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segunda-feira, julho 30, 2018

As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à vitória.

Naquela mesa de toalha branca e alguns ramos de flores bordados, eu o observava e, de algum modo, assinalava um tipo de felicidade, se é que felicidade possa ser classificada. Uma felicidade que eu jamais voltara a experienciar. Talvez, nem minha irmã. Era uma alegria genuína, que nos unia e transportava a lugares e objetos, como se fosse um jogo. Um jogo cujas regras meu pai delimitava com disciplina. Havia um tempo para cada um. Um espaço para que nós também procurássemos palavras no jornal e nos mapas, a saga era por cidades, países, rios ou picos elevados.

Tínhamos um tempo que era só nosso, ao seu lado. Um tempo em que a sua presença era tão importante, que nem nos dávamos conta, por ser uma circunstância natural.

Minha mãe passeava pela copa e vez que outra, surgia da cozinha para também exercer a sua presença com um palpite, mas logo se debruçava na costura, bem ali, ao lado e ouvíamos o som cadenciado do pedal da máquina.

Às vezes, lembro melancólico desse cenário familiar. Lembro de meu pai e ainda o vejo à mesa, com os cabelos negros caídos à testa e bem curtos atrás, as mangas arregaçadas e um sorriso nos lábios iluminado pela luz minguada que surgia pela janela ou talvez pela alegria de despertar-nos a curiosidade e o diálogo entre nós. Agora, resta a saudade, que dói e que aparece assim, de repente, sem pedir licença, a abraçar delicada os pensamentos.

Também recordo minha mãe, coadjuvante naquele momento, envolvida noutra tarefa, mas dando os palpites e de vez enquanto, levantando-se da cadeira, deixando o pedal da máquina de costura e aproximando-se da porta, como quem observa uma cena da qual é cúmplice e se despoja de sua opinião para que a ação prevalecesse. Lembro dela noutros momentos, em que era a protagonista, mas também aqui sinto saudades, porque sei que sua presença silenciosa nada mais era do que apoiar a nossa maneira de ser feliz.

Isso era felicidade? Acho que sim, nas suas sutilezas, nas circunstâncias em que a vida não pede nada, mas nos entrega de mão beijada.

Fonte da ilustração: Artsy Bee in: pixbay.com

quinta-feira, junho 16, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 6º CAPÍTULO

Capítulo 6


Seu Domingues caminhava devagar, passos miúdos, quase estudados. Olhar absorto, absorvido no nada, quase infinito. Quase falando, quase sorrindo, quase vivendo. Sobreviver? Era esta a ideia? Pois estava ali para ultrapassar os parcos limites de sua existência. Ouvia vozes, sorrisos de crianças, farfalhar de folhas. Outono? Talvez. Ou qualquer estação que trouxesse um pouco de vida, aliada ao sol forte que lhe ardia a testa. Meio dia. Sol a pino. Quem sabe verão? Não. Impossível. Aquele friozinho que já lhe arrepiava os pelos dos braços. Outono chegava. Prenúncio de inverno. Forte, de geada. Crepusculando o mundo soturno do frio. Decadência. Sentou no banco da praça como fazia há quinze anos. Veria por acaso as mesmas pessoas, os mesmos velhos solitários como ele, ali, a jogar dama, espiar as pernas das moças inatingíveis, bisbilhotar a vida alheia. Vida intensa que segue. Pipocar um sorriso aqui, uma lágrima ali, uma vontade de nada, de não saber o quê.

Hoje não havia ninguém conhecido. Nem mesmo para dar a notícia fatal de algum amigo que já partira, como muitos. Agora estava realmente só.

Ele ficou assim, não sabe quanto tempo. Uma hora, duas, três. Uma eternidade. Até que o inusitado aconteceu.

Uma bicicleta do outro lado da rua. Uma moça bonita, da loja de conveniências. Marília.

Ela aproximou-se, naquele jeito fagueiro, atitude de quem tem a vida pela frente. Chegou célere. Sentou-se num pulo, ao seu lado. Sorriu. Uma lufada de vida, de ar, de dignidade. Encheu os pulmões, o coração. Sorriu também.

— O senhor não acha melhor voltar para a loja?

— Por que Marília? Está tão bom aqui. Veja este sol. Pelo menos um alento, para um velho como eu.

— Lá o senhor pode ler o seu jornal, tomar o seu café bem quente. Aqui está muito frio.

— Você acha Marília? Aqui, pelo menos, eu posso ficar um pouco sozinho.

— Então quer dizer que não gosta de nossa companhia?

— Não, Marília, é que chega um momento de nossa vida, que às vezes preferimos ficar sozinhos. Nada acontece, entende?

—Pois vou lhe contar uma novidade.

Ele a olhou intrigado, como se nada significasse alguma novidade para ele. Entretanto, ouviu-a com paciência.

— O senhor sabia que chegou um detetive na cidade?

— Um detetive? O que vai descobrir neste fim de mundo?

— Talvez alguém o tenha contratado. Ocorreram uns crimes por aqui, não foi?

— Eu não acredito nisso, Marília. E depois, tudo já foi solucionado e o que não foi, não descobrirão nunca.

— Por que o senhor pensa isso?

Calou-se por um momento. Refletiu e acrescentou meio displicente com o assunto.

— Não sei, deve ser porque já vivi demais e sei que nada acontece por acaso.

— Não entendi nada, Seu Domingues. Mas não importa, vou indo, porque tenho que pegar o meu filho na escolinha pra voltar à tarde pra loja. Um bom dia pra o senhor!

— Bom dia Marília.

Ele continuou sentado, com os olhos mais fixos do nunca no mais obscuro de sua mente. Parecia que as coisas ficavam de certo modo atordoadas e o incomodavam.

Quem seria aquele detetive? Quem o teria chamado? Por que Marília sempre lhe trazia uma novidade que não lhe dizia respeito. Deixou-se ficar por um tempo e sentiu um olhar pesado em suas costas. Voltou-se e percebeu que Rosa continuava parada na porta do hotel. Pensou, não tem o que fazer mesmo, um hotel vagabundo, uma cidade que não acontece nada e uma gente desocupada!

quinta-feira, junho 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 4º CAPÍTULO

Capítulo 4


<p> Capítulo 4

Quando chegou ao quarto onde o amigo estava, Ricardo encontrou-o sonolento. Aproximou-se da cama e Raul abriu os olhos, sorrindo.

—Não reconheci você com este jaleco, cara. Que bom que veio, meu médico preferido.

—Não se agite, Raul. Sei que seu açúcar teve uma queda considerável.

— É verdade, eu tive tonturas, tive náusea e até agora estou suando frio, apesar do sono.

—Isso é assim mesmo, daqui a pouco passa. Mas já é hora de dormir. Afinal, é bem tarde. Assim, você descansa.

— Sabe, Ricardo, eu tenho medo que eles me matem. Que descubram que estou aqui… Você sabe.

–– Ninguém vai descobrir nada. Não pense nisso.

––Você anda muito ocupado, eu sei. Já estou acostumado com abandono, meu amigo. Eu lhe falei da Susi, lembra? Não da cachorrinha que tenho em casa…

––Sei, da sua namorada. Esqueça isso. Pense em melhorar depressa. Amanhã, você sairá daqui.

––Escute, você pensou na proposta que lhe falei?

–– Pensei, mas conversamos amanhã. Agora, eu só vim ver como você está. Não quero importuná-lo mais. Tente dormir. Raul o observou com certa ironia. Segurou a mão de Ricardo e perguntou com cumplicidade:

— Meu amigo, você andou bebendo. Não pode vir atender os pacientes neste estado, ainda mais usando jaleco, entrando no hospital com o crachá de médico…

–– Cale a boca, não repita essa bobagem aqui.

–– E você acha mesmo que é uma bobagem?

–– Não, não é, claro que não. Mas vim aqui para vê-lo. Que está insinuando?

–– Só estou querendo protegê-lo, meu amigo. Uma morte qualquer de um paciente pode responsabilizá-lo por incompetência, por estar usando bebida alcoólica.

––Eu não estou atendendo ninguém, você sabe disso.

––Mas numa emergência, podem precisar de você.

–– Você está me ameaçando?

––Jamais, meu amigo, jamais. Quero proteger você, como disse, até a morte, se necessário.

–– Então não se preocupe comigo. Sei me virar. Por isso, mesmo, vou embora, você já está muito bem, pronto pra outra.

––Meu amigo, quero lhe agradecer por não ter me abandonado. Sei que você vai fazer o que lhe pedi, vai tentar descobrir a causa da morte daquelas pessoas. Você vai provar que elas morreram por terem usado insulina.

— Eu já lhe disse que estou ingressando no hospital, não posso me envolver com nenhuma necrópsia e depois, isso é atribuição dos peritos da polícia civil.

—Mas você vai achar uma maneira de resolver isso, tenho certeza. E vamos culpar aqueles malditos da petshop.

Ricardo afastou-se encontrando alguns colegas que faziam o plantão da noite. Fez o possível para dirigir-se ao estacionamento o mais rápido que pode.

Quando estava no carro, no silêncio entre os poucos carros que ainda estavam no prédio, ficou inquieto, pensando nas palavras de Raul.

Às vezes, parecia que ele pretendia agredi-lo, agindo de forma irônica, como se pudesse acusa-lo de algum delito. Entretanto, o melhor que tinha a fazer era esquecê-lo e voltar para o hotel imediatamente.

Foi o que fez. Tentou dormir um pouco e ao levantar, parecia que carregava uma carga imensa nas costas. Antes de mais nada, decidiu ir até a casa da mãe de Raul. Precisava saber os detalhes da conversa que pretendia ter com ele, de preferência, longe do filho, como dissera.

Dirigiu-se ao endereço que tinha anotado, observou que era uma casa antiga, com um velho portão de ferro, meio enferrujado, precisando de uma boa pintura.

Tocou a campainha e uma mulher atravessou o pátio, vindo pela calçada que conduzia ao portão. Tinha o cabelo pintado de loiro, curto e uma estranha cicatriz perto do olho. Como médico, foi a primeira coisa que reparou. Não esqueceu também da voz rouca de quem havia fumado por muito tempo.

Ela abriu o portão e pediu que entrasse, apresentando-se, logo em seguida.

––Seu nome é Sara. Raul não havia falado na senhora.

–– Não?

–– Na verdade, comentara alguma coisa sobre a sua casa, herança que provavelmente seria dele…

–– Raul às vezes, é uma criança. Mas vamos entrar, não ficaremos conversando aqui no portão, até porque está meio frio, não acha?

Ricardo concordou e avisou que teria pouco tempo, no máximo uma hora, em virtude do compromisso no hospital.

Entraram na casa. Uma sala enorme, com alguns quadros inexpressivos na parede.

Sara o convidara a sentar-se numa das poltronas e afastou-se, dizendo que traria um café. Ricardo insistiu que já havia tomado café no hotel e que não teria muito tempo. O ideal é que fossem direto ao assunto.

Sara então, sentou-se na poltrona a sua frente. Ficou em silêncio, observando-o, o que o incomodou um pouco. Por isso, engatou o assunto:

–– A senhora disse-me ao telefone que gostaria de falar-me na ausência de seu filho. O que aconteceu?

–– Bem, eu diria que não aconteceu absolutamente nada.

–– Como assim?

–– Deixe-me explicar. Raul tem passado por um período muito difícil, desde que brigou com a namorada. Ele estava muito apaixonado, sabe?

–– Sim, ele me contou.

–– Acho que a separação o perturbou de alguma forma, porque anda inventando coisas, anda fantasiando, entende?

–– A senhor se refere aos crimes?

–– Exatamente. Quero dizer, mais especificamente, ao ataque que ele sofreu.

–– Ele foi atacado perto do petshop, no tal parque perto da loja. Foi isso que ele falou.

–– E você acreditou nesta história?

–– Por tudo que ele descreveu, pelo verdadeiro pânico que parece estar sentindo, não teria motivos para duvidar.

–– Mas não acha que aquela história do homem no carro oferecer carona é pura ficção? E depois, perder um cachorro, ele tentar ajudar e ser atacado! É muita fantasia, pelo amor de Deus!

–– Definitivamente, a senhora não acredita nele!

–– Pobre do meu filho! Ele anda imaginando estas coisas. Ele não tomou nenhuma dose de insulina a mais e se tomou foi a normal, de todos os dias. Ele começou a imaginar estas coisas… Tenho medo de que esteja enlouquecendo…

–– Muito bem, tudo é muito estranho, realmente. A história é até um pouco absurda, mas e quanto aos outros crimes? As vítimas existem, estão em todos os jornais. Há um assassino solto por aí.

––É verdade, existem sim. E nem sabemos se foram mortas pelas mesmas pessoas. Mas quanto a ele… não aconteceu nada. Por que o deixariam vivo, você já se perguntou isso?

–– A explicação dele é convincente. Ele seria o único que é realmente doente, por isso se salvou. Segundo ele, injetaram insulina nos outros e estes não sofriam da doença.

–– E quem pode provar que morreram disso?

–– É o que ele quer que eu ajude a provar, conversando com os peritos, com os inspetores que cuidam dos casos. Se fizerem necrópsia nos corpos das vítimas…

–– Se eu fosse você não me envolveria com isso. Vão chegar a um resultado lastimável…
.

–– Como assim?

–– Quero dizer, absurdo. O que eu quero, na verdade, o motivo que o chamei aqui, além de dizer isso, é que você não o abandone, que o ajude a sair dessa situação, entende? Eu preciso que meu filho volte à realidade. Que ele pare de pensar nestas bobagens, que volte a viver! Faz dois anos que se separou dessa mulher que ele tanto venera, agora chega. Tem que esquecer, tem que arranjar um trabalho decente. E só você pode ajudá-lo.

–– Eu estou tentando, dona Sara.

–– Sei, mas você tem que mudar o modus operandi, entende? Tem que esquecer essa história de crimes e levá-lo a se divertir, a conviver com outras pessoas, quem sabe lembrar do passado, do tempo em que eram crianças, rir um pouco, beber nos bares, saírem. É o que ele precisa. Eu até sugeri que você morasse aqui, por um tempo.

–– Foi a senhora que sugeriu?

–– Sim. Não é uma boa ideia? Até você encontrar um lugar para ficar. Esta cidade é pequena, não comporta bons apartamentos. A minha casa é grande, antiga, mas bem aprazível. Você terá um quarto e uma suíte, só sua. O que acha?

–– Raul lhe falou de minha namorada? Ela pretende vir para cá.

Sara aquietou-se. Levantou-se e perguntou novamente se ele não queria café. Desta vez, também sugeriu um chá. Ricardo recusou, dizendo que estava na hora de ir.

–– Eu compreendo meu filho, vá, desempenhe bem as suas tarefas e seja um bom médico. Você tem tudo para ser um grande profissional, diferente de Raul, infelizmente. Mas vá, daqui a pouco, ele estará em casa novamente. Pode ser, que mude de ideia e esqueça essa história de crimes.
Sara interrompeu-se por um instante e antes que ele saísse, pediu:

—- Espere, antes de sair me prometa uma coisa. Não diga nada a Raul sobre a nossa conversa. Ele tem tanta confiança em você, que se soubesse que esteve aqui, talvez desconfiasse de alguma coisa.

Ricardo concordou e afastou-se rapidamente.

terça-feira, junho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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