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quarta-feira, janeiro 20, 2021

Motor estagnado

O homem sonhou que atravessava a lagoa e de repente, o barco parou bem no centro, entre as ilhas e o cais, como se fosse uma imposição dos dias atuais.

Não, não era na direção de São José do Norte, nem na direção do centro da cidade, por ali, perto do mercado público. Na verdade, era um pouco mais longe, lá pelas bandas do bosque. E o cais, que ele chamava, não passava das margens arenosas que cercavam seu quintal aramado. Estava lá, entre dois pontos. A referência da margem da casa e a ilha defronte. Talvez fosse Porto do Reino, pensou. Não, ele não pensou, ele sabia.

Ficou ali parado, pensativo, sem qualquer reação. Nada que fizesse, produzia algum movimento no barco. Motor estagnado.

E as águas também não fluíam, como o tempo. Tudo parado, quieto. Estranho. Mas estava vivo. Talvez tivesse uma iluminação, pensou, embora soubesse que era um sonho. Ele estava dentro do sonho e não conseguia acordar, mas sabia que estava dormindo.

O céu parecia aproximar-se do barco, trazendo um foco de luz que brilhava ante seus olhos, agora um tanto aflitos. Ficaria eternamente ali, naquela posição?

De repente, um pequeno movimento. Um barco que se deslocava da margem, ao longe, lá, naquela região, um tanto escura. Também vinha outro da margem oposta, bem em sua direção, tal como o primeiro, como se houvessem combinado entre si.

O homem olhava para os lados, apreensivo. A luz na sua fronte aumentava e uns pequenos raios teciam arcos-íris nas leves ondas em formação. Sim, porque tudo agora se mexia lentamente.

De repente, outros barcos foram surgindo do nada e aos poucos, se cruzavam como se estivessem numa procissão esperando a santa padroeira. E no movimento dos barcos, o barco do homem começou a se mover também, embora sem sair do lugar. Apenas o movimento resultante dos demais. E vários foram tomando conta e chegando perto, cada vez mais perto, até emparelharem com o dele e fazendo uma aglomeração de barcos enfileirados.

Quem os visse através da visão de um drone, por certo achariam interessante aquele cenário.

O homem compreendeu então que sua missão chegara, enfim, e ele começou a rezar e a agradecer a presença dos barqueiros. Todos abaixavam a cabeça quando ele, sem perceber que tinha uma ótima oratória, fazia um discurso convincente e produtivo. Só então percebeu que naquele barco sozinho e triste, havia luz e esperança. E agora, que estavam todos juntos, a luz diminuía aos poucos e uma neblina surgia, assim como nuvens escuras toldavam o céu. E ele nunca mais viu aos que se referia. Do sonho? Entubado, nunca mais acordou.


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/pôr-do-sol-oceano-barco-humano-mar-3689760/


quinta-feira, abril 02, 2020

O cheiro doce da maresia

Fonte da ilustração: Bernhard_Staerck in: www.pixbay.com



Quisera falar coisas agradáveis. Talvez anunciar que ando lendo livros, ouvindo músicas , que arrumo minhas estantes e desorganizo meus pensamentos. Talvez a única opção correta é o caos de pensamentos.

Quisera sorrir com as piadas, com os memes da pandemia, com os artifícios de comunicação em mídias menos afeitas ao jornalismo.

Quisera sorrir e ver beleza em imagens da natureza, nos programas de viagens, nos realities falsos de construções e vendas de casas ou de restauração de carros. Quisera me divertir com programas de humor, de me emocionar com dramaturgia, de acalentar a alma com a melodia. Mas não consigo. Meu coração está apertado e meu peito não se expande para dar vazão a sopros de esperança.

Fico emocionado sim com o pessoal que trabalha na frente de batalha, como soldados fiéis e fortes, em nossa defesa. Parece que a humanidade está tão frágil e as questões de classes, etnias ou orientações sexuais parecem ter apenas um viés democrático, o de estarem todos no mesmo barco.

E parece que a tempestade é poderosa, cujos ventos e ondas estão a ponto de desestabilizar o barco no qual cabe cada vez menos pessoas. Como se fôssemos ficando sem espaço, pois os que decidiram avançar as ondas, já não podem voltar para o barco e se voltarem farão com que os que já estavam acomodados e isolados, afundem juntos. Quisera que a tempestade passasse rápida e que pudesse novamente olhar de frente o horizonte e observar uma paz indefinida, com a certeza de que não estou sozinho nem isolado e que outros já podem respirar ao meu lado. Antever ao longe, o oscilar das névoas entre o sol e a brisa, permeando meu olhar solidário. Para isso, basta que não enfrentem a ciência e fiquem no barco, não sigam as atitudes bisonhas de um líder que não lidera, que apenas aguardem que a maré abaixe, que as ondas diminuam, que o mar se acalme, que sintam o cheiro doce da maresia e a vida recomece. Nunca mais como antes, mas talvez mais rica e densa de valores.

segunda-feira, setembro 24, 2018

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara.

Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar.

Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento transparecer. Aos poucos, ia se envolvendo com a conversa e acho, que na verdade, acabava gostando da visita.

Ele era uma pessoa que enchia a casa. Era alegre, divertido e mais do que isso: um eloquente orador, a ponto de ficar horas contando uma história, com fatos muito bem delineados e esclarecidos um a um, como se fosse necessário explicar quase didaticamente os fatos. Era convincente, persuasivo e tinha uma maneira expressiva de falar, que silenciava a plateia e a deixava instigada para o final, como se houvesse sempre uma surpresa a qual não se deveria perder.

Era antes de tudo, um vendedor, acho que um caixeiro-viajante, mas para nossa família era um amigo, não tanto almejado em suas visitas, mas pelo menos aceito quando aparecia, sem nunca avisar. Chegava se desculpando pelo adiantado da hora, pelo tempo que despenderia em nossa casa, e num pedido com muito cuidado e persuasão, acenava para uma provável estadia, que em geral durava aquela noite, mas às vezes, se estendia por dois dias.

As conversas eram sempre animadas e quando a comida estava à mesa, costumava fazer um agradecimento e mais conversa e mais histórias cheias de minúcias e tantas informações que nos prendiam, a ponto de não queremos dormir e ficar horas ouvindo-o. Não era o caso de meus pais, que logo que podiam dispensar-se de sua presença, enveredavam-se para o quarto, lembrando que a noite passaria rápido e teriam um novo dia pela frente.

Ele ainda ficava um pouco, um tanto silencioso, mas logo retomava a contar-nos qualquer coisa que lhe interessasse, de uma maneira bem mais tranquila, a voz doce, o olhar penetrante, embora convencido de que nós também deveríamos dormir. De certo modo, nos dispensava, porque ele também teria tarefas importantes no dia seguinte.

Ele era assim, chegava devagarinho e ia ficando. Não era nosso parente, um amigo de meus pais, talvez conhecido de outras épocas, mas que sempre nos procurava para, como dizia, pousar uma noite e seguir em frente.

Certa vez, trouxe o acordeom e tocou várias músicas, transformando a sala de minha mãe, num pequeno baile. Eles até dançaram, numa participação surpreendente, talvez fosse num fim de semana e não haveria a preocupação com o dia seguinte. Foi uma festa.

Ele era assim, às vezes metódico nas conversas, mas sempre preocupado em agradar os meus pais e a família, por outro lado, tinha seus interesses, como morava longe, lá pela zona rural de São José do Norte, achava por bem ficar em nossa casa e tocar seus negócios. Era uma troca. Quase sempre trazia alegria e assuntos divertidos ou surpreendentes para quem tinha uma cultura diferente, uma maneira diversa de ver a vida e de vivê-la, segundo os seus princípios.

Aos poucos, foi se afastando e com o passar do tempo, nunca mais o vi. Ficou no entanto, a música, o pequeno barco que fizera para minha mãe, as conversas intermináveis, a paciência que ele demonstrava e que às vezes, nos deixava ansiosos, as maneiras solícitas, a educação extrema. Este era Bentinho, um homem que foi chegando devagar e por um longo tempo participou de nossas vidas.

da ilustração: https://pixabay.com/pt/piso-velho-caminho-homem-bacl-rua-1775362/

quinta-feira, abril 26, 2018

DE MINHA NATUREZA


(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.)

Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma que há muito não via na cidade. Era como se o inverno rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez.

Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente, afinal, naquela bruma toda, nem o veriam. Fumou de morado por longos e infinitos minutos. Depois olhou a nuvem que fazia com sua própria fumaça e sorriu. Estava colaborando para o caos.

Ficou ali, não sabe quanto tempo, pensando na mulher que ficara em casa, nas contas que deixara sobre a mesa, nos boletos, nos cartões de crédito, no financiamento da casa. Mas aos poucos, foi esquecendo-os tal como a neblina que avançava mais e mais. O céu se juntava no canal, numa coisa só, indefi- nida. Os barcos sumiam, quanto mais os navios, que passavam bem mais longe. Parece que o caos aumentava e não via ninguém a sua volta. A maconha o deixava leve, cabeça encostada num poste, as pernas no gelado do cais. O mundo, para ele, riscava num fósforo de churrasco, que se acendia e apagava, numa chama tépida e sem graça. A vida dava ré e ele regurgitava em raiva, das coisas que não lhe pertenciam ou que lhe tinham tirado: o direito à moradia decente, à liberdade de andar na rua sem ser assaltado, ao término da faculdade pela falta de dinheiro, o tempo perdido num trabalho monótono.

Uma menina com a roupa enxovalhada se aproximou e ficou observando-o, ali, sentado, como se avistasse o Buda ou uma alma iluminada. A mãe estaqueou um pouco distante. Sentiu uma lágrima correr na face encardida do sol. Deixou que se aproximasse, deu-lhe todos os trocados que possuía. Mais do que isso, a beijou no rosto. A mãe do outro lado, se aproximou assustada pelo afeto inadequado. Não importava, ele amava as crianças e odiava a situação nefasta em que o mundo tinha se transformado pelos políticos e ilegítimas autoridades.

Elas se foram e de longe observou as duas sombras comprarem o que supunha ser um lanche. Suspirou aliviado. A noite e o nevoeiro compartilhavam o tempo e a intensidade. O silêncio ficou quase absoluto. Nada, nem ninguém por perto. Só o som ritmado das fracas ondas da lagoa e o ruído de um carro distante do outro lado da biblioteca pública.

A não ser Bruno, seu amigo de infância que se aproximava, talvez o único vivente àquela hora e com a tal neblina, sentiu uma espécie de epifania, uma alegria de algo que se revelava e restaurava a sua criatividade. Com ele, poderia utilizar toda a produção elaborada de se fazer entender a qualquer preço. Bruno era burro, um imbecil, na verdade, mas ele estava ali, ao seu lado e por certo, ficaria um bom tempo.

Lembrou por um segundo da mulher, das contas, do cartão de crédito, até da lista torpe do supermercado e sentiu uma fisgada no peito. Via o rosário sobre a bíblia e a mulher se ajoelhando como uma beata. Podia ter acabado com tudo, naquele momento, mas o ônibus não esperava e ele tinha de ir ao encalço dos seus limites.

Bruno chegou, fez aquele gesto característico de quem imita os negros americanos, batendo com as mãos e dando uma sacudidinha no corpo, cheio de promessas para si mesmo, pensando que os demais compartilhavam os seus trejeitos ultrapassados.

Em seguida, sentou-se ao seu lado e perguntou:

– E aí, tu deixou a vaca?

Bruno parecia seu pai. O velho era grosseiro, como ele, tanto que não sabia argumentar e por isso, batia muito. Não somente nele, mas na mãe, na irmã, na família toda. E se drogava, o desgraçado.

Ramiro sempre comparava o amigo ao pai. Ele tinha dessas coisas, de falar o que não devia nas horas inadequadas. Depois de muitas tragadas, muitas histórias sem sentido, a euforia os auxiliava a transpor os limites do bom senso.

Em dado momento, Ramiro começou a caminhar sobre o cais, muito perto da lagoa. A noite se enfeitava de pontos amarelos dos postes e a neblina camuflava algum barco que se aproximava.

Numa dessas loucuras, entre risos desenfreados e questões não respondidas, Ramiro resbalou o tênis velho e caiu na água.

No início, Bruno deu boas risadas, vendo o amigo mergulhar, desaparecer e vir à tona. Em seguida, viu-o afastar-se em direção às ilhas, talvez em virtude da escuridão que aumentava, apesar de ser exímio nadador. Com esforço, utilizava toda a resistência para praticar a volta ao cais, mas cada vez mais se afastava da cidade.

Bruno, então, apesar de demorar a entender que ele perdera a direção, percebeu que o amigo estava em perigo.

Decidiu atirar-se ao mar, embora nadasse como um prego. Apesar do frio, retirou a camisa e os sapatos para ficar mais leve. Deu algumas braçadas, tomando água, esforçando-se para chegar até o outro, gritando para que o esperasse, que voltasse e não se dispersasse rumo às ilhas, pois se afastaria cada vez mais do cais.

Ramiro, entretanto não o ouvia e se intrigava ao ver o companheiro superar-se, na tentativa de salvá-lo. O que esperava ele, transformar-se num herói, ele que nunca soubera tomar um banho com água acima da cintura. Seu amigo era mesmo um idiota, mesmo porque as ondas pareciam se tornar mais fortes e intensas.

Mas Bruno não desistia, segurava-se num barco não muito distante do cais, descansava alguns minutos para tomar fôlego e o chamava desesperado. A bruma era densa.

Ramiro ria, sem perceber que se afastava, guiando-se apenas pelas luzes da cidadezinha que ficava na outra margem.

Também estava cansado e por isso, apoiou-se numa boia, escondendo-se do amigo e rindo de sua odisseia.

Bruno, entretanto, insistia na labuta de encontrá-lo, e por isso, nadava de qualquer jeito ou da melhor maneira que conseguisse chegar até ele. Sentia perder as forças e a exaustão o deixava apavora- do, mas num ímpeto de sobrevivência, avançava em piruetas, alcançando uma poita e prendendo-se numa rede clandestina.

Tentava desvencilhar-se, enquanto gritava por Ramiro, que apático, observava o movimento nebuloso.

Um suor escorria pelo corpo de Bruno, que num ato de desespero, retirara os pés presos no entrelaçado, ferindo-se a brotar sangue. Finalmente, conseguiu dar um impulso, aproximando-se em seguida de Ramiro, resfolegando, a ponto de não conseguir falar. Por fim, tentou acender o isqueiro que trazia no bolso das calças, mas suas mãos tremiam e ele perdera o equilíbrio, quase afundando. Ramiro pegou o isqueiro e o acendeu, enquanto Bruno, assustado, o alertava da direção errada, ao mesmo tempo que o segurava com firmeza, tentando levá-lo para a margem.

Ramiro obedeceu e seus olhos brilhavam como se um caos se estabelecesse em definitivo. Sorriu para o amigo, e em vez de segui-lo, ele é quem o conduziu com facilidade, e os dois dirigiram-se ao cais, obedecendo a chama precária do isqueiro.

Bruno queria dizer alguma coisa, mas não evitava a água que quase o afogava. Ramiro desabonava a estupidez do amigo, apenas obedecia a chama, em silêncio. Juntos chegaram próximos ao cais, mas Ramiro o impediu de aproximar-se e segurar-se num ancoradouro. Bruno surpreendeu-se e quase em pânico, perguntou:

– O que aconteceu? Me deixa segurar, tenho que sair daqui.

Ramiro entretanto, enlaçou o seu pescoço com carinho e o mergulhou com firmeza. Bruno sentiu-se desfalecer e emergiu desesperado, quando a mão forte de Ramiro o libertara.

– Por que fez isso? Me larga, pelo amor de Deus! Eu não sei nadar, tu sabe!

Ramiro o olhava com certa ternura e o abraçava novamente, impedindo-o que se apoiasse no cais. Respondeu com tom afável :

– Nao posso te largar. Tenho que te matar.

– Por que? Eu fui te salvar, não fui? Por que então?

– Porque é de minha natureza. Tal como o escorpião da fábula, não posso. Eu preciso. Todos que se atravessam no meu caminho, na minha vida, todos que dão palpites, que me dão conselhos, todos... eu tenho que matar, entendes?

Ao terminar de falar, empurrou-o novamente para o fundo da lagoa. Viu o olhar do amigo num desespero quase poético, desaparecer sob as águas. Quando tentava emergir, ele o impeliu mais uma vez. Esperou um pouco. Alguns segundos apenas e desta vez, ele não voltara mais.

Ramiro suspirou fundo. Sorriu e esperou. O corpo viria à tona e ele o abraçaria com ternura. Sabia que tivera compaixão, quase amor.

A neblina aos poucos se dissipava.

quarta-feira, dezembro 13, 2017

O trauma de Alice

Fonte da ilustração: Fotografia de Wilson Rosa da Fonseca

Alice estava abalada. Não havia naquele momento nada que a mantivesse com os pés fixos na realidade. Seus pensamentos eram interrompidos por outros mais confusos e delirantes. Tinha vontade de correr, de sair do próprio corpo, de abandonar a vida. Mas não faria isso. Nem mesmo tomaria uma bebida forte ou qualquer outra droga que a estabilizasse. Não, faria o que sempre fez. Ficar quieta, parada, quem sabe, olhando o mar.

Entretanto, nem mesmo isso a consolava. Como ficar quieta se tudo havia perdido. Se a dor da separação, se o trauma da traição a instigava a tomar uma atitude contra si, como sempre fizera.

Desceu as escadas do velho apartamento, degrau por degrau, cabeça baixa, algumas lágrimas nos olhos, um sofrimento silencioso de quem não sabe o que fazer. As paredes do prédio pareciam mais velhas e descascadas. Ela observava a tinta avermelhada, por trás da verde brilhante num pedaço descamado. Quem pintaria de vermelho uma parede de um prédio? Alguns degraus estavam partidos, como se houvessem sido pisoteados anos a fio e agora surgia a superfície disforme e esfarelada. Como não percebera isso nestes anos todos em que morava no edifício?

Na rua, ainda voltou-se para a parede esquisita. Era de uma cor mortiça, tosca, quase sem qualquer matiz que indicasse uma pintura recente. Era feio o prédio onde morava, assim como era feia e terrível a sua vida.

Dirigiu-se até a garagem onde deixava o carro, o seu pequeno carro que sempre a servira em todos os momentos, em todos os eventos, mas hoje parecia tão fraco, quase inútil. Um motor velho, um design antiquado de fusca de cor caramelo. Tudo parecia desandar a sua volta. Tudo parecia incorreto, frágil e sem vida. Mas era o que tinha. Era dele que precisava para sair dali, para afastar-se nem sabia para onde. Talvez olhar o mar, como pensara.

O homem da garagem aproximou-se, indicando a saída melhor, afastando-a dos carros que se perfilavam a sua esquerda. Irritou-se. Por que ele sempre a orientava a sair da garagem? Ela, uma professora, será que não tinha condições de dirigir sem que alguém a aconselhasse? Por aqui, por ali, não, não, espere um pouco, dê uma ré, assim, pode sair. Que diabo, não precisava dele para nada e se batesse em algum carro, o problema era dela, não dele.

Pelo retrovisor, observou-o com cara de satisfeito, como se tivesse cumprido a missão. Idiota, pensou. Talvez nem saiba dirigir um carro.

Na rua, esqueceu o homem da garagem. Deu algumas voltas enquanto olhava para o vazio. Nada havia que a alertasse para uma presumível esperança. Nem melhorava o seu humor, muito menos, impedir-lhe as lágrimas.

Não muito longe dali, avistou a lagoa. O mar que se perdia no horizonte, as luzes do entardecer que pintavam de dourado as águas e o brilho das ilhas. Ficou ali, à beira do porto, observando os barcos, analisando o vai e vem das ondas. Por fim colocou uma música no toca-fitas. O carro de Alice ainda tinha toca-fitas.

Era uma música antiga, mas que significava muito. Love is all, de Malcolm Roberts, ela sabia quase de cor. Poderia ter escolhido uma música italiana, que sempre embalava seus momentos mais radiantes, mas Love is all era perfeita. Lembrava de quando o cantor a vencera no Festival da Canção e o quanto torcera por aquele britânico. Sempre o mantivera junto, em todos os eventos e sonhava com aquele amor inabalável. Na rua, não muito longe, avistou um quiosque onde vendiam cervejas. Fez um gesto para o rapaz que organizava algumas mesas para o público que viria mais tarde. Ele aproximou-se com uma cerveja.

Alice tomava devagar. Absorvia com calma o líquido e quanto mais ouvia a música, mais fixava o infinito, mais sonhava o amor sofrido. Lágrimas agora juntavam-se aos grânulos de gelo presos à garrafa. Tomou-a e pediu outra, do mesmo tamanho, com o mesmo conteúdo e a mesma dose de sofrimento. Já curtia aquele sofrimento, já sentia a melancolia de perder o amor, de se sentir traída, perdida entre as dores da alma. Repetia várias vezes "love is all" e entornava a bebida que agora escorria suave pela garganta, apaziguando a mente. Dizia a si mesma, embora em voz alta, que queria morrer, nada mais a prendia nesta vida. Somente a morte, a morte a libertaria de suas angústias. A morte seria o bálsamo para o fim de seu sofrimento. Nem se deu conta, porém que o carro não estava com o freio de mão puxado e assim, livre, foi aos poucos descendo uma pequena rampa e se ela não tomasse qualquer providência, viraria um barco a mais na lagoa. Mas Alice não percebeu e começou a cantar bem alto “Yesterday, I knew the games to play, I though I knew the way...Love is all, I have to give, Love is all, as long as I shall live..." Enquanto cantava, ela chorava e o carro deslizava nas águas e aos poucos se afastava para longe do cais.

O rapaz que arrumava as cadeiras no quiosque percebeu alguma coisa errada. Afinal, o carro havia caído na lagoa e daqui a pouco, afundaria. A mulher não havia visto? Morreria afogada? Olhou para os lados, mas àquela hora, poucos passavam no lugar, apenas alguns carros que se afastavam para os bairros num entardecer de sábado, por isso começou a chamar a mulher.

Alice embevecida com a cerveja e a música, não percebeu o quanto estava encrencada. Mas ouviu alguém chamá-la, devia ser ela, não havia quase ninguém no cais. Olhou para os lados e apavorada, reconheceu que estava perdida na lagoa, bem distante da margem. Nem Malcolm Roberts a salvaria, o carro já começava a entrar água e logo, logo afundaria. Que seria dela? Começou a gritar em desespero. Meu Deus, eu estava brincando, não quero morrer. Me tirem daqui, eu quero viver! Quero sair daqui, vou morrer afogada, dentro de um fusca, pelo amor de Deus, é trágico e fútil demais.

O rapaz atirou-se na água, nadou como pôde tentando aproximar-se do veículo, que percebia afundar a cada momento. Esforçou-se contra as ondas que pareciam mais avantajadas devido à mudança dos ventos que via de regra ficavam mais fortes ao anoitecer. De onde estava, ainda ouvia os gritos de Alice e sentia que as forças faltavam, mas não podia desistir. Parou alguns minutos para respirar, mergulhou e aproximou-se um pouco mais. Olhou a imagem que surgia como um ícone do desespero a sua frente, o veículo já quase submerso, a não ser as pequenas janelas do fusca que ainda refletiam algumas luzes do poente. O rapaz parou mais uma vez, outro mergulho, outra respiração forte e aproximou-se num salto no carro, conseguindo enfiar a mão pela janela e procurar pela mulher tentando resgatá-la. Segurou-a pelos cabelos e num instante sem qualquer cuidado, mas com a intenção de salvá-la, puxou-a pela janela, segurando em seguida, os ombros e a cabeça para retirá-la para fora. Ao deslocar o restante do corpo, tentou falar-lhe, mas Alice não conseguia articular nada. Ele tentou levá-la na direção do cais e numa poita, onde havia um pequeno barco, levantou-a com o maior esforço e colocou-a dentro da embarcação. Fez então tudo o que aprendera alguma vez num curso de primeiros socorros. Assoprou em sua boca e nesta respiração, Alice, tossindo e vomitando água voltou a si. Ele ainda perguntou o que havia acontecido.

Ela o olhou agradecida, mas ainda chocada, respondeu insegura: Eu devia ter ouvido Datemi un martello de Rita Pavone. Era a mais indicada para o momento.

sexta-feira, setembro 15, 2017

O barco à deriva

Greg olhou para a estante de poucos livros. Por um momento, pensou até que ficaria, mas já não havia tempo para discutir qualquer assunto, muito menos permancer naquela casa.

Os livros pareciam chamá-lo, pedindo que observasse suas capas, a contra-capa, o miolo costurado de uma maneira estranha para a época. E o conteúdo, o conteúdo viria por acréscimo. Não importava a ninguém o conteúdo e eles, os livros, pareciam ter vida.

Greg afastou-se um pouco em direção à janela que dava para o jardim dos fundos.

Na verdade, não era um jardim, era apenas um amontoado de flores de todos os tipos e alguns arbustos.

Olhava para baixo e tinha uma sensação de vazio, uma melancolia que não tinha como explicar.

O psicanalista dizia que era normal, ele era um homem melancólico, um cara acostumado com os sentimentos, o sofrimento, a dor que deveria ser exaltada, extrapolada, sentida e liberada na escrita. Quase catarse. Talvez o psicanalista tivesse razão. A melancolia era o seu ganha-pão. Com ela, conseguia escrever coisas densas, sentimentais e mais do que isso, provocantes. Precisava disso, precisava dessa escrita como respirar, mas quem se importava com isso?

Heloisa, na sua superficialidade de vida? Américo, no seu pensamento raso e fascista?

Quem se interessava com seus humores, amores, sofrimentos? Quem se importava com a sua vida?

Agora teria de sair para sempre. Dar lugar à promiscuidade intelectual, à mediocridade de temperamento e ineficiência coletiva. Comunidade? Para eles, isso era quase uma heresia. Eram mais individualistas do que autistas. Pelo menos, esses não se responsabilizam por seus atos.

Enganou-se consigo, enganou-se quando pensou que poderia ser igual a todo mundo. Não era. Era um cara diferente, estranho para os demais e cada vez mais diferenciado no mundo reacionário que passara a viver.

Américo sempre lhe dizia que um dia, tudo viria à tona, o mundo descobriria quem é o verdadeiro líder, o cara para quem o comércio, a economia, o capital daria a medalha da meritocracia.

Greg não dava a menor importância àqueles números e contatos com economistas e gente que só pensava em dinheiro.

Não que fosse avesso ao dinheiro, ao contrário, sabia que ele tinha a sua utilidade e devia usá-lo de modo sensato, pensava.

Heloísa não se envolvia com esses dogmas burocráticos e afeitos às grandes corporações financeiras. Ela só usufruía e isso lhe bastava. Cansada que estava da vida enfadonha do mundo da beleza, das celebridades e da busca do sucesso, encontrara em Américo a pessoa certa para estabelecer um vínculo permanente em consonância com a ambição. Estava com ele, estava com Deus. Por isso, passava por cima de tudo, até do amor.

E o amor, a poesia, o lirismo e a paixão estavam com Greg.

Greg se apossara dessas coisas, talvez pela melancolia.

Talvez o psicanalista estivesse certo. Era de sua essência. Não tinha como mudar.

Mas Greg amava Heloísa e houve um tempo em que foi correspondido. Houve um tempo em que o invólucro de sua liberdade emocional sustentava aquela relação. Ele amava pelos dois, amava duplamente até a décima potência.

Ela gostava dele simplesmente. Às vezes, se entendiava com seu papo adocicado demais, mas superava os maus momentos e se sentia renovada, cada vez que ele a beijava, cada vez que examinava os seus cabelos, enfiando os dedos com cuidado, como se escolhesse os melhores fios, para depois beijá-la com paixão.

Greg era estranho, pensava. À medida que era uma mansidão, um carinho personificado, também era um vulcão que a dilacerava, que a transformava numa lava incandescente ao ponto de custar a desvanecer. Ficava dias pensando nele, naquele amor fortalecido, apoiado na atmosfera de conforto que estabelecia uma ponte elétrica, quase turbilhão.

Mas um dia surgiu Américo e foi do nada, um amigo que Greg não via há muito tempo, talvez da época da adolescência.

Um cara extrovertido, cheio de ideias e principalmente ações. E não somente ações humanas, de atitudes e procedimentos, mas ações financeiras.

De repente, Greg ficava pequenino na frente de Américo.

Greg trazia um mundinho idealizado, Américo lhe mostrava um mundão lá fora, quase inatingível. Um mundo ao qual jamais havia sido convidada.

Greg a esperava sempre, junto aos seus livros, as suas leituras, a sua escrita, na esperança de que voltasse atrás e compreendesse que o amor devia estar acima de tudo, até de sua ambição, seu desejo de compartilhar a vida que Américo lhe oferecia.

Mas era tudo inútil.

Por isso, ele estava deixando a casa, deixando pra trás a vida comportada e civilizada que moldava a sua personalidade. Não devia mais viver entre o que lhe dava prazer, se o amor se dissipava em outras procuras. Não ousava transformar a melancolia em literatura, pois esta já não o completava.

Estava aturdido e o branco que a página produzia era muito mais do que uma falta de imaginação, era o excesso de conflitos sem solução, desequilíbrios em labirintos instáveis, dores que permeavam as margens e se confundiam com as palavras ainda sem qualquer sonoridade visual. Eram vírgulas que se interpunham entre versos ou expressões, transformando-as em resumos insalubres de pensamentos deformados.

Voltou-se da janela, abandonou devagar a visão do jardim, ficando ainda na retina algumas raízes de plantas que se soltavam da terra seca e sem vida. Tinha a impressão que tudo secaria ao sol e que nada restaria, além daquela terrível coroa de cristo que circundava o muro.

Dirigiu-se à estante dos livros, sentou-se na velha escrivaninha, abriu o notebook, esforçando-se em desviar os olhos do cenário inteiro e tomar uma decisão. Sabia o que faria, sabia que estava certo, sabia que o desregramento não fazia parte de seu comportamento. Seria, por fim, a saída para sempre da vida de Heloisa.

Que ficasse com o capital exterior, com as ações, com os dólares e euros de Américo.

Que ficasse com a América e o Imperialismo em suas mãos. Que mudasse o seu nome e se chamasse para sempre de Europa, quem sabe, encontraria um destino para fugir da crise?

Foi aí que Heloisa entrou no gabinete e se apoderou do que ele mais prezava: o seu conhecimento. Juntou tudo que havia, seus textos, seus livros, suas buscas e incertezas e o abraçou e o beijou e ousou fazer a última provocação, ou proposta, e que talvez ele aceitasse, por mais perversa e obscena fosse.

Então, encarou-a e por um instante, viu um espectro que parecia tomar-lhe os sentidos.

Vinha à mente, a traição, entretanto ela surgia com propostas ainda piores. Por certo, uma traição maior a qual ele deveria refutar com todas as forças, embora suas objeções pareciam definhar.

Ela o beijou com força e sua boca enchia a dele de baba que escorria pelo queixo, o que produzia uma sensação de propriedade. Era sua propriedade. Era seu.

Heloisa sorriu segura, abandonando os braços sobre seus ombros e encarando-o, com a boca próxima, a respiração quase única, argumentou alguma coisa absurda que ele nem queria ouvir.

Talvez por isso, duas lágrimas correram de seus olhos e ele tentou fechá-los e afastá-la, mas ela o impediu com a mão carinhosa, mas firme sobre sua boca. Em seguida, segurou o seu rosto, sorriu e o encheu de confiança. Ato contínuo, empurrou o seu rosto de modo a obrigá-lo a voltar-se para a porta.

Américo sorria e o fitava com carinho. Aliás, seu olhar carinhoso era dirigido aos dois.

Sem dizer nada, aproximou-se e os abraçou e ficaram assim, os três juntos. Precisavam tomar uma decisão. Américo parecia mais do que carinhoso, havia um vigor em seu corpo, em sua voz, como se um desejo quase incontrolável o atingisse. Suas mãos alternavam-se entre os seios de Heloísa e o pescoço de Greg, produzindo-lhe arrepios constrangedores, mas dos quais não ousava fugir.

Foi então que Heloisa, fez a pergunta decisiva, na verdade, uma conclusão questionada:

– Ficamos os três, só nós três juntos. Não podemos viver separados. Aceita Gregório?

Américo repetiu:


– Aceita?


Greg desviou com esforço o olhar para os livros, como se suplicasse ajuda. Era uma pergunta repulsiva, obscena, deplorável. Como não pensara nisso, quando deixara o barco à deriva a quem o quisesse tomar. Como poderia pensar numa proposta dessas? O capital, a exploração, o poder, a traição, a mediocridade, a ambição, o sonho, a poesia, o ... o idiota.

Ela então, suspirou, obrigando-o a encará-los. E perguntou:

– Então?


– Eu topo.

terça-feira, maio 16, 2017

Nosso barco quase a esmo

Fonte da ilustração: Pintura de Evanoli Resende Corrêa

Às vezes me pergunto o porquê das pequenas rusgas. Não falo das grandes intolerâncias, dos descalabros das discórdias, das quase tragédias.

Penso nos pequenos desentendimentos, nas mágoas secretas por presumíveis falhas de quem nos quer bem, nos silêncios provocados para evitar a verdade, tendo em vista que a pós-verdade é o que interessa.

Que importa que o amigo, o colega ou o companheiro de trabalho não tenha falado exatamente como nos foi contado, se o que pensamos é o que vale como verdade absoluta. O que existe de tão definitivo no pensar humano, que impõe apenas uma regra para o estabelecimento da verdade, cujas variantes se encerram em um único ponto de vista. O que vale é a intenção de censurar o outro, resultando no afastamento e definindo a distância como principal mecanismo para nossas desavenças.

Por que não ouvir a outra pessoa em vez de ficar apenas com uma única versão? Talvez porque o homem defina para si o caminho mais fácil, que não confronte com as ideias diversas, já que discorda com veemência das posições que fogem ao seu senso interno, e talvez por isso escolha o trajeto sem curvas e sem voltas, de preferência o mais plano e direto. As curvas geralmente nos levam a procurar outras saídas, e isto talvez nos dê mais trabalho e desconfiança, quiçá, medo.

Melhor agradar e confiar no alcoviteiro, embora a sua crítica se expresse a partir de um pensamento único, não observando condutas que conversem com outras perspectivas.

Melhor viver às escusas de momentos do que partilhá-los na íntegra, porque em nossa consciência atribulada, sabemos que a verdade não é tão manifesta , estreita e regateada. Ao contrário, exige mudança de paradigmas e certezas efêmeras.

Quem sabe, possamos encontrar a verdade apenas com um sorriso, um abraço, um carinho de amigo. Elementos estes que servem de âncora para firmar nosso barco, às vezes quase a esmo.

sexta-feira, maio 05, 2017

E a dor da saudade?

Muitos poetas, escritores, músicos e filólogos já reviraram de ponta-cabeça a palavra saudade. Um sentimento melancólico causado pela ausência de pessoas a que se estava efetivamente muito ligado.

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa mostra o termo saudade oriundo do latim “solitate”, isolamento, solidão, através das formas “soidade” e “suidade”, soedade , suydades , até à saudade na atualidade.

Como falar de saudade, se é um sentimento que se bifurca entre a alma e os sentidos, uma sensação de melancolia e vazio, da espera sem o retorno, da falta sem a presença. Uma palavra que não se traduz em outra língua, pela impossibilidade de demonstrar a amálgama de sentimentos que compõem o seu universo.

Mas os poetas a expressam com tal excelência de espírito, que a traduzem em nossa compreensão de mundo. Se não vejamos os versos do Chico Buarque, na música “Pedaco de mim”.

“Que a saudade dói como um barco/E evita atracar no cais”.

Através da figura do barco que se afasta e se desvia do cais, configura-se a interrupção do retorno. A saudade é a volta que não se conclui.

“É assim como uma fisgada/No membro que já perdi”.

Aqui, o poeta mostra a dor no lugar absurdo da ausência; pungente e aflitiva, que consome e tortura. Isto é a saudade.

A saudade afigura-se num corte cirúrgico da existência, como se comprova nos versos da mesma música.

“Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”.

A crueza do fracasso da esperança que aflorava, se transforma em desesperança. A ausência “do filho que já morreu” não permite o movimento mínimo de estabelecer uma ponte entre a mãe e o filho, o que seria natural. A saudade é essa impossibilidade de atravessar a ponte.

A saudade, porém institui uma regra pessoal, à medida em que se manifesta em nossa solidão, pela falta da pessoa amada, do(a) filho(a), do (a)amigo(a), dos pais. É um processo constante e rotineiro, e por mais que queiramos prosseguir o cotidiano, ela interefere a cada momento, em virtude da ligação ao objeto de nosso afeto.

Entretanto, por outro lado, a saudade permite quantificar a qualidade de nosso afeto e precisar a necessidade do encontro, da convivência, do carinho, dos pequenos segredos e grandes silêncios ou apenas do sorriso que nos conforta e amolece a alma.

quarta-feira, abril 12, 2017

Doce relação

A palavra é o desvendar de emoções, a representação fonética e gráfica de nossa simbologia pessoal e compreensão do mundo. É pela palavra, portanto, que agimos e interagimos com o outro. É a arma que garante nossa sobrevivência como ser humano. Entretanto, às vezes, ela é impossível de ser registrada, falada e ouvida e há momentos que seu significado fica desordenado e oculto, sem que possamos manifestar o mundo que a contém.

Por essa dificuldade, lembrei da interação que o paciente possui com o seu dentista, enquanto este realiza o seu trabalho.

É provável que haja centenas de artigos falando sobre o relacionamento entre o odontólogo e seus pacientes, entretanto, deve haver também muitas maneiras de tratar o assunto, pois a sensibilidade e o ponto de vista de cada um difere segundo a posição que exercem em determinada circunstânca, ou seja, de médico e paciente.

Por exemplo, há a observação do dentista sobre o seu paciente e há a percepção interna do paciente, coisa que raramente é compartilhada entre os dois.

Fico me perguntando o que pensa o dentista, quando conversa conosco, enquanto ficamos com a boca aberta, olhos arregalados como se estivéssemos no extase da morte e algumas lágrimas surgindo inquietas até o canto da boca. Dobra-se as pernas, estica-se os dedos dos pés, mexe-se as mãos, embora seja imprescindível ficar imóvel com a boca aberta e os olhos à deriva, sem ter a quem ou a quê olhar.

Na verdade, olha-se para o dentista, no caso daquele que fica em pé e mira diretamente em nossa boca e por mais que nos esforcemos em desviar o olhar, ficamos à mercê daquele exame que investiga nossas entranhas, como um detetive atento a qualquer desvio de conduta de nossos dentes desaparelhados. Sentimos sua presença próxima, suas mensagens para que fiquemos de boca aberta (boca grande, eles costumam dizer), mesmo que nossa arcada seja pequena e dificulte qualquer abertura maior, produzindo uma câimbra, como se o maxilar fosse desabar em nosso pescoço e a boca se espichasse como numa obra de Picasso. Então, movimenta-se as pernas novamente, coloca-se um pé sobre o outro, as mãos segurando a poltrona e, algumas vezes, uma segura o sugador, o que produz uma exaustão como se passássemos os 90 minutos do jogo de futebol, defendendo a bola como um goleiro precavido.

Mas lá vai aquele surfar de ferramentas em nossa boca, um desafio aos ouvidos, como se o ruído ensurdecedor da broca latejasse dentro do cérebro, atingindo nossas percepções salivares (se é que isto existe), dando aquele arrepio de giz riscando o quadro. Para completar o quadro, a inserção de algodão e gases, a resina e outros materiais de acabamento, sendo moldados, lixados, examinados, molhados e a boca enchendo de água, como se o barco naufragasse e impossibilidade de vir à tona, tal qual a vontade de vomitar sem poder expelir o material gosmento que nos invade a garganta. Sem falar nas agulhas de anestesia e os pequenos cortes, quando necessários. Então nossas mãos se agitam e tem-se a impressão que o cirurgião-dentista tem um certo prazer, como se a tortura fosse inerente ao trabalho.

Por momentos, imagino que ele olha para o lado, esboça sorriso irônico, quase psicopata e volta-se para o paciente, dobrando o seu corpo sobre ele e pergunta: “tudo bem?”. Mas como responder, segurando o sugador, a outra mão enfiada num canto da poltrona e a boca escancarada, cheia de algodões e a sensação de que daqui a pouco, o mundo acaba.

Ainda há os ruídos do lazer, provavelmente colando a resina ou outro material adequado à restauração. Aquele cilindro empurrando a dentadura, produzindo um som metálico e intermitente, o qual nos deixa na expectativa de mais um, mais dois, graças a Deus, acabou e fechararemos a boca, mas o cirurgião espera mais um pouquinho. Certamente, com um sorriso satisfeito. Só mais um pouquinho para a coisa dar certo.

Claro, que não é bem assim, ou melhor, nada acontece deste jeito. Mas a fantasia do paciente é a de quem se submete à tortura, completamente indefeso, sem a sua única arma, que é a palavra. No entanto, o cirurgião-dentista deve ter várias histórias a contar, inclusive essas de pacientes que paralisam, alarmados com o olhar intenso sobre suas cabeças e perdidos esperam ansiosos que as horas passem e o processo termine. Uma interação interessante, no nível de pensamento. A única arma do paciente, que é a palavra, lhe é impedida pela situação, mas sabemos que tanto um quanto o outro possuem o mesmo objetivo, embora cada qual o atinja de uma maneira. Que fazer? Coisa do ser humano.

quinta-feira, novembro 24, 2016

Sonhos na lagoa


Gosto de observar o cais. Dá-me uma sensação de abandono e uma certa melancolia boa.

Não sei se pela partida e chegada dos barcos ou por recordações do passado.

Coisas boas que se foram, ocultas num cantinho absorto, sem que se dê vazão a sua presença.

Às vezes passeio pela doca, observo de longe o brilho do mar reluzente, sol a pino e dia claro.

Ou até mesmo quando nuvens escurecem a lagoa, tenho prazer em alastrar o olhar e observar nas sombras que se moldam nas ondas, pequenas figuras que se evadem de meus sentimentos.

Quem sabe, um barco há muito tempo não aportou por ali, trazendo além de granjeiros ou pescadores, donas de casas, crianças a reboque chegando na cidade, despejando os sonhos ansiosos antes apenas mergulhados na imaginação.

Ou os que partem, barcos repletos de mantimentos, ferramentas ou utensílios de cozinha.

Mulheres que acenam para os que ficam e descem inseguras no molejo das ondas. Acocoram-se nos bancos de madeira, molhando os pés nas águas que invadem os barcos. Revisam as compras, espiam o mercado, investindo em compras futuras.

Quem sabe voltarão no próximo mês carregando além das esperanças, novos caminhos que talvez partilhem dali em diante.

Ou talvez, voltem para suas terras: ilhas de margens tranquilas, casinhas acenando entre madeira e tijolo, redes espalhadas por gramados, plantações.

Lá vão elas, mulheres, crianças, compras, sonhos, poesias na lagoa.

Homens que passeiam seguros e firmes de um barco a outro, carregando consigo as lembranças da cidade, os amigos que encontraram, cuidadores de carros que nao são seus, os peixes que transitam em suas cestas de desejos: trocas perfeitas de suas necessidades, que se alternam com as contas, o médico, os impostos, a poupança.

E lá se vão e voltam no outro dia, assim como o sol, que hoje se alterna com as nuvens escuras, lá longe, mas que de vez enquanto, empurra-as para o lado e surge majestoso, vermelho magenta, fenecendo aos poucos, vencido pela hora.

E a lua sobressái, discreta. Mas agora, é melhor avistá-la da janela.

Não dá pra enfrentar outros sonhos que já foram quebrados.

Melhor não dividir a rua, muito menos a noite.

terça-feira, junho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

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