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terça-feira, junho 06, 2023

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava das coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra frente, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.

Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.

João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Começava do final, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.

O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha dos ovos de ouro?

Não, segundo ele, era a mãe de João, aquele do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela, a mãe era a vilã.

— A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.

— É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.

— Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.

Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!

Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas. Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, de improviso, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas sete anos.

Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o avô insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos? A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?

Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!

João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:

— Então, aí, Vô, se você é meu parça, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.

— Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.

— E o senhor sabe responder?

O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.

— Ah, não sei Vô. Pode ser.

— Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?

João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.

— Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.

— Isso eu prometo! – Adiantou, sorrindo.

— Está bem, eu confio em você.

— Então me diga, vai responder a minha pergunta?

—Como você, vou fazer um esforço.

—Por quê?

— Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.

— Então, começa do princípio, Vô, sem enrolação.

— Como assim?

— Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?

—Depende.

—Depende de quê?

— Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você.— Abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.

— Quem é?

— Um menino, assim como você.

— Mas quem é?

— Sou eu.

João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô, então, confirmou, tranquilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.

Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.

— Esta é o senhor.

— Pois é. Este da foto sou eu mesmo. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?

— Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor. Parece de outro mundo!

— Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.

— Não tô entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?

— Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?

— Certo.

— Está vendo? Quem é esta?

— Não sei. É uma mulher.

— Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.

— Sua mãe é bonita, Vô.

— Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?

— Claro, Vô.

— Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.

João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.

– Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem tão pouco aquele homem um pouco mais jovem, que você afirma que sou eu, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.

Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.

— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.

E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.

— Mas Júlio morreu!

— Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.

O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.

João, porém, fez outra pergunta: – Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?

— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.

— O senhor lembra de alguma?

— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.

João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.

— Quem é esse?

— Júlio, meu amigo. Tava nessa rede social, viu? Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos, até eu to aqui! Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.

— E o que ele fez?

— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.

— E como se chamava a comunidade que ele criou?

— Vida. Mas aí, já é outra história.

O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Duas sensações jamais serão iguais

Às vezes, pensamos que podemos repetir o passado e viver aqueles momentos que julgamos felizes e únicos. Entretanto, nada pode ser revivido, nada volta. Não voltam os momentos felizes, nem quaisquer lembranças se tornam acontecimentos novamente.

O pensador Heráclito dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio, pois quando nele se entra, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Seguindo o raciocínio de Heráclito, podemos afirmar que ao mergulharmos na praia, jamais teremos as mesmas partículas de água, os mesmos movimentos, as mesmas marolas. Nem mesmo o ar, os ventos e o calor do sol serão os mesmos. É uma outra praia, um outro mar, um outro rio, um segundo depois de termos entrado. Quando se caminha na areia e retornamos no mesmo espaço, as pegadas nunca mais serão as mesmas. Nem as ondulações da areia, nem os grãos que mascaram os pés, nem o sol que as aquece. Nem os animais visíveis e invisíveis, nem a poeira que se estabelece a nossa passagem, nem a deformação produzida. Será outro momento, outro viver.

Quando a chuva cai inesperada num dia de verão e passamos pela rua, sentindo o cheiro da terra molhada e os pingos derramando-se pelos cabelos, escorrendo sobre os olhos, encharcando a camiseta; um pequeno mundo só nosso, ali acontece. Outrossim, voltemos pelo caminho escolhido, recebamos toda a água da chuva e esta jamais será a mesma. Nunca aquele momento se repete. Será sempre um novo momento. O mundo não se repete, mesmo que os pensamentos regridam, até mesmo estes, terão outros insights que denotam novas formas de contemplar aqueles mesmos contornos retrógrados. Por isso, usamos a palavra neo, um elemento de composição, que significa novo, uma nova maneira de ver.

Por outro lado, não se pode afirmar que aquela pegada na areia anterior foi melhor do que a segunda, porque elas têm elementos diferentes para se construírem e vai depender de quem as produziu. Quem sabe, o segundo momento foi o melhor para determinado grupo ou pior para outro? Dependerá exclusivamente da sensação de cada um. Não há um padrão, não há uma lei imperativa que decida o que foi melhor, se a pegada do passado ou do presente. Aqueles movimentos nas águas, o mergulho no rio, o sentir a água gelada contornando nosso corpo, transformando-o para aceitar o frio e se tornar viável, a ponto de não mais sentirmos o frio e apenas o prazer que inunda nossos sentidos. Há quem se apodere desses sentimentos de prazer e há os que se afastam, não percebendo a presença da água, da mesma maneira. E estes, podem apreciar melhor as águas do presente, não daquele momento. Até porque, são outras águas, outros sentidos, outras percepções. Como dizia Heráclito, nem mesmo o rio, será o mesmo. Ele terá outro destino, outras águas, outras espécies que não se manifestarão naquela circunstância.

Melhor então, que tenhamos os sentidos apenas com o despertar da alma, com o eleger o instante, sem comparações, sem pensar que o somente o passado era exemplar, porque os instantes e seus fatos e até as suas lembranças, jamais serão os mesmos. Ficam em nossa memória as lembranças boas, que não impedem de vivermos outros momentos, embora parecidos, pois eles serão sempre distintos. Mas que os lembremos, no futuro, com o mesmo amor e cuidado, como fazemos com os antigos.

terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

sábado, julho 01, 2017

Havia flores em Lisboa

Havia flores nas janelas e outras que se acomodavam em espaços menores, juntando seus galhos e pétalas e espécies diferentes e inúmeros brotos que surgiam à luz primeira da manhã.

Eram rosas, jasmins, gerânios e se estendiam pelas janelas, pelos pequenos canteiros, pelas intersecções das ruas, pelas rótulas, pelos caminhos, pelos passeios.

Eram lindas as flores e alvissareiro o dia que mergulhava mais e mais nas horas da manhã que aos poucos se adiantava.

Foi ali, que parei um momento, sentado num banco verde, observando as construções antigas ao longe, as igrejas seculares, as ruas estreitas e o rio que se desenhava ao fundo. Não poderia ser diferente. Acomodar-me naquele ambiente valorizado pela natureza cultivada, era reviver um pouco das memórias ocultas que se restabeleciam com a beleza.

Memórias de um passado que esquecemos, mas que ressurge quando invocados pelo sentimento.

Talvez devesse ficar ali todo o dia, se outros compromissos não me absorvessem, não me chamassem para a realidade árdua que nos atinge como sinos simbolizando a chegada ou partida.

Sinos que vem e que vão, trazendo consigo lembranças, exigindo chegadas e acenos ou levando consigo esperanças e procuras a outros ninhos.

Mas, de todo modo, ficar ali, observando as pessoas, as crianças, os jovens e idosos, o refluir da diversidade da natureza era pintar um quadro na memória e usufruir dessa júbilo para jamais esquecer.

Assim deve ser a realidade, norteada pelo sonho e pela esperança. Acrescentada à beleza das flores, dos pássaros, dos sons das crianças e dos afazeres dos homens. Tudo junto eleva a beleza da vida.

Partilhar essa realidade é experenciar a vida com o vigor dos que amam e absorvem a beleza do momento.

Linda Lisboa!

sábado, junho 03, 2017

Recuerdos

Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão.

Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo.

Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada.

Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza.

Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora.

Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava.

Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há tanto esquecidos.

Tão importante ainda é em minha vida, que passei a sonhar novamente.

E bastou uma mão amiga para guardá-lo com cuidado, para protegê-lo das intempéries e do esquecimento.

Tão frágil tem sido e tão forte o conhecera.

Punha nele as esperanças, meus desejos mais íntimos, vontades secretas, liberdade indefinida.

Cultivara consigo os melhores sonhos, alimentara sua fome de sentimentos, fertilizara suas raízes com o adubo forte da paixão, do desejo de extrapolar as ideias, expressar os pensamentos e revelar intenções.

Assim, portanto, fui alicerçando seu tronco, deixando-o robusto e poderoso.

Mesmo que vissem nele apenas um rascunho, um amontoado de primícias que não dariam em nada.

Apesar de tudo, imprimia nele toda a energia em seu coração aberto, seu cérebro em branco, à espera do sonho, da inteligência, da verdade, da ficção, da realidade, da vida.

Então regava com carinho suas primitivas folhas, assim verdes, enroladas uma na outra, agarrando-se à seiva que brotava.

Acariciava com cuidado seus brotos, examinava-lhe os fungos, os parasitas, os incrédulos de suas tramas, os irônicos e suas dúvidas.

Na verdade, estava sempre ao meu lado. Nunca relegava qualquer trabalho mais afoito ou incisivo.

Era meu companheiro de caminhada, de solidão, de infortúnio, dor, alegria ou paixão.

Amava-o em sua parceria constante, sua presença quieta, atenta e ouvinte.

Quantas vezes, nele derramara lágrimas, maculando seu semblante, integrando-as em suas entranhas, dilacerando suas fibras, apagando seus traços.

Também sorrira comigo, acompanhando-me em noites brilhantes, nas quais a alegria cantava por cantos desconhecidos, embrenhando-se em frestas jamais ousadas, espiando em fechaduras há tanto tempo cerradas.

Ao seu lado, abria todas as portas, todas as passagens, todas as janelas, anunciando brisas matreiras que se enroscavam em meus cabelos, boca e olhos circundados de estranha ironia.

Uma ironia boa, faceira, de quem desconhece o mundo, mas descobre seus caminhos e palmilha febril as vielas amplas e ensolaradas dos dias felizes.

Era assim, meu companheiro fiel, Sancho Pança folgazão e matreiro, acostumado a buscar o mundo sem qualquer envolvimento mais sério.

Apoiava-me nele, para arregimentar meus sonhos. Um suporte onde as ilusões quase se transformavam em realidade.

Mas com o passar do tempo, o abandonara a sua própria sorte. Sentia piedade, mas não me acostumara a viver daquele modo iludido, achando que ainda acreditariam nele, como se carregasse consigo a verdade suprema.

Bobo! A verdade era outra: palpável, cruel, única.

Um só caminho, um só jeito padronizado de viver no senso comum, uma moral estrita e una.

Um povo que caminha em uníssono, fingindo-se iguais.

Amando igual, pensando igual, comendo igual, sofrendo igual.

Afastei-me dele para sempre.

Vez que outra, lembrava de seu jeito folgazão, companheiro e amigo. Mas só vez que outra.

Logo esquecia e mergulhava no poderio do mercado, nas contas a pagar, na sobrevivência comezinha, no salve-se quem puder, na noite sem mistérios, no amor comprado, na dor do dia a dia. Apenas um sonho enterrado. Uma morte rasteira, rasa, sem cova; adormecido no mundo dos iguais.

Até que a mão amiga guardou-o com carinho, acalentou seus sonhos lá escondidos no fundo da gaveta, na última gota do varal, no desencadear das nuvens abstratas no céu. Assim, deitada na relva, descobrindo figuras, carneiros que voam, luas que se afastam, foguetes que somem no cosmo. Ah, aquela cauda brilhante dos cometas. Aquele pisca-pisca incessante dos pirilampos na noite escura. Aquele ar gelado, que estremece a espinha e arrepia os pelos dos braços, revelando as cores da infâncias, tão próximas e reais.

Não deixou que secassem as lágrimas que mancharam sua face, seu corpo inteiro, nem que amarelassem a sua fisionomia.

Nem que desatasse de vez os braços desmembrados do corpo, as mãos soltas e disformes.

Ao contrário, colou-as com cuidado no gesso agregador da recordação, da amizade, das lembranças doces de tempos já idos.

Ajeitou seu corpinho frágil, guardou-o com cuidado em trajes bem confortáveis e o enviou de presente.

Um presente que já era seu e que compartilhou tantos anos com o amigo.

Por isso, essa mão amiga e carinhosa o devolveu, pesarosa, mas feliz, pois temia que se não o fizesse, nunca mais o veria interpretar o mundo daquele forma dissonante do senso comum, do padronizado, do tudo igual.

Melhor mandá-lo de volta assim, embrulhado, com carinho, tendo o cuidado de não machucá-lo, como uma lembrança revivida que tomou corpo.

Chegou-me deste modo, pelo correio. Arrumadinho, sem disfarces, sem máscaras, revelando um passado que pode ser o presente renovado.

Aqui está ele, em minhas mãos.

Na testa, está escrito “ Meu Companheiro”.

Como antigamente.

Um retorno que identifica um rótulo novo, novas idéias e comportamentos. Sonhos renovados e garantidos. Sonhos tentados. Por fazer.

Assim chegou às mãos, o velho caderno.

Prenhe das velhas histórias, dos velhos textos com seus personagens e seus tramas, seu desejo ousado de observar e ser observado.

Trouxe-me a validação da escrita, não na alegoria infantil, mas com a verdade madura de meu coração, se é que se pode amadurecer nos sonhos.

Verdade é que está aqui, ao meu lado, modelo de dias de verão, companheiro de jornadas, de dor e alegria. De lágrimas imergindo-se em suas fibras, mexendo com a estrutura, esmaecendo as cores, misturando as tintas.

Está aqui, como um troféu, um farol iluminando o mar escuro, servindo de bússola a novos devaneios.

Observo-lhe as páginas amarelecidas, rabiscadas com letra infantil, mas não o abandono jamais.

Fiel escudeiro nas novas investidas.

Assim, velho caderno, cujo nome “Companheiro” me reporta à infância, deixa-me caminhar ao teu lado e embalar o sonho que ainda me absorve.

(Recebi de volta de uma amiga e de um amigo, alguns cadernos em que escrevia, quando adolescente. Cadernos estes guardados com carinho para algum dia serem devolvidos. E o foram. Ângela Puccinelli e Francisco Javier Garcia, o Paquito, meus colegas de escola, amigos de caminhada, que a vida de alguma forma nos separou, lembraram-se de mim, por tanto tempo. Meus reais companheiros.)

sábado, setembro 24, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 5

No quarto capítulo, Santa reúne a família para fazer uma proposta que se relaciona à missão que acredita possuir, a partir da visão da Virgem. Estão presentes a filha Letícia, que é promotora e seu marido Ricardo, que fica se perguntando qual seria o motivo da reunião. Por acaso a sogra leria o testamento? Também estava presente o filho que é um artista midiático, Tavinho. Por fim, chegara Alfredo, o terceiro filho, que se atrasara e segundo os demais está sempre ocupado com sua empresa. Linda, a empregada de vários anos, recebe a todos com carinho. O marido Sandoval não se furtou em contar, com discrição à Letícia, sobre a sua preocupação com a esposa. Dissera que ela tinha tido uma visão de Nossa Senhora e estava cada dia mais estranha.

A seguir o 5º capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é sábado, um dos dias de publicação. Os capítulos são publicados nas terças-feiras e nos sábados. Boa diversão!

Capítulo 5

Todos pareciam pouco à vontade na biblioteca.

Alfredo passeou os olhos pelas estantes de madeira, repletas de todo o tipo de livro, sem sequer serem organizados sob qualquer ordem e lembrou do avô. Quantas vezes vinha até ali, ao seu lado, examinar as figuras dos atlas, escolher um livro infantil ou deparar-se com uma enciclopédia para os trabalhos da escola.

Ao seu lado, estava sempre a figura plácida e companheira do avô, servindo-lhe de guia naquela mina do tesouro. Recorda-o silencioso, ouvindo suas histórias, um mundo enriquecendo a imaginação.

Quantas vezes o vira agitado, entre jornais, procurando matérias que indicavam algum acontecimento político da época, que via de regra, o deixava de cabelo em pé. Era um homem apaixonado e tentava incutir nele toda a expectativa, a esperança no futuro e o otimismo que carregava consigo.

Alfredo possuía um carinho especial pelo avô, talvez muito mais do que pelos demais membros da família. Infelizmente, seu legado não surtira muitos efeitos. Não era um homem cheio de vida e esperança como ele. Não era um ser social, voltado para os prazeres das conversas prolongadas nas noites de verão.

Não, tinha se tornado um homem do frio, do inverno, da solidão de um quarto de apartamento.

Agora estava ali, entre aquelas prateleiras abarrotadas de livros e pastas com documentos e tinha a sensação que um pouquinho do avô ficara ali também. Estava assim, absorto, quando a mãe iniciou o que passou a ser a tal reunião.

Tavinho estava encostado numa das poltronas de couro, meio estirado, talvez mais preocupado com a sua dissertação, sua vida lá fora, seus compromissos bem mais gratificantes.

Ricardo e Letícia sentaram-se lado a lado, nas poltronas que ficavam em frente da imensa mesa de mogno, coberta de vidro.

Sandoval mostrava-se inquieto, não parando em lugar nenhum, a não ser vez por outra, estabelecer-se no parapeito da janela que desembocava numa área fechada, uma espécie de jardim de inverno. Ao ouvir a voz de Santa, fez um pequeno reparo: — Santa, desculpe interromper. Gostaria que evitasse falar na bússola. No momento, é um dado supérfluo.

— Talvez você tenha razão, Sandoval. Não se preocupe, tudo a seu tempo.

— Mamãe, não acha que está muito solene?

— O momento exige, ou melhor, a situação assim exige, Letícia. Mas serei apenas o suficiente, nada que vá tornar esta reunião demasiado enfadonha.

— Assim, espero – resmunga Ricardo, em seguida, se desculpando.

Tavinho insiste, com um meio sorriso, para não desagradar a mãe: — Vamos começar, então?

—Estou pronta para começar, meus queridos, mas o grupo ainda não está completo.

— De que a senhora está falando? A família está toda reunida. A quem você se refere, mamãe? – Letícia revela impaciência.

Santa, ao contrário, não muda o tom de voz, nem mesmo se embaraça com alguma pergunta mais incisiva. Parece ter tomado o rumo ideal, palmilhado a trajetória que faz sentido a sua vida.

— Por favor, Sandoval, esclareça aos nossos filhos.

— E genro, dona Santa. Não se esqueça de mim – adverte Ricardo, tentando brincar.

— Absolutamente, meu filho. Você é como um dos nossos filhos – e dirigindo-se ao marido, repete o pedido para que esclareça a observação anterior.

Sandoval, por sua vez, revela-se mais inseguro. Afasta-se da janela e aproxima-se da poltrona onde Santa está acomodada, atrás da mesa. Ainda em pé, explica: — Bem, quando sua mãe pediu para conversarmos, ela me convenceu a … Bem, vocês logo saberão, ela achou por bem convidar o bispo Martim para esta reunião.

— Mas por quê? Não faz sentido.

Ao ouvir a observação de Letícia, Alfredo a examina como se não a reconhecesse. Tamborila os dedos nos braços da poltrona e volta a olhar em torno, como quem procura uma resposta para tudo. Talvez, pense em seus próprios problemas. Sua mente anda por paragens bem mais longínquas.

— Sua mãe explicará o motivo do convite mais tarde, Letícia. Tenha paciência, por favor. – e voltando-se para Linda, acrescenta – Há ainda outra pessoa. Linda.

— Era só o que me faltava, mamãe. Até os criados fazem parte da nossa família agora! O que Linda tem a ver com tudo isso?

Ricardo acompanha intrigado o desabafo da mulher. Astucioso, estica o braço até Alfredo, para alertá-lo, perguntando com exagerada preocupação: — Será que sua mãe está bem da cabeça? Não me leve a mal, Alfredo, mas não é normal convidar a empregada e o bispo para uma reunião familiar. Convenhamos!

— Linda é quase da família, Ricardo. E para minha mãe, o bispo também, afinal, ela vive praticamente mais na igreja do que em casa.

— Mas é um absurdo!

Tavinho chama a atenção dos dois, irritado, partindo na defesa da mãe.

— Por que vocês estão discutindo? Nem sabem o teor da conversa, o que ela quer com a gente. Não sei porque você está tão preocupado com esta reunião, Ricardo, você não dá a mínima para nada que diga respeito a nossa família. E você, Alfredo, vive enfurnado em si mesmo, parece que vive só de lembranças!

Antes que a discussão tome proporções desagradáveis, Sandoval aproxima-se dos filhos e pede paciência. Chega ainda a tempo de impedir que Letícia tome partido do marido. Logo em seguida, Santa o chama e ele se desdobra em mostrar-se à vontade, coisa que está longe de sentir.

Santa pede que ele chame os demais convidados que estavam aguardando na sala contígua.

O bispo entra na biblioteca com um sorriso de porcelana, cumprimentando a todos com leves acenos de cabeça e uma certa solicitude que desagrada Tavinho. Acomoda-se imediatamente na poltrona indicada por Santa, que o conduz pessoalmente.

Linda estaca na porta, se desculpando por ter sido chamada. Tenta explicar que veio a pedido da patroa, mas Alfredo a impede, levantando-se e tal como fizera a mãe em relação ao bispo, a conduz para uma cadeira próxima à janela.

Ela estremece ao atravessar a sala, a qual não costuma entrar a não ser para organizar alguma faxina. Senta-se rapidamente, acomodando as mãos nos joelhos, como se quisesse dispersar o foco da atenção que sua presença despertava.

Santa examina a todos, como se pretendesse fixar para a eternidade a reação pessoal de cada um. Seus olhos revelam uma luminosidade estranha, talvez um misto de curiosidade e emoção.

— Bem, não é segredo para ninguém que um fato importante, um acontecimento muito tocante aconteceu comigo, nesta casa. Um fato que confidenciei apenas à Linda, e este é um dos motivos pelos quais ela está aqui. Este acontecimento mudou a minha vida e por consequência, mudará a vida de todos nesta casa. Sr. Bispo, meu marido, meus filhos e meu genro, eu quero afirmar para vocês que eu tive a graça de ver a imagem de Nossa Senhora. A visão material da Virgem na minha casa!

Houve um breve silêncio. Em seguida, todos falaram em uníssono, sem se importarem com a dona da casa ou com boas maneiras.

Até mesmo o bispo confidenciava a Sandoval sobre o fato, exercendo uma espécie de argumentação da qual não se sabia se concordava ou não.

Letícia esbravejava, estabanada, dirigindo-se à mãe, pretendo uma explicação convincente. Afinal, por que a Virgem a visitaria, somente a ela e com que objetivo.

Tavinho levantou-se da poltrona e se juntou ao cunhado e ao irmão, agora, unidos de forma definitiva, achando que tudo não passava de uma insanidade de Santa.

Sandoval perturbava-se ante os argumentos do bispo e o pedido de silêncio ao filhos.

Linda não se afastou da cadeira, ao contrário, baixava a cabeça em absoluto desânimo. Se alguém a observasse naquele momento, veria uma lágrima correr-lhe pela face.

Neste momento, Santa munida de extrema energia, gritou abafando todos os ruídos de uma única vez, pedindo silêncio. energia Surpresos pelo grito da mulher, todos pararam, mas logo continuaram o burburinho que imediatamente se transformaria em gritaria, não fosse ela impedir-lhes novamente, com uma batida na mesa com força. Seu olhar os atingia com grande vivacidade, tal a complexidade de sentimentos que a tomavam. Parecia uma leoa rugindo num ato de desespero.

Todos voltaram-se para Santa. Letícia respirou fundo e começou com um “mamãe”, imediatamente interrompido.

— Por favor, Letícia, não fale nada. Não fale nada – e se dirigindo-se aos demais – não digam nada, nenhum de vocês. Só me ouçam. Eu sei que é difícil de acreditar, mas eu posso provar.

Alfredo conciliador, perguntou, quase numa mensagem de súplica: — Como pode provar, mamãe?

Ela pede que sentem-se nos seus lugares. Precisam discutir o assunto sem grande exaltação, sem delírios. Devem ter paciência.

O bispo é o primeiro a obedecer, sentando-se na posição estratégica em que se encontrava. De certa forma, podia observar a impressão dos presentes e os pequenos comentários que faziam um com o outro. Juntou as mãos ao colo, cruzando os dedos como se estivesse em posição de oração e assegurou à anfitriã que a ouviria com toda a atenção e paciência.

Santa agradeceu e quando todos estavam em seus lugares, ela prosseguiu, entusiasmada: — Vou colocar a bússola sobre a mesa. Como vocês devem se lembrar, ela era um objeto que funcionava muito bem, com a orientação da agulha sempre voltando-se para o norte, como ocorre com qualquer uma.

Letícia não se conteve e interrompeu: — E o que isso prova, mamãe?

— Bem, peço que analisem o objeto. A bússola está com a agulha trancada. Nunca mais se mexeu desde que Nossa Senhora indicou o meu norte.

Ricardo levantou-se, curioso. Examinou o objeto, enquanto os demais se empurravam para se aproximarem da mesa. Afirmou, sem nenhum pudor: — Não prova nada, dona Santa. Desculpe, mas a engrenagem pode ter falhado em qualquer momento.

Sandoval saiu em defesa da mulher, mas fez uma ressalva, incomodado por ela ter-se antecipado aos acontecimentos. Falou num tom mais baixo, mas na verdade, todos ouviram o recado.

— Eu lhe disse que deixasse a bússola para depois. Não era o momento.

Ela não respondeu. Dirigiu-se ao bispo, esperançosa: — O que o senhor me diz, Eminência? É uma prova ou não é?

— Há coisas que não se pode afirmar assim, de supetão, dona Santa. Claro que credito todos os meus votos na sua integridade, na sua verdade. Mas acho também, que a sua palavra é muito mais importante do que a bússola. Se Nossa Senhora apareceu em sua casa, não há nada, não há bússola que possa derrubar esta sua convicção. Ao meu ver, a senhora é uma mulher que está em estado de graça!

— Claro, ele tem interesse financeiro nesta verdade – resmunga Letícia, sem importar-se com o olhar severo da mãe. Esta, reinicia o assunto, tentando esclarecer melhor a situação.

— Não me interessa a desconfiança, a dúvida. Eu estou convicta e basta. A Virgem apontou para o norte, sendo assim, eu avaliei a sua proposta.

— Meu Deus, ela fala como se fosse real! Você vai permitir que este absurdo vá em frente, Letícia? Eu sou apenas o genro, mas você é a filha!

— Espere, Ricardo. Vamos ver onde ela vai chegar.

— Que bom, minha filha que você é compreensiva. Eu serei bastante clara nas minhas observações. O norte que a Virgem apontou fica na ilha isolacionista, onde convive um povo estranho, como vocês sabem. Uns adeptos ao monarquismo. Uma comunidade que não precisa, que não quer o meu dinheiro.

— Menos mal – dispara Letícia, ainda tentando descobrir o sentido das palavras da mãe.

Santa finge não ouvi-la e prossegue tranquila: — Pois bem, a minha intenção é usar a minha fortuna na catequese dessas pessoas, na tentativa de mudar-lhes o pensamento, na integração com as comunidades pobres que circundam a região e mostrar-lhes o real mandamento do Senhor.

— Desculpe, mamãe, mas a senhora acha que conseguiria isso com aquele tipo de gente? Se eles não ligam para nada, vão se importar com religião, com catequese? É uma medida meio infantil, sem ofendê-la... – argumenta Alfredo.

—Não se incomode com isso, Alfredo. Há muita coisa a fazer por lá e eu não estarei sozinha, estarei com ela. Mas a Virgem me deu outra proposta e me esclareceu que eu precisava mudar o comportamento dos meus, para poder fazer alguma coisa fora de minha família.

— Como assim, mamãe?

— Muito simples: Vocês precisam mudar o seu comportamento. Ou cada um muda o que desagrada aos olhos de Deus, ou eu assumo a comunidade, passo os meus bens para as comunidades pobres, tento fazer uma mudança na ilha isolacionista.

— Quer dizer que não é uma proposta, mamãe, é uma chantagem.

— Por favor, Letícia, veja como fala com sua mãe – repreende, Sandoval.

— Papai, está muito claro. Ou ela toma conta desta comunidade de malucos ou seja lá o que for, ou nós mudamos o nosso comportamento. Que idiotice é esta?

— Você está absolutamente certa, Letícia – conclui o marido, irônico.

— Cada um de vocês receberá um pequeno envelope onde estarão as medidas que devem tomar para a eventual mudança. Alfredo, Tavinho, você Letícia, Ricardo, Sandoval, Linda e o próprio bispo Martim. Vocês terão seis meses para me provar que realmente mudaram. Se neste período de tempo, eu perceber que um de vocês continua da mesma forma, tudo cairá por terra e eu sairei desta casa para sempre, para viver entre os pobres, os que não aceitam a palavra, ou até mesmo naquele povo estranho que comentamos, afinal, a Virgem apontou para lá. Algum mistério se encontra ali.

O burburinho foi aumentando rapidamente, para se transformar numa balbúrdia geral.

Todos se perguntavam o que teriam que mudar em si próprios, talvez aspectos que nem percebessem ou que evitassem confrontar em suas mentes.

As cartas estavam na mesa e a situação, embora absurda, reunia todos num único objetivo: dissuadir Santa da loucura que estava propondo. Sabiam de antemão que não seria uma empreitada fácil e que ela não parecia disposta a abrir mão de suas convicções.

De repente, um a um foi se afastando do grupo e taciturnos perguntavam a si mesmos, o que estava realmente acontecendo.

Santa pediu a Linda que entregasse os envelopes a cada um dos presentes, com o respectivo nome.

quinta-feira, junho 04, 2015

Registros

Não sou de guardar muitas coisas. Um texto aqui, um chaveiro ali, uma fotografia lá. Há coisas que não se guarda, na verdade, se resguarda do extravio. Há outras que nos parecem uma espécie de registro, uma lembrança de um acontecimento importante em nossas vidas, uma informação do passado, uma memória. Guardo alguns recortes que nunca leio. Fotografias que dificilmente olho. Guardo textos antigos que jamais analiso. Um coisa, tenho certeza, guardo sim e com prazer: cartões do dia dos pais e outros homenageando a minha profissão dados por minha filha, afilhados e sobrinhos. Estes, de vez enquanto, espio agradecido. Observo as letrinhas desenhadas, o jeito despojado de oferecer carinho e mais do que tudo, a espontaneidade do momento. É muito bom. Outras lembranças burocráticas, nem tanto. Em todo caso, há que se guardar. Guardar é esperar que algum dia, se utilize dessas pequenas relíquias para compor uma memória organizada, quem sabe? Uma coisa, tenho certeza, as lembranças de encontros, de apertos de mãos, de despedidas, de afagos, esses sim, são sempre bem registrados e a todo momento, vem na lembrança com a euforia que lhes é peculiar ou a saudade que os constitui. Lembranças boas ou más sempre estão conosco. É preciso burilá-las e deixar que venham ao lume as que nos transmitem paz. Coisas de bibliotecário.

domingo, julho 12, 2009

HIATO E PONTOS DE VISTA



Nem sempre o olhar mais profundo sobre as coisas que nos cercam é o racional e objetivo. Na maioria das vezes, é preciso ressaltar o sentimento, mesmo obtuso, mesmo dilacerado, mesmo engendrado em nuvens longínquas e escuras que toldam a alma e o pensamento, pois através destas lembranças ou idéias inusitadas, surge o verdadeiro esqueleto da realidade. Uma realidade não tão idealizada ou limpida ou verdadeira, uma realidade onde a ficção e a poesia se escondem em meandros tão obscuros que se torna difícil decifrá-la. Entretanto, para o autor é necessário se utilizar das lembranças, da infância, dos ditos populares, da imaginação para representar esta realidade e este desejo infinito do homem de ser feliz. Através dos contos e crônicas do livro Hiatos e pontos de vista" (que está na rede), procuro exercer esta faculdade da imaginação e das lembranças, tentando efetivar um olhar curioso e inquisidor, às vezes infantil, às vezes maduro, às vezes alucinado, mas sempre voltado para a condição humana. Talvez viver seja isto, vivenciar o que de bom e nefasto o homem adquire e repassa através de suas trajetórias perturbadas ou não. São contos e crônicas onde o amor e a busca da verdade prevalecem. Basta olharmos com olhos amorosos o outro ou a nós mesmos. Recordações que todos tivemos um dia. Ou vamos ter.

domingo, novembro 23, 2008

A MÃE NA JANELA


A mãe na janela
Tantas vezes a vi, assim, debruçada sobre a mesa, esticando, alisando com as mãos cuidadosas, alentadas de carinho e cautela, no fazer simples, mas imprescindível do passar o friso, transformar em plano o tecido rugoso, amarfanhado, atirado no cesto de roupas. Tantas vezes, a vi na costura, dobrando as costas no espaldar incômodo da cadeira, puxando sob a agulha, o pano, com a mão diligente, moldando-o de acordo com a linha que se desenhava autoritária, inventando curvas, metamorfoseando o que não tinha forma, transformando em vestuário o que era só projeto.
Tantas vezes a vi, ainda perscrutando entre lentes emprestadas, o grau necessário para puxar o fio, manusear o dedal, criar a imagem em alto relevo, bordando o que era somente um risco imitando flores ou paisagens. Colorindo o que o sol se antecipava em dar-lhe cores e reflexos. Quem sabe os contemplasse, quando prontos e percebesse que sua criação devia muito à natureza, já que os punha sobre a mesa, ao alcance da janela, emoldurada pela luz.
Tantas vezes a vi, ali, sentada na poltrona colorida de pés de palito, paciente e atenciosa, mexendo os dedos ágeis, praticando-os como se dedilhassem ao piano, produzindo contornos com a linha, puxando daqui, enfiando ali, convertendo o que era apenas nós de linhas brancas ou coloridas em guarnições de crochê: verdadeiras malhas de flores, estrelas, arabescos, arranjos, construindo guardanapos, panos de prato, toalhas, centros de mesa.
Tantas vezes a vi cansada, voltando da fábrica, imaginando-se entre panelas e louças, vestindo a casa em ninho acolhedor, projetando caminhos, palmilhando esperanças que só ela via e sentia no coração acautelado.
Muitas vezes a vi sorrindo nas festas familiares, nos natais em família, no sorver o vinho com a alegria de quem comemora e nutre a paixão pelos momentos simples, em que a compreensão se ajusta ao presente, o amor transborda, a convivência enaltece e sensibiliza.
Muitas vezes a vi forte, austera, severa, enérgica, induzindo-nos à força e coragem, que julgava imponderáveis ao enfrentar desafios.
Algumas vezes a vi frágil, doída, sensibilizada. Por vezes, chorava de emoção. Noutras pela perda, pela falta contida, pela amizade fugidia, na despedida.
Muitas vezes, senti seu abraço, seu apoio, sua nobreza, seu carinho e percebi, de soslaio, quieto e feliz, seu orgulho por sermos seus filhos.
Breve para nós, partiu. Mas da mesma forma que nos deixou, perpetuou a lembrança de suas noites na janela a esperar, de sua voz vibrante a sorrir brejeira nas peças que nos pregava, no seu jeito pleno e singular de ensinar pela mágica o mistério da vida, de nos permitir viver assim, no exemplo do trabalho, do cuidado, do carinho, do zelo, da gratidão.
Por certo, estas lembranças nos acompanharão vida à fora, porque estás aqui, tão próxima, que quase te sentimos ao nosso lado, guiando-nos de algum modo que nem percebemos, mas a tua mensagem pousa tranqüila em nossos corações e mentes.
Muitas vezes te vi assim, mãe, porque assim te apresentavas.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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