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quarta-feira, março 21, 2018

Lascívia


Este conto é um desafio de uma oficina online,

sobre a elaboração

de um conto erótico com o protagonismo masculino.


Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa.

Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta.

Espiou pelo olho mágico e avistou uma cara disforme de fundo de colher. Abriu a porta e um homem alto, de barba e cabelo curto o observava com indisfarçada atenção. Seria alguém interessado na aula de pintura? Mas teve um sobressalto, quando o reconheceu. Era o mesmo do carro que o interpelara no dia anterior, quase cometendo um acidente. Fez um gesto rápido de fechar a porta, mas o outro o impediu com o pé.

O homem se desculpava por ter vindo até a sua casa e explicou de imediato, que soubera por um de seus alunos da aula de pintura. Disse, por fim, que procurava por uma pessoa.

Carlos tirou o celular do bolso e digitou um número. O outro ficou inquieto, pedindo que não chamasse a polícia, pois não era um criminoso. Só queria fazer algumas perguntas. Mostrou seus documentos e acrescentou que era um empresário do ramo do aço.

Carlos gritou, irritado:

― Porra, cara, não me interessa a tua vida, nem o que tu faz! Pra mim, isso é assédio à privacidade e perseguição. Não sei quais são os teus objetivos e vou chamar a polícia. Não te conheço, não tenho nenhum negócio contigo, portanto vaza!

Neste momento, o homem retirou o pé da porta e começou a chorar, em desespero. Em soluços, dizendo-se constrangido, pediu pelo amor de Deus, que o ouvisse. Ele só queria conversar, fazer algumas perguntas.

Carlos, intrigado, não sabia o que fazer. Um pouco desarmado, perguntou:

― Mas o que tu qué saber? É aula de pintura? Sabes o que faço aqui, tenho meia dúzia de estagiários e algumas mulheres bonitas. Elas ficam no meio entre os cavaletes, despidas, e cada pintor com a sua prancheta e suas tintas. Resumindo, é isso que fazemos. Não tem segredo. Agora, cara, disse tudo, pode ir embora.

― Eu tenho uma oferta a fazer. Deixe-me entrar, ver o local onde a aula acontece, conversar um pouco. Não leve a mal, mas a minha oferta é em dinheiro, eu pago por uma aula ou as do mês todo. Só quero que confie em mim e converse comigo. Olha os meus documentos, vê o meu celular, aqui estão todos os meus dados.

Carlos não quis ver os documentos. Coçou a cabeça, dividido. Um mês de aula, pensou. Bem que seria uma solução para algumas dívidas. Então, deu a cartada:

― Trezentos.

O outro sem piscar abriu a carteira e entregou três notas de cem reais. Carlos pegou o dinheiro, um tanto chateado consigo próprio. Mas que mal havia, se o homem mesmo fizera a proposta? Ele precisava de dinheiro, o outro queria pagar. Então que entrasse.

Ele entrou, deu alguns passos em direção a uma poltrona, a mesma em que Carlos estava anteriormente sentado, observando a rua pela vidraça. Olhou em torno e mostrou-se um pouco apreensivo. Perguntou se Carlos não queria olhar os documentos para se asseverar que ele era um homem de bem. Carlos, então leu o nome na identidade: Paulo Sorren Herrmann.

― Tu é bem conhecido. Teu nome sempre na mídia.

― Sim. Mas não vamos falar de mim, pelo menos neste aspecto empresarial, de homem bem sucedido, com família e filhos. Eu sou um homem que procuro muitas coisas, que não encontro na minha vida profissional e pessoal. Por isso, quase supliquei para entrar.

― Não entendi nada.

― Vou me explicar. Eu acho maravilhoso este ambiente, este cenário. Tudo aqui me dá uma atmosfera de sensualidade, de lascívia.

―Vou te dizer, que somos muito liberais na sexualidade, mas posso te garantir que sou hétero.

― Não te preocupa. Falei no ambiente apenas. É ele que me envolve, que me cerca, que me consome. Se me deixar ficar aqui, quando houver aula, eu posso pagar muito mais.

Carlos o olhava preocupado. Afastou-se um pouco e ofereceu uma cerveja.

― Não quero beber. Quero que você me fale tudo, me explique o que acontece e como acontece aqui.

― Eu resumi há pouco.

― Mas me fale mais, dê detalhes. – Dizendo isso, esticou as pernas parecendo mais relaxado.

Carlos foi até o quarto e trouxe um cigarro de maconha. Sentou-se num banco de couro e fumou lentamente. Ofereceu a ele, mas Paulo argumentou que nunca tinha usado.

― Tu é um burguês safado.

― Porque diz isso? Tu que te diz liberal e tem preconceito contra mim.

― Beleza. Tem razão.

Carlos fumava e enchia o ambiente de um aroma adocicado. O outro ficava cada vez mais à vontade. Levantou-se, caminhou pela sala e observou os cavaletes encostados na parede, os bancos altos de madeira, a banqueta de couro onde as modelos sentavam. Olhou para Carlos, que agora deixara o banco para sentar-se no chão, numa posição imitando a de lótus. Indagou:

― Não vai me contar tudo?

Carlos fungou e falou com a voz um tanto fanha, em virtude do fumo. Sorriu e perguntou se ele queria saber tudo.

― Sim, tudo.

― Então para de girar pela sala. Senta aí.

Começou a descrever a aula e Paulo tinha a impressão de que já estivera naquele local, que sabia tudo o que iria acontecer, mas gostava de ouvir, como se fosse a história das mil e uma noites. Uma história que se repetia, mas retomava um sabor diferente.

Por fim, repetiu o que ouvira:

― Então a modelo lindíssima senta-se na banqueta, no círculo, completamente nua. Homens e mulheres a ficam analisando entre os cavaletes, observam o seu corpo, o contorno dos seios, a saliência da barriga, o umbigo, a genitália e eles se excitam.

― Não, ninguém se excita. É um trabalho, cara, se orienta!

― Ah, não me diz que tu não fica de pau duro também.

― Claro que não, pelo menos, não de propósito. Pode acontecer, mas a gente se controla.

― Eu já estou excitado, imaginando tudo que me disseste.

― Não é legal, cara. Isso é só imaginação. Aqui não é para isso.

― Mas eu imagino sim, imagino os olhares enviesados, fingindo que estão desenhando ou pintando. Eles observam os detalhes e sentem tanto tesão que quase não resistem. Tanto eles, como elas. Quando um homem está lá, também observam a silhueta, a barriga, e deslizam com seus olhares por reentrâncias que mais se interessam, observam o pau caído, encolhido, o saco achatado no banco e se seduzem a si próprios.

Em seguida, suspira sôfrego e prossegue:

―Eu preciso participar de uma aula. Só vou encontrar aqui, o que nunca consegui no meu meio, tu entende?

―Aqui não é casa de prostituição, cara, deixa de ser vacilão. Por que tu não vai na zona ou contrata uma garota de programa.

― Assim, tu tá me ofendendo. Não podes acabar com a minha ilusão, com o meu sonho. Com prostituta, tudo é falso. Aqui é real.

― Não, nenhuma mulher ou homem, nenhum modelo vem pra se exibir com qualquer intenção sexual. Ninguém vem vender o corpo aqui. Isso é uma aula de arte, cara.

― Pois então, eu não quero comprar nada. Só a tua permissão. O gozo só é verdadeiro, quando é espontâneo. É isso que preciso.

― Mas o outro não sabe da tua intenção. Ele é um profissional.

― Pode saber. Eu posso me excitar com quem está ali no círculo e acabar gozando, entende. Pode ser um ou dois. Uma mulher e um homem. Sem eles saberem a princípio, mas depois, haverá uma reação subliminar que aos poucos vai nos comprometendo. Vai atingindo a todos, como uma orgia de sedução.

― Então tu é gay.

― Sou bi e só sinto prazer assim. Eu sonho com isso, Carlos. Por favor, deixa eu participar da aula de artes, eu quero o círculo, quero os olhos escondidos e comprometedores. Eu sei, que aos poucos, todos vão sentir a mesma paixão, o mesmo tesão. Basta haver alguém que os seduza.

― E tu acha que pode fazer isso?

― Posso, assim como fiz contigo.

― O que tu queres dizer, cara? Que porra é essa?

― Que assim como a Sharazade eu recontei a história e tu revivesse tudo. Tu estás excitado, to vendo daqui.

― Cara, já te ouvi demais, se toca. Vai embora, vaza.

― Não fica irritado, sei que és hétero, é normal, não muda nada. E eu não vou sair, eu paguei pra me ouvires, lembras? Agora quero que marques uma aula. Eu preciso ter essa experiência.

Carlos levantou-se, dirigiu-se à janela e abriu a cortina. Uma luz tênue se estabeleceu, expressando o entardecer que findava. O outro se aproximou e falou quase ao seu ouvido:

― Eu espero. Não precisa ser amanhã. Quando tu quiser.

Carlos não disse nada. Sentiu com prazer o aroma adocicado que ainda envolvia a sala e como o sultão Shariar, quis ouvir a história de novo.

Fonte da ilustração: Efes Kitap - site: https://pixabay.com/pt/users/efes-18331/

sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

domingo, julho 09, 2017

Aplaudam o palhaço!

Dona Marina surgiu esbaforida, prendendo nervosa, o lenço colorido ao pescoço, fugindo do frio e do vento. Entrou na sala e se recompôs rapidamente. Cumprimentou a turma, esclareceu alguns pontos que ficaram vagos da aula anterior e colocou-nos, de sobressalto, o assunto da prova, que seria na semana seguinte.

Eu sentava entre dois colegas mais chegados. À minha volta, principalmente nas cadeiras da frente, as meninas que voltavam os olhos e os narizes vermelhos, cada vez que um de nós fazia qualquer gracinha.

Camilo estava ao meu lado e comentava os gibis que havia trocado no sebo. Luís encantava-se com o torneio feito por Seu Matias, uma espécie de patrono dos meninos, jogadores de várzea que se esforçavam para fazerem bonito nos campinhos de futebol.

Eu estava quieto, recordando as histórias que criava em casa, as quais escrevia e interpretava sozinho, executando a sonoplastia com uma batida na mesa com um biscuit de minha mãe, embalando as vozes em diferentes timbres, para identificar cada personagem. Sempre um primo ou prima me acompanhava. Tinham paciência para ouvir as histórias e pouco davam palpite sobre o desfecho que eu estabelecia. Importava talvez a nossa cumplicidade em criar um cenário só nosso, de fantasia, sonho e satisfação.

Tais como na rádio, com suas novelas melodramáticas, cheias de lágrimas, tiros e assassinos perdoados, assim eram as nossas histórias. Por isso, naquele dia, estava alheio, lembrando de nossos encontros, esperando ansioso que acontecessem, que a aula acabasse, que Dona Marina desse o bom dia fatal e nos deixasse livres, para vivermos os nossos sonhos.

Ela percebera a minha alienação e naquele dia ventoso, parecia mais atenta e perspicaz do que o normal. Perguntou-me o que estava acontecendo comigo, o porquê de não estar prestando atenção à aula e a partir daí, informou-me uma série de medidas relacionadas à prova, inclusive reprimendas para melhorar o meu comportamento.

Não sei porque cargas d`água, não me contive quieto e passei a ironizar tudo o que ela dizia, todas as frases que expressava ou questionamentos que nos fazia pondo em prática a lição.

Lembrava das perguntas e expressões caricatas que as novelas esculpiam em suas histórias e comecei a falar tal como fazia em minhas sessões solitárias ou ao lado de meus primos. A cada explicação, eu respondia com um “não diga!”, ou a cada pergunta, exclamava “Meu Deus!” ou “Cale-se!”.

Os meninos ao meu redor, dobravam-se em risadas hilariantes.

Aquela atmosfera de alegria, me estimulava a ir mais longe. Então, passei a fazer uso da pasta, que era uma pequena mala de couro, com uma alça, semelhante a dos executivos (moda, naquela época), de forma a parecer-se com um acordeão.

Eu nem ligava se ela estava preocupada comigo ou mesmo indignada ao ser interrompida em sua aula. Ao contrário, tudo aquilo me divertia muito, principalmente porque percebia a molecada se divertir imensamente.

Algumas meninas faziam caras e bocas, denunciando censura. Olhavam para a professora, desconfiadas, exigindo com os olhares que ela tomasse uma providência. Outras, mais brejeiras, riam despudoradas, do meu tango imaginário.

De repente, a professora emudeceu. Exigiu com energia, que nos calássemos.

Eu, soltei a pasta devagar, depositando-a aos meus pés, fingindo que nada havia acontecido. Empurrei-a para baixo da cadeira e selecionei algumas páginas do livro de gramática, sinalizando uma provável pesquisa.

Silêncio absoluto.

Ainda de cabeça baixa, ouvi quando Dona Marina citou o meu nome com a voz metálica e o timbre mais nítido que pôde soar em toda a sala.

Simulei qualquer coisa, resgatar a borracha do chão, impedir a caneta que escorregava pela reentrância do tampo da escrivaninha ou segurar uma folha providencial que despencava do caderno.

Mas não havia como evitar: meu nome fora pronunciado claramente e em som bastante elevado.

Levantei-me ante os olhares assustados dos colegas.

Ela exigiu que eu fosse até a frente da turma.

Ergui-me e fiz o primeiro gesto em obediência, estimulado, acreditando que ela me mandaria para casa. Era o máximo que poderia me acontecer, pois iria para casa, voltaria para as minhas histórias, criaria outras e as interpretaria. Quem sabe, não colocaria Dona Marina como vilã?

Mas foi só por um segundo. Antes que eu desse o segundo passo, ela gritou imperiosa, que eu trouxesse a gaita, ou melhor, a pasta.

Fiquei confuso, o que ela queria dizer? Então, eu deveria ir embora realmente, pois levaria a pasta comigo.

Obedeci, mas agora um pouco inseguro.

Havia alguma coisa em sua voz e principalmente no olhar que não se coadunavam com minha imaginação.

Desviei das carteiras, sorri sem graça para Camilo que esticava o pescoço, jogando dois olhos grandes da órbita em minha direção.

Passos incertos, mãos trêmulas, segurando a pasta pela alça.

Aproximei-me devagar para a frente, como se me dirigisse ao palco do teatro.

Percebi que Dona Marina havia sentado e se escondia atrás da imensa escrivaninha.

Tentei dar alguns passos até ela, mas insistiu que ficasse ali, bem no centro, próximo ao quadro-negro, para que todos me vissem, sem perder nenhum detalhe.

Perguntei, balbuciando:

– Então...? – Não completei a frase, não foi preciso. Ela foi determinada, objetiva, categórica:

– Agora toca a tua gaita. Segura-a como estavas fazendo e toca, de modo que todos te vejam e te aplaudam. O palco é todo teu. – E dirigindo-se ao pessoal, acrescentou, irônica: – Aplaudam o palhaço! Vamos dar um tempo para que ele apresente o show que estava fazendo no fundo da aula.

Eu olhei para a turma, olhei para ela, olhei para mim mesmo. Nem sei se com ódio, ou comiseração. Não havia alternativa, mas uma coisa, eu tinha certeza, não tocaria de jeito nenhum!

Ela então ameaçou mandar-me embora e só voltaria com um de meus pais.

Foi a saída digna da qual eu não abriria mão. Respondi com a voz sumida, que não tocaria.

Ela então me expulsou da sala, imediatamente, sem qualquer tolerância.

Saí aos tropeços, ainda ouvindo do pátio da escola, as risadas da turma.

No dia seguinte, voltei com minha mãe e percebi em Dona Marina uma dualidade que desconhecia.

Era outra pessoa, gentil, educada, até suave. Nem parecia a vilã do dia anterior e, inclusive, me elogiara.

Só restara a corrida de passos miúdos, fugindo do vento do inverno, segurando o lenço colorido para não lhe cair da cabeça, fazendo um nó suave no pescoço e começar uma outra aula, como se nada houvesse acontecido.

terça-feira, novembro 01, 2016

Os dez textos mais acessados no mês de outubro ( 02/10 a 31/10/16)

1º. AS AULAS DE DONA MARINA

2º. O menino e o livro

3º. Webrádio de qualidade, com a melhor programação

4º. Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

5º. A margem oposta

6º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

7º. Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

8º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

9º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

10º. Alguns aspectos do filme “A

pele em que habito” de Pedro Almodóvar

Fonte da ilustração: fotografia do poeta e escritor Wilson Rosa da Fonseca.

domingo, outubro 23, 2016

Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

Meu pai largou a maleta de ferramentas sobre a mesa, falou rapidamente com minha mãe e convidou-me a sair. Como sabia de nosso destino, segui-o rapidamente. Parecia um pouco irritado, conhecia aquele vinco entre os olhos, como se analisasse detidamente algum documento.

Subi na velha Jawa, uma motocicleta dos anos 50, enquanto ele dava a partida no pedal. Seguimos rápidos pela rua Dr. Nascimento e chegamos à escola.

Já na portaria, encontramos o Seu Miguel, que nos cumprimentou e foi rapidamente chamar o Irmão Sagres, o orientador da turma. Quando chegou, após os cumprimentos, ele não parecia interessado no assunto de meu pai. Batia uma bola de vôlei, no chão, desatento. Meu pai insistiu no problema, afinal, ele viajaria com a família por duas semanas, era um assunto urgente e não haveria como eu permanecer na cidade.

Irmão Sagres acabou informando que não era problema dele, que devia falar com o Diretor.

Mas afinal, perguntara meu pai irritado, o senhor não é o regente da turma?

Nada parecia importunar a atitude do professor, ao contrário, a falta de educação se acentuava em despachar o meu pai, informando que tinha mais o que fazer.

Meu pai então dirigiu-se ao gabinete do diretor, me deixando ali, pelo pátio da escola.

O professor afastou-se, talvez aliviado por não precisar decidir qualquer coisa sobre a nossa viagem. Ou talvez, porque estivesse interessado em outras coisas mais agradáveis.

Enquanto meu pai resolvia os problemas com o diretor, comecei a passear pela escola, subindo rapidamente uma escada que dava nos compartimentos dos irmãos.

Seu Miguel, que tinha olhos para tudo, me impediu, obrigando-me a descer. Tentei explicar que tinha muita curiosidade pela biblioteca que ficava no mesmo corredor, bem ao lado do anfiteatro, mas ele fez ouvidos de mercador e me indicou a escada para que descesse.

Então, fiz a ronda pelas várias salas de aula, que a estas alturas estavam vazias, pelo adiantado da hora.

Como era inverno, já anoitecia e as luzes eram acesas.

Na penumbra, vi passar uma pessoa dentro de uma sala, com a atitude meio estranha de cerrar e abrir ao mesmo tempo, as cortinas.

Aproximei-me da porta e vi Irmão Cassiano, o nosso antigo professor de religião, andando pela sala e puxando com força as cortinas, quase desprendendo-as dos bandôs.

Intrigava-me aquela atividade de fechar as cortinas e ao mesmo tempo, abri-las com a mesma energia.

Aproximei-me, cumprimentei-o, mas ele nem percebeu a minha presença.

Continuava em seu trabalho com uma determinação incrível. Perguntei se não precisava de ajuda.

De súbito, ele parou e aproximou-se de mim. Senti um certo temor, como se ele fosse empregar a mesma força, empurrando-me porta afora, ou dando-me um safanão.

Mas ele não disse nada. Só sorriu.

Observei que seus óculos arredondados estavam tortos e seus olhos miúdos e azuis se ressaltavam quase por cima da armação. Os cabelos brancos, penteados para o lado, caiam-lhe na testa, desavisados.

Em seguida, ele afastou-se em direção à porta em passos miúdos e voltou-se para mim antes de sair. Então, perguntou:

— Fez os temas de hoje?

Eu pretendia responder-lhe que não tinha mais aula com ele, mas apenas assenti com a cabeça.

Foi aí que ele insistiu:

— Tem uns meninos que estão interessados em aulas sobre sexualidade, mas a grande maioria dos alunos está interessado nas nossas aulas de religião, como devem ser dadas. Por isso, para aqueles, darei explicações individuais, caso seja estritamente necessário. Você não é um daqueles, não?

Eu, como toda a turma do ano passado, era um daqueles sim. Também colocara como item principal no questionário, o tema sobre sexo. Mas respondi que não. Ele suspirou, aliviado:

— Ainda bem. Não falta tempo para estes meninos aprenderem estas coisas. A vida se encarregará de ensiná-los no momento certo, quando tiverem maturidade para isto.

Ele se afastou sem dizer mais nada. Fiquei ensimesmado, pensando que alguma coisa acontecera na mente do professor. Ele parecia desorientado.

Em seguida, ouvi os ruídos de cortinas sendo abertas e fechadas. Ele continuava na sua tarefa metódica de abrir e fechar o mundo. Tal como fizera com o questionário. Só, que lá, se preocupara apenas em fechar. E o conhecimento que desejávamos, cada vez ficava mais distante. Talvez já naquela época, a insanidade já se alastrava em sua mente, enquanto a sexualidade exacerbava em nossos físicos e espíritos. No entanto, nosso conhecimento se dava sem nenhuma informação científica, o que aprendíamos entre nós, era via de regra, de maneira distorcida.

Quando ouvi me chamarem, percebi que meu pai me procurava irritado. Queria saber onde eu andava, porque não me esperara lá embaixo, na portaria.

Pretendia explicar-lhe que estava só passeando pelo colégio e falar-lhe da esquisitice de Irmão Cassiano. Mas decidi ir direto ao assunto e perguntar-lhe como tinha sido a conversa com o diretor.

Ele me cortou rápido:

— Vamos pegar a Jawa e tocar em frente nossas coisas. Aqui já resolvi, tudo, apesar da burocracia!

Na saída, encontramos o Irmão Sagres, que perguntou, tentando ser gentil: conseguiram o que queriam? E meu pai foi direto:

— Sim, mas não com a sua ajuda!

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

sexta-feira, setembro 04, 2015

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.

Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.

Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.

Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.

Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.

– O que eu pedi? – questionou, indignada.

– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?

Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?

Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens. Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.

Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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