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Nosso barco quase a esmo

Fonte da ilustração: Pintura de Evanoli Resende Corrêa

Às vezes me pergunto o porquê das pequenas rusgas. Não falo das grandes intolerâncias, dos descalabros das discórdias, das quase tragédias.

Penso nos pequenos desentendimentos, nas mágoas secretas por presumíveis falhas de quem nos quer bem, nos silêncios provocados para evitar a verdade, tendo em vista que a pós-verdade é o que interessa.

Que importa que o amigo, o colega ou o companheiro de trabalho não tenha falado exatamente como nos foi contado, se o que pensamos é o que vale como verdade absoluta. O que existe de tão definitivo no pensar humano, que impõe apenas uma regra para o estabelecimento da verdade, cujas variantes se encerram em um único ponto de vista. O que vale é a intenção de censurar o outro, resultando no afastamento e definindo a distância como principal mecanismo para nossas desavenças.

Por que não ouvir a outra pessoa em vez de ficar apenas com uma única versão? Talvez porque o homem defina para si o caminho mais fácil, que não confronte com as ideias diversas, já que discorda com veemência das posições que fogem ao seu senso interno, e talvez por isso escolha o trajeto sem curvas e sem voltas, de preferência o mais plano e direto. As curvas geralmente nos levam a procurar outras saídas, e isto talvez nos dê mais trabalho e desconfiança, quiçá, medo.

Melhor agradar e confiar no alcoviteiro, embora a sua crítica se expresse a partir de um pensamento único, não observando condutas que conversem com outras perspectivas.

Melhor viver às escusas de momentos do que partilhá-los na íntegra, porque em nossa consciência atribulada, sabemos que a verdade não é tão manifesta , estreita e regateada. Ao contrário, exige mudança de paradigmas e certezas efêmeras.

Quem sabe, possamos encontrar a verdade apenas com um sorriso, um abraço, um carinho de amigo. Elementos estes que servem de âncora para firmar nosso barco, às vezes quase a esmo.

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