Mostrando postagens com marcador unhas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador unhas. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, setembro 04, 2015

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.

Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.

Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.

Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.

Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.

– O que eu pedi? – questionou, indignada.

– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?

Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?

Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens. Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.

Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.

domingo, julho 19, 2015

Divagações de um futuro prefeito

Pescava às margens da lagoa, entre pequenas regiões escarpadas, formando uma enseada de rara beleza. Talvez pelo brilho do sol que se confundia pela luminosidade fraca, mas insistente da noite, ou pelo seu jeito de ver as coisas, especialmente naquele dia. Tinha consigo que as coisas mudariam e para melhor. Conversava com os peixes, em silêncio. Sabia que o escutavam. Encostou um pouco mais na ribanceira, soltou a barriga branca e empinada sobre o calção velho e deixou-se ficar assim, pensativo, malandreando no dia que findava. Passou a mão pelos cabelos grisalhos, enfiando os dedos desajeitados, puxando-os para trás. Este era o seu último dia sem a preocupação dos grandes gestos, das atitudes severas, dos compromissos inadiáveis. Deu vontade de dormir ali mesmo, deixar a mulher esticada na rede, como de hábito até que a aragem noturna a empurrasse para o interior da casa. Ficou ali, desistindo da pesca, desistindo de conversar com os peixes, pensando apenas no seu futuro. Um futuro tão diferente do que era a sua vida, um homem do mar e da agricultura, acostumado a sujar as unhas na lama, a engraxar os dedos no caldo oleoso do peixe, a estrebuchar as tripas, limpar as escamas, contar os trocados da venda. Além é claro, das manifestações políticas, que já há algum tempo faziam parte de sua vida. Mas era coisa pequena, coisa de sindicato de pescador: algumas lutas sobre o tempo do defeso, brigas particulares entre os seus, nada de muito porte. Agora iria assumir a direção de uma cidade. Aí a coisa pega. Diocleia não estava acostumada com aquela gente na cidade, ao contrário, tinha até as suas rixas com o povo esnobe, principalmente ela, que tinha dificuldades com as letras. Mas ele era muito senhor de si e sabia o que estava fazendo. Também tinha Moira, a morena da venda do Seu Chico. Essa ia ficar pra lá. Como é que ia viver sem os agrados daquela zinha? Mas tinha que deixar a sua ilha, a sua lagoa, as suas galinhas e as poucas plantações que enfeitavam sua horta e partir para a cidade. Lá começava a sua saga. Sem nada disso, sem a Moira, a morena dos peitos duros e a voz de taquara rachada. Só com a sua Diocleia. Essa não tinha jeito de largar. Agora seria a primeira dama. Dizem que tem político que conserva a mulher, como o único amor de sua vida. Ele não acreditava. Para ele, que tudo acontecera de repente, sem se preparar, era quase impossível. Talvez para os que viveram na luta politica durante muito tempo, juntos, eles e as esposas, mas não era o caso. E depois, como diz o povo, todo politico é meio sacana. Não pode fugir à regra. Ainda tem o futuro dos filhos para cuidar. O tempo passa rápido e mais dia, menos dia, ele tomarão o seu lugar. E precisam estar preparados. Um dia, a família Preto fará nome na cidade! E quem sabe, sejam prefeitos, filhos do prefeito, sobrinhos do prefeito, primos do prefeito, noras, genros, tios...

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS