
A palavra é o desvendar de emoções, a representação fonética e gráfica de nossa simbologia pessoal e compreensão do mundo. É pela palavra, portanto, que agimos e interagimos com o outro. É a arma que garante nossa sobrevivência como ser humano. Entretanto, às vezes, ela é impossível de ser registrada, falada e ouvida e há momentos que seu significado fica desordenado e oculto, sem que possamos manifestar o mundo que a contém.
Por essa dificuldade, lembrei da interação que o paciente possui com o seu dentista, enquanto este realiza o seu trabalho.
É provável que haja centenas de artigos falando sobre o relacionamento entre o odontólogo e seus pacientes, entretanto, deve haver também muitas maneiras de tratar o assunto, pois a sensibilidade e o ponto de vista de cada um difere segundo a posição que exercem em determinada circunstânca, ou seja, de médico e paciente.
Por exemplo, há a observação do dentista sobre o seu paciente e há a percepção interna do paciente, coisa que raramente é compartilhada entre os dois.
Fico me perguntando o que pensa o dentista, quando conversa conosco, enquanto ficamos com a boca aberta, olhos arregalados como se estivéssemos no extase da morte e algumas lágrimas surgindo inquietas até o canto da boca. Dobra-se as pernas, estica-se os dedos dos pés, mexe-se as mãos, embora seja imprescindível ficar imóvel com a boca aberta e os olhos à deriva, sem ter a quem ou a quê olhar.
Na verdade, olha-se para o dentista, no caso daquele que fica em pé e mira diretamente em nossa boca e por mais que nos esforcemos em desviar o olhar, ficamos à mercê daquele exame que investiga nossas entranhas, como um detetive atento a qualquer desvio de conduta de nossos dentes desaparelhados. Sentimos sua presença próxima, suas mensagens para que fiquemos de boca aberta (boca grande, eles costumam dizer), mesmo que nossa arcada seja pequena e dificulte qualquer abertura maior, produzindo uma câimbra, como se o maxilar fosse desabar em nosso pescoço e a boca se espichasse como numa obra de Picasso. Então, movimenta-se as pernas novamente, coloca-se um pé sobre o outro, as mãos segurando a poltrona e, algumas vezes, uma segura o sugador, o que produz uma exaustão como se passássemos os 90 minutos do jogo de futebol, defendendo a bola como um goleiro precavido.
Mas lá vai aquele surfar de ferramentas em nossa boca, um desafio aos ouvidos, como se o ruído ensurdecedor da broca latejasse dentro do cérebro, atingindo nossas percepções salivares (se é que isto existe), dando aquele arrepio de giz riscando o quadro. Para completar o quadro, a inserção de algodão e gases, a resina e outros materiais de acabamento, sendo moldados, lixados, examinados, molhados e a boca enchendo de água, como se o barco naufragasse e impossibilidade de vir à tona, tal qual a vontade de vomitar sem poder expelir o material gosmento que nos invade a garganta. Sem falar nas agulhas de anestesia e os pequenos cortes, quando necessários. Então nossas mãos se agitam e tem-se a impressão que o cirurgião-dentista tem um certo prazer, como se a tortura fosse inerente ao trabalho.
Por momentos, imagino que ele olha para o lado, esboça sorriso irônico, quase psicopata e volta-se para o paciente, dobrando o seu corpo sobre ele e pergunta: “tudo bem?”. Mas como responder, segurando o sugador, a outra mão enfiada num canto da poltrona e a boca escancarada, cheia de algodões e a sensação de que daqui a pouco, o mundo acaba.
Ainda há os ruídos do lazer, provavelmente colando a resina ou outro material adequado à restauração. Aquele cilindro empurrando a dentadura, produzindo um som metálico e intermitente, o qual nos deixa na expectativa de mais um, mais dois, graças a Deus, acabou e fechararemos a boca, mas o cirurgião espera mais um pouquinho. Certamente, com um sorriso satisfeito. Só mais um pouquinho para a coisa dar certo.
Claro, que não é bem assim, ou melhor, nada acontece deste jeito. Mas a fantasia do paciente é a de quem se submete à tortura, completamente indefeso, sem a sua única arma, que é a palavra. No entanto, o cirurgião-dentista deve ter várias histórias a contar, inclusive essas de pacientes que paralisam, alarmados com o olhar intenso sobre suas cabeças e perdidos esperam ansiosos que as horas passem e o processo termine. Uma interação interessante, no nível de pensamento. A única arma do paciente, que é a palavra, lhe é impedida pela situação, mas sabemos que tanto um quanto o outro possuem o mesmo objetivo, embora cada qual o atinja de uma maneira. Que fazer? Coisa do ser humano.
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