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terça-feira, maio 02, 2023

Trajetórias

Para ir à escola, eu devia pegar três ruas, a Av. Pelotas, a João Manoel e seu seguimento, a Dr. Nascimento. No meio de tudo isso, ficava a Praça Saraiva, que era parte de minha rotina, a qual fazia questão de atravessar. Nela, os sentimentos sempre despertavam de algum modo, geralmente sensações conhecidas das manhãs outonais ou das longas tardes de inverno. Na verdade, gostava daquela sensação de frescor, mesmo em manhãs frias, dos assobios incessantes dos bem-te-vis, que se misturavam nas folhas dos imensos eucaliptos e de outros pássaros, dos quais desconhecia o nome, do sereno que ainda restava na grama, até às 7 e meia, mais ou menos, os caminhos de areia e saibro vermelho. Era um mundo especial, o meu mundo matutino na ida à escola.

O São Francisco ficava logo ali, indo pela Nascimento, mas me parecia tão longe! Antes, devia ir pela João Manoel até o canalete. Lembro das calçadas irregulares, do silêncio da rua que parecia não morar ninguém, do sol que despontava meio longe, através das árvores ralas que contornavam os canteiros. Depois, na Nascimento, já conhecia algumas casas que faziam parte de minha rotina. Uma casa pequena, com um jardim acanhado, à esquerda de minha trajetória, onde sempre encontrava um senhor que transitava por ali, ora em direção ao centro, ora ficava apenas parado, observando a paisagem. Não tinha certeza se já me conhecia, mas tinha essa impressão. No outro lado da rua, uma casa enorme, com jardins imensos e muitas árvores. Às vezes, imaginava-a como uma fortaleza, guardando uma imensa biblioteca, outras vezes, achava apenas que estava abandonada. Coisas de minha cabeça.

Prosseguia o caminho com a pasta pesada, devido aos livros de cada disciplina e respectivos cadernos, além de lápis, caneta, régua, transferidor (alguém ainda usa?), esquadro, borracha, bloco sem pauta, etc., além dos gibis, que vez que outra, trocava com colegas. Sempre que atravessava o Canalete, naquelas pequenas travessas, sentia o frio vindo da lagoa, que parecia desembocar bem ali, na esquina que passava. Na volta, era como se o caminho fosse outro. O sol era mais forte, as ruas mais cheias, os carros rápidos na direção das casas, levando filhos da escola, voltando do trabalho no intervalo do almoço. O meu íntimo não era tão festivo como as ruas, embora fosse tão intenso quanto.

quinta-feira, setembro 28, 2017

Total desassossego

Quando a vida lhe parecia sorrir, sentia-se em total desassossego. Sampaio não era de se envolver nos problemas alheios, ainda bem, dizia consigo, já lhe bastavam os seus. Mas de uma hora para outra, passou a ter desejos estranhos, que não lhe cabiam em seu pensamento conservador. O que poderia lhe causar mal a melhoria no emprego, o galgar melhores condições de trabalho, inclusive de salário? Sei lá, o tal do desassossego, o temor de que alguma coisa lhe acontecesse, sempre vinha a cabresto. Trabalhava numa empresa de informática e seus conhecimentos na área nunca decepcionavam a chefia. Sua vida familiar era tão estável como água parada. Tinha mulher e filha que completavam um ciclo de ajustamento doméstico. Tudo muito certo, muito adequado, bem nos trilhos.

Sampaio também não saía da linha, como costumava dizer um dos colegas mais chegados, que lhe cabia na categoria de amigo. Com ele, fazia até confidências.

Mas Sampaio andava inquieto. Quando deixava o carro no estacionamento da empresa, alguma coisa lhe avisava, como um instinto, uma competência de quem profetiza que alguma coisa estava errada. E o pior, é que ele não conseguia decifrar o enigma. Talvez fossem aqueles pensamentos que não ousava deixá-los assumir voz. Ficavam na oculta, jaz em seu mais recôndito cuidado.

Entretanto, um dia sentiu-se mal, um aperto no peito, coisa normal para quem está muito tenso, diziam uns, coisa de quem sofre calado, diziam outros. Ele não dizia nada, mas aquela falta de ar sinalizava uma fronteira que avistava aos poucos e que o deixava paralisado. O pânico é o pior negócio, pensava ele. Se se deixar levar, vai para o fundo do poço ou da cova. Isso lhe dava arrepios. Foi aí que decidiu se abrir com o tal amigo, pediu-lhe um conselho.

O amigo, Chagas encarou-o intrigado. Sampaio não era de fazer perguntas, muito menos propo—rcionar qualquer aproximação a respeito de sua vida. Engoliu em seco e o ouviu, compenetrado.

– Sinto que estou com um problema grave e quero que você me ajude. Chagas, você sabe o quanto sou certinho na vida, ando em linha reta, não desvio um milímetro do meu caminho, mas agora, tem uma coisa que me incomoda.

O amigo olhou para os lados e percebeu que alguns colegas passeavam pelo escritório, dissimulados, fingindo que faziam uma coisa, mas faziam outra, isto é, queriam ouvir a conversa. Então sugeriu a Sampaio que saíssem e fossem ao bar.

– Não. Você está louco! Não posso! O bar vai ser a minha perdição.

– Como assim?

– Se você não me ouvir, como vou pedir a sua ajuda? Deixa pra lá, Chagas, você não vai me entender, mesmo. Vamos esquecer tudo o que falei.

– Espera aí, você não falou nada. Disse que anda em linha reta, isso todo mundo sabe. O que ninguém sabe é o que você queria me dizer, nem eu!

– Por que você quer saber, hem? Vai me ajudar?

Chagas deu de ombros. Claro que queria ajudar, apesar da inconfessável curiosidade que o amigo despertara. Então, pensou e retribuiu.

– Bom, se você não quer o bar, entao o problema está lá. Que foi, você ficou viciado em bebida?

– Se fosse isso, meu amigo, não era nada demais. Quero dizer, ainda tinha remédio.

– Mas então?

Sampaio pensou um pouco. Olhou para o amigo e viu o seu olhar iluminado, o que sinalizava grande curiosidade. Evitou falar alguma coisa que o comprometesse, mas teria que decidir se precisava de sua ajuda e sabia de antemão que sim. Então, pediu para irem a outro lugar, quem sabe numa biblioteca.

O amigo estranhou, afinal Sampaio não era dado a leituras. Aliás, nunca o tinha visto falar em livros ou visitar uma biblioteca. Sampaio insistiu, não ficava longe dali, talvez três quadras apenas e iriam conversando no caminho. Chagas, curioso como estava, aceitou de pronto o convite, embora bastante intrigado.

Na rua porém, a passos curtos, os dois não conversavam, ou melhor, Sampaio não abria o bico. Quando Chagas insistiu, ele advertiu que conversariam lá dentro, ali, na rua, havia muita gente, talvez até algum conhecido que os ouvissem e até os seguissem.

Andaram lado a lado em silêncio. Quando chegaram na biblioteca, escolheram uma mesa a um canto, um pouco afastada de outros leitores. Chagas, então perguntou, decidido a saber tudo de uma vez:

–E aí, me conta tudo.

–Não é bem assim, não é fácil, de uma hora para outra, me abrir com você, como se fosse num confessionário.

– Por que? O que há de tão grave?

– Um confessionário, não tinha pensado nisso. E se eu falasse com um padre? Ele me receitaria dez ave-marias, um pai-nosso e tudo estaria certo. Eu não teria por que me preocupar com que alguém soubesse e ainda seria absolvido.

– Porra, Sampaio, está surtando? Desembucha de uma vez! Sou seu amigo ou não sou?

Neste momento, um casal que estava numa mesa transversal a deles, voltou-se com a alteração da voz de Chagas. Sampaio respondeu com voz sumida:

– Claro que você é sim, por isso estou aqui. Mas fala baixo, isso é uma biblioteca.

– Está bem, eu vou me controlar. Mas fala de uma vez, o que está acontecendo com você. Tem uma doença grave?

– Antes fosse, antes eu tivesse seis meses de vida. Estaria aliviado.

– Então?

– Penso muito em minha mulher, na minha filha...

– Então o problema é com ela? Ela traiu você?

– Para falar a verdade, antes fosse. Eu preferia ser corno do que...

– Mas que porra está acontecendo com você? Não vai me dizer ...

– O que voce está pensando? Não, isso não.

– Você é gay?

– É o que pensou não é?

– Só posso pensar uma coisa destas! Você não tem uma doença grave, sua mulher não o traiu, o que quer que eu pense?

– Não pense. O que está acontecendo comigo, não é facil explicar, nem entender, nem assumir, nem acreditar! Se eu fosse gay, tinha saída, mas o problema é que não sou gay e não tenho saída!

– Não acredito que está dizendo que ser gay não seria um problema para você.

– Maior do que estou vivendo, não!

–Então fala, cara, pelo amor de Deus.

– Você sabe, além de minhas ideias mais à direita, sempre fui bastante conservador, bom marido, bom pai, um homem religioso.
¬

– Sei, um poço de virtudes!

– Por favor, Chagas, não zomba de mim, o caso é grave.

– Não estou zombando. Só espero que você abra o jogo.

– Eu estou começando a falar, veja bem que fiz um pequeno resumo de minha personalidade e minhas atitudes. Também sempre fui dedicado ao meu trabalho e muito disciplinado.

– Isso é verdade.

– Pois é, mas agora, depois de tanto tempo assistindo a mídia, vendo tanta informação desencontrada, assistindo versões estranhas sobre tudo, parece que contraí uma doença.

– Que doença?

–Uma coisa semelhante à direitice aguda, ou guinada à extrema direita ou medo da esquerda, não sei. Sonhei até com intervenção militar, com o Bolsonaro na Presidência!

– Que porra é essa Sampaio?

– Eu estou em pânico, Chagas. Tenho dúvidas sobre tudo e sobre todos. Todos os dias o castelo de cartas se desmancha e fico cada dia mais depressivo. Outro dia, cheguei em casa e minha mulher me contou que gastara muito na feira, que os produtos estavam caros, que o vizinho do apartamento 22 foi demitido, que não deu para encher o tanque de combustível e que o aluguel estava atrasado. Eu não acreditei nela!
¬

– Por que? Está tudo assim mesmo, pela hora da morte, como dizia o meu pai. Por que duvidou dela?

– Perguntei: deu na Globo? Ela não soube responder!

Chagas entendeu que o caso do amigo era grave, entretanto ousou ainda perguntar:

– Por que não quis ir ao bar?

Ele não respondeu, ainda estava inebriado pelos pensamentos anteriores. Por isso, prosseguiu, enfático:

– Eu não confio mais na minha mulher!

Chagas sorriu, satisfeito. Quem sabe havia cura. Então era isso, ele sabia que tinha coisa com mulher. Sampaio concluiu:
– Eu acho que ela virou comunista!

Em seguida, olhou para os lados, deu alguns passos, afastando-se da mesa e sentiu um arrepio ao ver uma bibliotecária que se aproximava com um broche que mais parecia uma estrela vermelha. Resmungou, atônito: Pensei que isso eu só via no bar!

quarta-feira, setembro 06, 2017

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder.

Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior.

Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundadas. O que parece assustador arrefece e se dissipa e a trajetória do mundo é bem mais intensa e menos problemática do que se pensa. Basta fazer-se escolhas.

De certo modo, aquelas certezas me incomodavam, talvez pelo desconhecimento da disciplina que revelava. Ela, no entanto, completou: cada um tem suas escolhas, mas devemos cultivar as que dão significado ao nosso tempo, aproveitando-o e produzindo mais prazer.

Então, repliquei que nem sempre podemos escolher o que nos interessa, ao que ela concluiu que nem tudo que amamos podemos priorizar, mas talvez dois ou três itens dos cinco que elegemos; deste modo, o tempo fica melhor dividido e muito mais afável.

Calei-me, em seguida fui embora, sem antes olhar para trás e me despedir. Percebi que ela estava encantada com um livro, provavelmente uma de suas escolhas.

Afastei-me e pensei que tinha razão, que deveríamos optar por alguns ítens de nossos sonhos, para redistribuir o tempo, de modo a experenciarmos a vida e não apenas passarmos como figurantes. Afinal, o cenário está pronto, não custa tentar.

sexta-feira, agosto 19, 2016

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas.

Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com minhas redações, meus cadernos e principalmente com as notas. Exigias o que por obrigação eu deveria obter: o máximo. Não ecomizavas nos números, muito menos na disciplina.

Por certo, estes caminhos que me fizesses trilhar com firmeza, me levaram a outra trajetória, bem distante dos teus olhos: a disciplina com que experenciei em minha vida e procurei transmitir a minha filha. Claro, acima de tudo, o amor. Este, mãe, nem precisava falar, né?

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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