ele, não vou negar, mas não fisicamente. Era uma coisa de carência, de querer ajudá-lo, talvez até meio materna, mas nunca passou disso.

– Você disse que ele era um bom amigo, então deixou de sê-lo?

– É uma longa história. Raul andou me apresentando, sabe? Começou a fumar maconha, talvez tenha sempre usado, mas ficou meio irresponsável. Certa vez, entrou em minha casa com a minha chave, drogou o meu cachorro, a partir daquele dia, fiz tudo para que saísse do coral. Só que nesse meio tempo, segundo o que dissera, tentaram matá-lo, injetando insulina, como nos outros. Só que ele não morreu, porque tinha a doença e os criminosos não sabiam.

– Então a coisa é mais séria do que pensamos. Precisamos fazer um relatório, vou tentar pegar informações com a polícia sobre esses casos. Entretanto, estou muito preocupado com o outro caso.

– Antes detetive, me diga, não acha que estou com razão por ter medo? Se descobrirem que sou diabética, poderão me matar também!

– Mas quem faria isso? Qual seria o motivo para matar todo mundo que tem diabete, embora pelo que entendi, só morre quem não tem a doença. Então, não tem sentido tentarem matar quem está doente.

– Sei lá, talvez alguém que quisesse se vingar.

– Alguém como o Sr. Domingues que você falou? Afinal, a mulher morrera por um erro médico. Ela tinha a doença. Vai ver que ele queira se vingar do médico, fazendo morrer todos que não tenham a doença e talvez jogando a culpa nele.

– Mas isso é um absurdo.

– É um absurdo, mas os criminosos estão aí para provar que cometem absurdos.

–Talvez o senhor tenha razão, mas me diga, como pode ajudar-me, detetive?

– Esperando que você me conte tudo o que sabe, Rosa.

– Como assim? Eu já lhe contei tudo o que sei, esteja certo.

– Você conhece o ex-namorado da jovem assassinada, Taís?

Rosa estremeceu. Deu um salto para trás, como se fosse atingida por um projétil vindo da janela. Lá fora, D’tartagham ladrou com extrema fúria, que impressionou Júlio. Rosa então aproximou-se de um pequeno móvel que tinha algumas bebidas e serviu-se de um licor. Ofereceu-o ao detetive, que recusou mais uma vez. Tomou-o de um só gole e comentou, distraída:

– Não sei exatamente a quem o senhor se refere.

Júlio foi categórico:

– Refiro-me ao mecânico que trabalha na oficina dos Irmãos Silva. Pelo que me consta, você o conhece.

– Sim, devo conhecê-lo, como o senhor sabe, todos conhecem a todos nesta cidade. - Respondeu ansiosa.

– Mas pelo que um dos Silva me afirmou, você o conhece muito bem, até o tem ajudado desde que veio para cá, à procura da mãe. Se não me engano, você até alugou um apartamento em troca de alguns favores.

– Do que o senhor está falando detetive? A maneira como fala está me ofendendo. Estes miseráveis Silva nem sabem o que estão dizendo.

– Na verdade, fui irresponsável, agora. O Silva disse que o mecânico a conhecia e que você o tinha ajudado, mas não me contara tudo isso que relatei. Eu confundi as fontes.

– Qual foi o vagabundo que lhe informou isso?

– Não interessa agora, Rosa. Quero saber se é verdade, se você conhece o mecânico Paulo e se tem alguma relação com ele. O que significa este rapaz para você?

Ao ouvir a pergunta sobre Paulo, Rosa emudeceu. Ele então mudou de tática.

– Está bem Rosa, então vou tornar a perguntar sobre a filha do farmacêutico. O que você tem a me dizer sobre o crime?

Rosa o olhava intrigada. Parecia que as coisas estavam por demais confusas, para enveredar por aquele assunto. Afinal, não foi para isso que chamou o detetive. De súbito, respondeu, irritada.

– Eu acho que ninguém a matou, ela devia estar tomando um daqueles banhos que costumava e despencou rio abaixo.

– Como assim?

–Ela tomava banhos a qualquer hora do dia e da noite e nua, como veio ao mundo! Era uma leviana! Ou o senhor pensa que era uma santinha?

– Disso eu não estava informado. Ninguém comentou. Viu que não é tudo que falam na cidade?

–É, talvez só falem o que interessa para eles, para agredir alguém.

– Você a considerava uma leviana por isso?

– Só por isso, não. Ela era uma jovem muito atirada, dava em cima de qualquer homem que lhe passasse à frente. E não pense que eu é que achava isso, toda a cidade comentava!

–E quanto a Paulo?

Rosa prosseguia no mesmo tom enfático, diferente da mulher tranquila e ponderada que demonstrava ser.

–O que eu tenho a dizer, é o que todos dizem por aí. Taís era namorada dele e o traiu com aquele médico. Não tinha compostura. Era uma desequilibrada. Além disso, fumava maconha e bebia como uma viciada!

– Meu Deus, tudo isso! Mas namorou Paulo durante muito tempo?

– Uns dois anos. Ele pretendia até casar-se com ela, contra a minha vontade é claro. Mas ele gostava muito dela, estava encantado e passava a mão por cima de todos os seus defeitos. Ela fazia qualquer coisa para conseguir as drogas, até se prostituir. Era uma infeliz!

Júlio percebia que os olhos de Rosa brilhavam, como se estivesse falando com a própria vítima. Então, perguntou, oportuno.

– Rosa, quer dizer que você odiava esta moça.

– Com todas as forças de minha alma. Ela era capaz de tudo e ia acabar com a vida de Paulo.

– Você ama muito este rapaz.

Ela fez um silêncio pesado. Então, levantou-se do sofá e aproximou-se de um balcão escuro, onde pegou um maço de cigarros. Retirou um, deixou entre os dedos, mas não o acendeu. Encostou-se no balcão. Quando falou, o fez quase numa súplica, encarando fixamente o detetive.

– Dr. Júlio, eu lhe peço, esqueça esta história. Volte para a sua cidade, essa moça, pobre coitada, a gente sabe, não merecia isso. Veja bem, não vai resolver nada. Nem o senhor nem ninguém vai trazê-la de volta.

– Por que quer que eu esqueça o caso? Fui contratado por Lucas, o pai da moça.

– Lucas, aquele maldito! Por que não deixa a filha descansar em paz?

– Mas qual é o motivo de querer deixar tudo como está? Não é melhor resolver o problema?

– Não, doutor, não é melhor. - E quase chorando. - Tenho certeza de que vão acusar o Paulo, só porque ele é um pobre coitado. É a parte mais fraca. Jamais vão acusar aquele doutorzinho de merda, o senhor pode ter certeza.

Júlio a ouvia surpreso. Fez uma pequena pausa e logo argumentou:

– Você sabe que na condição de detetive, preciso saber algumas coisas, como por exemplo, qual é a sua verdadeira relação com este rapaz.

Ela largou o cigarro sobre o balcão, desistindo de fumar e voltou a sentar-se no sofá. Enxugou algumas lágrimas e tentou parecer mais calma.

–Ele não é nada meu, mas me considera como uma mãe e diz para todo mundo que sou a mãe que procura há muito tempo. Eu, apenas lhe dei guarida, um dia. Ajudei-o quando precisou e foi ficando aqui, num apartamentinho que tenho para alugar. Sabe, doutor, ele tem a cabeça fraca, não é muito inteligente. Mas para mim, todos são iguais, por isso, eu o considero muito. Não quero que sofra por causa daquela desmiolada!

– Sinto muito, Rosa, não posso ajudá-la neste sentido. Não posso fazer nada. E depois, se acharem o verdadeiro culpado, ele será isento de tudo, se for realmente inocente.

– Não, vão fazer tudo para colocá-lo na prisão, tenho certeza!

– Mas afinal, por que motivo? Quem está mais enrascado, na minha opinião, é o médico. A menos, que existam outros fatos que eu desconheça.

– Não, não há nada. Só posso dizer que ele é inocente.

– Pois se ele é inocente, não tem por que se preocupar, precisa só responder algumas perguntas, como por exemplo, onde ele estava no dia da morte da moça.

– Isso, o senhor terá que perguntar pra ele. Eu não posso lhe dizer nada.

– E ele foi fazer o que na Capital?

– Ele foi lá buscar uns documentos. Foi assaltado certa vez na capital e agora os documentos foram encontrados.

– E quanto a você?

– Quanto a mim? O que quer dizer? Eu não tenho nada a ver com esta história.

– A mesma pergunta clássica: onde estava no dia do crime?

– Eu não sei. Como vou me lembrar? Nem sei o que comi no jantar ontem! Mas o senhor devia pesquisar o tal médico, porque o carro conversível dele estava parado por lá, bem na outra margem do rio, próximo à ponte. Já soube disso?

– E como você soube? Rosa, já percebeu que de repente, passou a incriminar o médico sobre um crime que você nem estava interessada? Parece que este rapaz é odiado nesta cidade, porque é culpado de tudo.

– Não sei, ouvi falar. Todo mundo fala tudo nesta cidade, lembra? Eu não tenho nada contra o médico, nem contra ninguém. Como lhe disse, estou assustada.

– Em todo caso, é bom você tentar lembrar o que fazia naquele dia, porque você demonstrou que odiava esta moça.

– O senhor não vai querer me acusar, detetive?

– Eu não acuso ninguém, Rosa. Procuro provas, só isso.

– Bem, acho que nosso assunto se esgotou. O senhor em vez de tentar me ajudar, acabou me acusando.

– Como lhe disse, não acuso ninguém. Mas há de convir que a sua reação foi muito estranha. Defendeu este rapaz, o tal mecânico com unhas e dentes, como se eu estivesse acusando-o de alguma coisa.

– Eu já lhe disse, doutor, estou muito nervosa e Paulo é uma pessoa muito boa, não merece que o acusem. Sei que mais cedo ou mais tarde, vão fazer alguma maldade contra ele, só porque ele andou com esta moça. Mas tenho certeza de que tem muito mais gente envolvida.

– Isso nós vamos descobrir!

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

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