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quarta-feira, março 21, 2018

Lascívia


Este conto é um desafio de uma oficina online,

sobre a elaboração

de um conto erótico com o protagonismo masculino.


Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa.

Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta.

Espiou pelo olho mágico e avistou uma cara disforme de fundo de colher. Abriu a porta e um homem alto, de barba e cabelo curto o observava com indisfarçada atenção. Seria alguém interessado na aula de pintura? Mas teve um sobressalto, quando o reconheceu. Era o mesmo do carro que o interpelara no dia anterior, quase cometendo um acidente. Fez um gesto rápido de fechar a porta, mas o outro o impediu com o pé.

O homem se desculpava por ter vindo até a sua casa e explicou de imediato, que soubera por um de seus alunos da aula de pintura. Disse, por fim, que procurava por uma pessoa.

Carlos tirou o celular do bolso e digitou um número. O outro ficou inquieto, pedindo que não chamasse a polícia, pois não era um criminoso. Só queria fazer algumas perguntas. Mostrou seus documentos e acrescentou que era um empresário do ramo do aço.

Carlos gritou, irritado:

― Porra, cara, não me interessa a tua vida, nem o que tu faz! Pra mim, isso é assédio à privacidade e perseguição. Não sei quais são os teus objetivos e vou chamar a polícia. Não te conheço, não tenho nenhum negócio contigo, portanto vaza!

Neste momento, o homem retirou o pé da porta e começou a chorar, em desespero. Em soluços, dizendo-se constrangido, pediu pelo amor de Deus, que o ouvisse. Ele só queria conversar, fazer algumas perguntas.

Carlos, intrigado, não sabia o que fazer. Um pouco desarmado, perguntou:

― Mas o que tu qué saber? É aula de pintura? Sabes o que faço aqui, tenho meia dúzia de estagiários e algumas mulheres bonitas. Elas ficam no meio entre os cavaletes, despidas, e cada pintor com a sua prancheta e suas tintas. Resumindo, é isso que fazemos. Não tem segredo. Agora, cara, disse tudo, pode ir embora.

― Eu tenho uma oferta a fazer. Deixe-me entrar, ver o local onde a aula acontece, conversar um pouco. Não leve a mal, mas a minha oferta é em dinheiro, eu pago por uma aula ou as do mês todo. Só quero que confie em mim e converse comigo. Olha os meus documentos, vê o meu celular, aqui estão todos os meus dados.

Carlos não quis ver os documentos. Coçou a cabeça, dividido. Um mês de aula, pensou. Bem que seria uma solução para algumas dívidas. Então, deu a cartada:

― Trezentos.

O outro sem piscar abriu a carteira e entregou três notas de cem reais. Carlos pegou o dinheiro, um tanto chateado consigo próprio. Mas que mal havia, se o homem mesmo fizera a proposta? Ele precisava de dinheiro, o outro queria pagar. Então que entrasse.

Ele entrou, deu alguns passos em direção a uma poltrona, a mesma em que Carlos estava anteriormente sentado, observando a rua pela vidraça. Olhou em torno e mostrou-se um pouco apreensivo. Perguntou se Carlos não queria olhar os documentos para se asseverar que ele era um homem de bem. Carlos, então leu o nome na identidade: Paulo Sorren Herrmann.

― Tu é bem conhecido. Teu nome sempre na mídia.

― Sim. Mas não vamos falar de mim, pelo menos neste aspecto empresarial, de homem bem sucedido, com família e filhos. Eu sou um homem que procuro muitas coisas, que não encontro na minha vida profissional e pessoal. Por isso, quase supliquei para entrar.

― Não entendi nada.

― Vou me explicar. Eu acho maravilhoso este ambiente, este cenário. Tudo aqui me dá uma atmosfera de sensualidade, de lascívia.

―Vou te dizer, que somos muito liberais na sexualidade, mas posso te garantir que sou hétero.

― Não te preocupa. Falei no ambiente apenas. É ele que me envolve, que me cerca, que me consome. Se me deixar ficar aqui, quando houver aula, eu posso pagar muito mais.

Carlos o olhava preocupado. Afastou-se um pouco e ofereceu uma cerveja.

― Não quero beber. Quero que você me fale tudo, me explique o que acontece e como acontece aqui.

― Eu resumi há pouco.

― Mas me fale mais, dê detalhes. – Dizendo isso, esticou as pernas parecendo mais relaxado.

Carlos foi até o quarto e trouxe um cigarro de maconha. Sentou-se num banco de couro e fumou lentamente. Ofereceu a ele, mas Paulo argumentou que nunca tinha usado.

― Tu é um burguês safado.

― Porque diz isso? Tu que te diz liberal e tem preconceito contra mim.

― Beleza. Tem razão.

Carlos fumava e enchia o ambiente de um aroma adocicado. O outro ficava cada vez mais à vontade. Levantou-se, caminhou pela sala e observou os cavaletes encostados na parede, os bancos altos de madeira, a banqueta de couro onde as modelos sentavam. Olhou para Carlos, que agora deixara o banco para sentar-se no chão, numa posição imitando a de lótus. Indagou:

― Não vai me contar tudo?

Carlos fungou e falou com a voz um tanto fanha, em virtude do fumo. Sorriu e perguntou se ele queria saber tudo.

― Sim, tudo.

― Então para de girar pela sala. Senta aí.

Começou a descrever a aula e Paulo tinha a impressão de que já estivera naquele local, que sabia tudo o que iria acontecer, mas gostava de ouvir, como se fosse a história das mil e uma noites. Uma história que se repetia, mas retomava um sabor diferente.

Por fim, repetiu o que ouvira:

― Então a modelo lindíssima senta-se na banqueta, no círculo, completamente nua. Homens e mulheres a ficam analisando entre os cavaletes, observam o seu corpo, o contorno dos seios, a saliência da barriga, o umbigo, a genitália e eles se excitam.

― Não, ninguém se excita. É um trabalho, cara, se orienta!

― Ah, não me diz que tu não fica de pau duro também.

― Claro que não, pelo menos, não de propósito. Pode acontecer, mas a gente se controla.

― Eu já estou excitado, imaginando tudo que me disseste.

― Não é legal, cara. Isso é só imaginação. Aqui não é para isso.

― Mas eu imagino sim, imagino os olhares enviesados, fingindo que estão desenhando ou pintando. Eles observam os detalhes e sentem tanto tesão que quase não resistem. Tanto eles, como elas. Quando um homem está lá, também observam a silhueta, a barriga, e deslizam com seus olhares por reentrâncias que mais se interessam, observam o pau caído, encolhido, o saco achatado no banco e se seduzem a si próprios.

Em seguida, suspira sôfrego e prossegue:

―Eu preciso participar de uma aula. Só vou encontrar aqui, o que nunca consegui no meu meio, tu entende?

―Aqui não é casa de prostituição, cara, deixa de ser vacilão. Por que tu não vai na zona ou contrata uma garota de programa.

― Assim, tu tá me ofendendo. Não podes acabar com a minha ilusão, com o meu sonho. Com prostituta, tudo é falso. Aqui é real.

― Não, nenhuma mulher ou homem, nenhum modelo vem pra se exibir com qualquer intenção sexual. Ninguém vem vender o corpo aqui. Isso é uma aula de arte, cara.

― Pois então, eu não quero comprar nada. Só a tua permissão. O gozo só é verdadeiro, quando é espontâneo. É isso que preciso.

― Mas o outro não sabe da tua intenção. Ele é um profissional.

― Pode saber. Eu posso me excitar com quem está ali no círculo e acabar gozando, entende. Pode ser um ou dois. Uma mulher e um homem. Sem eles saberem a princípio, mas depois, haverá uma reação subliminar que aos poucos vai nos comprometendo. Vai atingindo a todos, como uma orgia de sedução.

― Então tu é gay.

― Sou bi e só sinto prazer assim. Eu sonho com isso, Carlos. Por favor, deixa eu participar da aula de artes, eu quero o círculo, quero os olhos escondidos e comprometedores. Eu sei, que aos poucos, todos vão sentir a mesma paixão, o mesmo tesão. Basta haver alguém que os seduza.

― E tu acha que pode fazer isso?

― Posso, assim como fiz contigo.

― O que tu queres dizer, cara? Que porra é essa?

― Que assim como a Sharazade eu recontei a história e tu revivesse tudo. Tu estás excitado, to vendo daqui.

― Cara, já te ouvi demais, se toca. Vai embora, vaza.

― Não fica irritado, sei que és hétero, é normal, não muda nada. E eu não vou sair, eu paguei pra me ouvires, lembras? Agora quero que marques uma aula. Eu preciso ter essa experiência.

Carlos levantou-se, dirigiu-se à janela e abriu a cortina. Uma luz tênue se estabeleceu, expressando o entardecer que findava. O outro se aproximou e falou quase ao seu ouvido:

― Eu espero. Não precisa ser amanhã. Quando tu quiser.

Carlos não disse nada. Sentiu com prazer o aroma adocicado que ainda envolvia a sala e como o sultão Shariar, quis ouvir a história de novo.

Fonte da ilustração: Efes Kitap - site: https://pixabay.com/pt/users/efes-18331/

quinta-feira, setembro 28, 2017

Total desassossego

Quando a vida lhe parecia sorrir, sentia-se em total desassossego. Sampaio não era de se envolver nos problemas alheios, ainda bem, dizia consigo, já lhe bastavam os seus. Mas de uma hora para outra, passou a ter desejos estranhos, que não lhe cabiam em seu pensamento conservador. O que poderia lhe causar mal a melhoria no emprego, o galgar melhores condições de trabalho, inclusive de salário? Sei lá, o tal do desassossego, o temor de que alguma coisa lhe acontecesse, sempre vinha a cabresto. Trabalhava numa empresa de informática e seus conhecimentos na área nunca decepcionavam a chefia. Sua vida familiar era tão estável como água parada. Tinha mulher e filha que completavam um ciclo de ajustamento doméstico. Tudo muito certo, muito adequado, bem nos trilhos.

Sampaio também não saía da linha, como costumava dizer um dos colegas mais chegados, que lhe cabia na categoria de amigo. Com ele, fazia até confidências.

Mas Sampaio andava inquieto. Quando deixava o carro no estacionamento da empresa, alguma coisa lhe avisava, como um instinto, uma competência de quem profetiza que alguma coisa estava errada. E o pior, é que ele não conseguia decifrar o enigma. Talvez fossem aqueles pensamentos que não ousava deixá-los assumir voz. Ficavam na oculta, jaz em seu mais recôndito cuidado.

Entretanto, um dia sentiu-se mal, um aperto no peito, coisa normal para quem está muito tenso, diziam uns, coisa de quem sofre calado, diziam outros. Ele não dizia nada, mas aquela falta de ar sinalizava uma fronteira que avistava aos poucos e que o deixava paralisado. O pânico é o pior negócio, pensava ele. Se se deixar levar, vai para o fundo do poço ou da cova. Isso lhe dava arrepios. Foi aí que decidiu se abrir com o tal amigo, pediu-lhe um conselho.

O amigo, Chagas encarou-o intrigado. Sampaio não era de fazer perguntas, muito menos propo—rcionar qualquer aproximação a respeito de sua vida. Engoliu em seco e o ouviu, compenetrado.

– Sinto que estou com um problema grave e quero que você me ajude. Chagas, você sabe o quanto sou certinho na vida, ando em linha reta, não desvio um milímetro do meu caminho, mas agora, tem uma coisa que me incomoda.

O amigo olhou para os lados e percebeu que alguns colegas passeavam pelo escritório, dissimulados, fingindo que faziam uma coisa, mas faziam outra, isto é, queriam ouvir a conversa. Então sugeriu a Sampaio que saíssem e fossem ao bar.

– Não. Você está louco! Não posso! O bar vai ser a minha perdição.

– Como assim?

– Se você não me ouvir, como vou pedir a sua ajuda? Deixa pra lá, Chagas, você não vai me entender, mesmo. Vamos esquecer tudo o que falei.

– Espera aí, você não falou nada. Disse que anda em linha reta, isso todo mundo sabe. O que ninguém sabe é o que você queria me dizer, nem eu!

– Por que você quer saber, hem? Vai me ajudar?

Chagas deu de ombros. Claro que queria ajudar, apesar da inconfessável curiosidade que o amigo despertara. Então, pensou e retribuiu.

– Bom, se você não quer o bar, entao o problema está lá. Que foi, você ficou viciado em bebida?

– Se fosse isso, meu amigo, não era nada demais. Quero dizer, ainda tinha remédio.

– Mas então?

Sampaio pensou um pouco. Olhou para o amigo e viu o seu olhar iluminado, o que sinalizava grande curiosidade. Evitou falar alguma coisa que o comprometesse, mas teria que decidir se precisava de sua ajuda e sabia de antemão que sim. Então, pediu para irem a outro lugar, quem sabe numa biblioteca.

O amigo estranhou, afinal Sampaio não era dado a leituras. Aliás, nunca o tinha visto falar em livros ou visitar uma biblioteca. Sampaio insistiu, não ficava longe dali, talvez três quadras apenas e iriam conversando no caminho. Chagas, curioso como estava, aceitou de pronto o convite, embora bastante intrigado.

Na rua porém, a passos curtos, os dois não conversavam, ou melhor, Sampaio não abria o bico. Quando Chagas insistiu, ele advertiu que conversariam lá dentro, ali, na rua, havia muita gente, talvez até algum conhecido que os ouvissem e até os seguissem.

Andaram lado a lado em silêncio. Quando chegaram na biblioteca, escolheram uma mesa a um canto, um pouco afastada de outros leitores. Chagas, então perguntou, decidido a saber tudo de uma vez:

–E aí, me conta tudo.

–Não é bem assim, não é fácil, de uma hora para outra, me abrir com você, como se fosse num confessionário.

– Por que? O que há de tão grave?

– Um confessionário, não tinha pensado nisso. E se eu falasse com um padre? Ele me receitaria dez ave-marias, um pai-nosso e tudo estaria certo. Eu não teria por que me preocupar com que alguém soubesse e ainda seria absolvido.

– Porra, Sampaio, está surtando? Desembucha de uma vez! Sou seu amigo ou não sou?

Neste momento, um casal que estava numa mesa transversal a deles, voltou-se com a alteração da voz de Chagas. Sampaio respondeu com voz sumida:

– Claro que você é sim, por isso estou aqui. Mas fala baixo, isso é uma biblioteca.

– Está bem, eu vou me controlar. Mas fala de uma vez, o que está acontecendo com você. Tem uma doença grave?

– Antes fosse, antes eu tivesse seis meses de vida. Estaria aliviado.

– Então?

– Penso muito em minha mulher, na minha filha...

– Então o problema é com ela? Ela traiu você?

– Para falar a verdade, antes fosse. Eu preferia ser corno do que...

– Mas que porra está acontecendo com você? Não vai me dizer ...

– O que voce está pensando? Não, isso não.

– Você é gay?

– É o que pensou não é?

– Só posso pensar uma coisa destas! Você não tem uma doença grave, sua mulher não o traiu, o que quer que eu pense?

– Não pense. O que está acontecendo comigo, não é facil explicar, nem entender, nem assumir, nem acreditar! Se eu fosse gay, tinha saída, mas o problema é que não sou gay e não tenho saída!

– Não acredito que está dizendo que ser gay não seria um problema para você.

– Maior do que estou vivendo, não!

–Então fala, cara, pelo amor de Deus.

– Você sabe, além de minhas ideias mais à direita, sempre fui bastante conservador, bom marido, bom pai, um homem religioso.
¬

– Sei, um poço de virtudes!

– Por favor, Chagas, não zomba de mim, o caso é grave.

– Não estou zombando. Só espero que você abra o jogo.

– Eu estou começando a falar, veja bem que fiz um pequeno resumo de minha personalidade e minhas atitudes. Também sempre fui dedicado ao meu trabalho e muito disciplinado.

– Isso é verdade.

– Pois é, mas agora, depois de tanto tempo assistindo a mídia, vendo tanta informação desencontrada, assistindo versões estranhas sobre tudo, parece que contraí uma doença.

– Que doença?

–Uma coisa semelhante à direitice aguda, ou guinada à extrema direita ou medo da esquerda, não sei. Sonhei até com intervenção militar, com o Bolsonaro na Presidência!

– Que porra é essa Sampaio?

– Eu estou em pânico, Chagas. Tenho dúvidas sobre tudo e sobre todos. Todos os dias o castelo de cartas se desmancha e fico cada dia mais depressivo. Outro dia, cheguei em casa e minha mulher me contou que gastara muito na feira, que os produtos estavam caros, que o vizinho do apartamento 22 foi demitido, que não deu para encher o tanque de combustível e que o aluguel estava atrasado. Eu não acreditei nela!
¬

– Por que? Está tudo assim mesmo, pela hora da morte, como dizia o meu pai. Por que duvidou dela?

– Perguntei: deu na Globo? Ela não soube responder!

Chagas entendeu que o caso do amigo era grave, entretanto ousou ainda perguntar:

– Por que não quis ir ao bar?

Ele não respondeu, ainda estava inebriado pelos pensamentos anteriores. Por isso, prosseguiu, enfático:

– Eu não confio mais na minha mulher!

Chagas sorriu, satisfeito. Quem sabe havia cura. Então era isso, ele sabia que tinha coisa com mulher. Sampaio concluiu:
– Eu acho que ela virou comunista!

Em seguida, olhou para os lados, deu alguns passos, afastando-se da mesa e sentiu um arrepio ao ver uma bibliotecária que se aproximava com um broche que mais parecia uma estrela vermelha. Resmungou, atônito: Pensei que isso eu só via no bar!

quarta-feira, maio 31, 2017

ISSO NÃO DEU NA TV

No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva.

O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los. As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia.

Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida.

Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum.

Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da família. Passava os dias e as noites experimentando as horas de sucesso, de festa ou angústia.

Muitas vezes, acalentara o menino que chorava para a mãe desfrutar do passeio ou do jantar. Outras, vira o sol nascer ao lado da menina com febre e olhos murchos, pensando que ela era mais uma ferramenta para passar a dor.

Na verdade, gostava de seu trabalho, gostava dos filhos que não tivera, gostava da família que era sua.

Nem sempre, porém foi um ente familiar. Muitas vezes, precisou afastar-se quando os momentos não indicavam a sua presença. Dócil e cuidadosa, afastava-se devagar, às vezes arrastando chinelos pelo avançado da noite.

Mas vivia em seu quartinho, hoje tão quente por causa do ferro elétrico.

Tinha uma TV no quarto e se satisfazia em ver que as atrizes negras faziam papéis semelhantes aos que ela desempenhava.

E amavam os patrões tanto quanto ela.

E até sofriam caladas em seus quartos.

Então, estava tudo certo. Ela aprendera com a TV. Aprendera muito.

Também aprendera que a maioria dos homens presos e considerados bandidos eram negros e principalmente jovens. Eles não usufruiram das escolas boas, nem dos conselhos dos pais, nem da disciplina escolar. Não eram bons como os filhos da patroa. E se o governo dava escolas, dava educação (ela considerava assim, que tudo era dado e grátis), eles não aproveitavam. Preferiam ficar na rua fumando maconha, vivendo entre gente ruim.

Os outros não fumavam maconha. Aproveitavam a oportunidade e se acaso acontecesse um acidente, eram reconduzidos ao rumo certo, cuidados em clínicas e tudo ficava bem.

Ela tinha aprendido isso na TV.

Também percebera que as meninas negras e pobres, muitas vezes, se desviavam do bom caminho.

Não iam à escola e se iam, desobedeciam as regras, nem participavam da igreja, não se harmonizavam em grupos para estabelecer boas relações, como os filhos da patroa e seus amigos. Acabavam na vida fácil, tinham filhos sem a idade adequada e às vezes, morriam fazendo abortos.

Eram meninas desprezíveis para a sociedade e para a família religiosa.

As filhas da patroa e suas amigas sabiam resolver suas pendengas, caso acontecesse uma tragédia. Eram levadas a clínicas com muita cautela e carinho e voltavam como se o mundo recomeçasse.

Talvez houvesse uma maneira de reconstruírem as suas vidas, que somente pessoas de classe como a patroa soubessem discernir.

Isso também ela tinha aprendido com a TV.

Algumas meninas de seu bairro foram estupradas e o que saía na mídia e nos círculos de fofoca é que elas incentivavam aqueles homens a agirem como animais.

Portanto, eram culpadas, pois usavam roupas vulgares, mostrando mais do que deviam, dançavam funk e portanto, nem podiam reclamar.

Afinal, os homens tem seus desejos e muitas vezes, não conseguem controlar-se, ainda mais quando incitados.

As meninas da casa, como as da patroa, ao contrário, sabiam muito bem manipular um homem, à custa de sua educação e inteligência. Quando iam a festas, só saiam com o seu grupo, porque não lhes interessava quem não fosse da mesma classe. E tinham razão. Não se misturavam com qualquer um. E se dançavam funk nas festas ou usavam algum incentivo à alegria, tudo eram muito bem controlado pelo grupo. Elas sabiam se comportar.

Tudo isso, Nízia aprendera na TV.

Havia também alguns meninos que eram até seus parentes, um que outro jogador de futebol, mas alguns que tinham essa mania de virar mulherzinha. Queriam usufruir dos mesmos desejos das mulheres, como se assim fossem. Uns até usavam maquiagem. Outros andavam se agarrando, desejando outros homens e até considerando-os namorados.

Um deles, aquele que era seu parente, fora assassinado, alvejado por um policial, que se dizia assediado.

Afinal, devia ter sido muita pressão para o tal policial, afinal ser assediado por um gay! Ele, um cara da lei! Houve até a interferência de um deputado homofóbico contra o menino, é claro.

Mas está correto, ele se desviou do bom caminho. Isso é uma doença.

Na casa grande, quero dizer, na da patroa, também ocorreu algo parecido, mas foi com o dono da casa, o patrão, parece que um amigo do filho o assediou ou foi ele, não sabia. Claro que a coisa fora resolvida na base da educação. Aquilo tudo não passara de uma brincadeira, em virtude de terem bebido um pouco demais e a patroa entendera e todos foram felizes.

Tudo isso, ela havia aprendido na TV.

Certa vez, Nízia recebeu uma visita de um grupo de mulheres negras que lutavam pela dignidade da mulher e sabedoras de seus problemas relacionados à família, ao seu bairro e a pessoas que conhecia, tentaram ajudá-la.

Deram-lhe folhetos, indicaram leis, avaliaram até o seu trabalho, como se morasse na senzala.

Nízia ficou muito braba e não entendeu o que diziam, na verdade, não encarava como verdadeiros aqueles fatos.

Naquela noite, porém, Nízia não conseguiu dormir.

Ligou a TV, assistiu a novela, depois um programa humorístico que mostrava uma mulher negra que reforçava o estereótipo de mulher sensual, de bunda grande e poderosa.

Mais tarde, abriu o folheto e leu alguma coisa relacionada a mulheres negras que venceram como advogadas, educadoras, escritoras ou funcionárias públicas. Não representavam ela.

Isso ela não aprendeu na TV, por isso perdeu o sono.

sábado, outubro 01, 2016

A fotografia de Santa - CAP. 7

No sexto capítulo, com a revelação da proposta de Santa à família e suas condições, todos começaram a questionar-se descobrindo as falhas uns dos outros, ou mesmo deixando vir à tona tudo o que pensam. A preocupação principal é conhecer as mensagens que todos receberam. Letícia, indignada pela traição do marido e brigando muito com os irmãos, exige que todos revelem as mensagens que receberam. Chegamos agora ao nosso 7º capítulo de nosso folhetim dramático. Divirtam-se como dizia o poeta, porque hoje é sábado.

Capítulo 7

Fonte da ilustração: https://morguefile.com/search/morguefile/18/library/pop. autor: TheBrassGlass

Alfredo que se afastara do grupo após estar na berlinda, dirige-se à mãe, com frieza.

— Faltam apenas o bispo e Linda. Sabe, mamãe, eu não entendo o que a Linda tem a ver com esta história.

Santa aproveita a oportunidade para deixar claro o seu objetivo. Parece mais forte do que toda a repercussão dos acontecimentos. Dirige-se a Alfredo, com estudada segurança.

— Se Linda quiser contar, vocês saberão. Sabe, meu filho, sua irmã não soube interpretar o que eu pedi a você. Ela está desequilibrada e está vendo tudo aos extremos.

— Tem certeza de que a desequilibrada sou eu? – pergunta, encarando-a com ódio.

Mas é Alfredo que responde num tom de extrema emoção, tão sofrido e amargurado, que talvez fosse a única observação que fizesse Santa rever o seu pedido. Nada, no entanto, pode impedi-lo de expressar toda a sua revolta.

— Não se preocupe, comigo mamãe. Sei muito bem o que a senhora quis dizer. Eu sempre senti nos seus olhos uma acusação permanente. Eu sempre soube da sua desconfiança, inclusive, porque não conseguia esconder no próprio tratamento que me dispensava. Às vezes, mamãe, a senhora era rude, fria, quase cruel. Não queria que eu chorasse como uma meminha, lembra? Não admitia que eu brincasse com as meninas, que tivesse outros interesses do que jogar bola. Eu sempre senti sobre mim o peso do seu olhar. Ele sempre queria me dizer alguma coisa, uma acusação, e eu estava sempre em pecado. Cada pensamento era um pecado, cada gesto em direção ao meu sentimento, era um pecado, uma punição.

— Por favor, Alfredo, pare, não continue meu filho. – termina a frase num resmungo choroso.

Ele, entretanto, soma forças para prosseguir com mais ímpeto:

— Por que mamãe? Agora não lhe interessa mais a minha exposição? Foi a senhora que botou na roda que eu... eu tenho dificuldades.

— Todo mundo sabia que ele era veado – avalia, Ricardo, tentando falar baixo no ouvido de Letícia.

Tavinho, no entanto, ao ouvir o cunhado, o recrimina, com raiva:

— Cala boca, Ricardo, eu te quebro a cara!

— Deixa, Tavinho. Parece que ele tem razão. Uma pena que eu nunca fui um veado verdadeiro, nunca assumi a minha homossexualidade. Eu sempre me esquivei destas tentações, eu nunca, se você quer saber, mamãe, nunca eu tive um relacionamento mais íntimo com um homem. Só me puni durante toda a minha vida, vivendo à margem, taciturno, alienado da sociedade, dos grupos. Um homem solitário.

— Santa suplica, aos prantos:

— Pare pelo amor de Deus, você não precisa agir dessa forma, Alfredo. Você não tem que se expor dessa maneira sórdida! Você não precisa se humilhar, meu filho!

— Mas a senhora precisa saber. Tudo que eu tive foram aquelas brincadeiras de criança, nas quais até mesmo os héteros se envolvem. Não, eu apenas sonhei, fui um gay platônico, que nunca se assumiu, que nunca admitiu se assumir.

— Mas então, você é homem – reflete, Sandoval, desajeitado, tentando inferir alguma observação, sem sucesso.

— Claro que sou. Não se preocupe, quanto a isso. Só a minha orientação sexual é diferente. Mas já que eu me mostrei aqui, do modo mais sincero e corajoso, acho que todos devem fazer o mesmo e assumir o que são. Não interessa se é errado ou certo. Somos uma família, não somos? Não sei, se alguma vez esta família existiu, mas em todo caso, continuamos todos juntos, convivendo quase que diariamente. Até mesmo o bispo Martin. O senhor pode nos dizer qual é a sua mensagem?

O bispo olha para todos, perguntando a si mesmo, se chegou a sua hora. Tenta divagar, devolvendo ao próprio Alfredo as suas observações. Começa com voz baixa, alternando aos poucos, até se tornar uma espécie de discurso.

— Bem, Alfredo, eu admiro muito o seu comportamento, afinal você mostrou que está inserido neste grupo familiar, por mais revolta que tenha, você ama esta família, por isso foi tão sincero. Mas lembre-se, você é um menino bom, não é nada disso que pensa. Eu conheço você e sei o que estou dizendo... – faz uma breve pausa – No meu caso, eu não posso, de modo algum me considerar da família, portanto, não tenho muito a dizer.

— Ah, tem sim, o senhor foi convidado como todos nós – extrapola Letícia, empurrando o braço de Ricardo que tenta segurá-la, ainda fingindo um olhar carinhoso.

Sandoval, ratifica a objeção da filha, interessado.

— Letícia, tem razão, Bispo. Se minha mulher fez questão de convidá-lo, acho que nada mais justo do que pôr as cartas na mesa. – e completa, malicioso – Chegou a sua hora.

— Meu amigo Sandoval, não vamos considerar este nosso encontro, um jogo, sem qualquer alusão … o senhor sabe. Aqui não se trata de um confronto, muito pelo contrário, é uma reunião para que encontremos o melhor caminho.

O bispo encerra a frase, fechando as mãos em posição de oração, pousando delicadamente o queixo, como se não esperasse mais nada do encontro.

Tavinho, porém, faz questão de mantê-lo na conversa:

— E qual é o caminho que a Virgem lhe sugeriu?

— Não vamos colocar o nome da Virgem nesta conversa, Tavinho. Você sabe, que eu sempre fui amigo da família, afinal, eu os batizei a todos. Sua mãe...

— Deixe de enrolar, bispo. Abra o jogo – Tavinho o interrompe, impaciente, enquanto Ricardo complementa – Eles sabem fugir pela tangente.

O bispo suspira longamente. Sabe que a melhor estratégia é dizer a verdade, ou seja, igualar-se a todos e dizer o motivo de sua mensagem. Suas mãos suam e a voz estremece, de vez em quando.

— Bem, se vocês insistem, eu não posso fugir da minha participação, digamos, nisso tudo. Se estou aqui, como vocês disseram é por que a nossa querida amiga Santa me convidou. Acho mesmo que é devido a me considerarem quase da família... – Santa desta vez, o interrompe, ansiosa – Por favor, Bispo Martin, esclareça a todos o que lhe foi destinado.

— Está bem, Santa, é justo, é justo. Na verdade, é uma coisa simples e ao mesmo tempo, complexa. Trata-se da bússola, que doei à Santa no dia de seu aniversário.

— Diga a procedência da bússola, sr. Bispo – insiste Sandoval, que parece mais interessado do que os demais na história.

— Claro, amigo Sandoval. Eu explicarei tudo e espero sinceramente que não tirem conclusões precipitadas. Na verdade, a bússola originalmente, era da mãe de Sandoval, Dona Maria Marta de Medeiros e Quental.

— E como foi parar nas suas mãos? – Sandoval grita, impaciente – Como explica aquela história de ser doada à igreja no dia do batismo de Santa?

— Deixe-o concluir, Sandoval – reitera Santa, aborrecida.

O bispo reinicia, num tom um pouco mais baixo e temeroso:

— Bem, eu era muito jovem, quando a mãe de Sandoval também era uma jovem senhora. Perdoe-me Sandoval, eu sei que é um fato muito desagradável para você, eu entendo perfeitamente e para mim, uma mancha terrível. Mas, como vocês bem me alertaram, eu preciso falar. Já que chegamos a esse ponto, não há como recuar. Bem, como eu dizia, ela, a mãe de Sandoval participava muito da comunidade... oh, meu Deus, é tão penoso para mim.

— É difícil para todos, Bispo – acrescenta, Alfredo.

— Sim, Alfredo – e dirigindo-se à Linda, que não se afastava da cadeira onde sentara desde que começara a reunião – Por favor, traga um copo d'água para este velho discípulo do Senhor. Eu já estou muito velho, não tenho saúde suficiente para me ocupar de coisas tão complicadas. Mas se a Virgem me concedeu esta oportunidade, preciso levar à frente. – fez um pequeno silêncio e prosseguiu – Como eu disse, eu era muito jovem e dona Maria Marta era uma mulher muito bonita.

— Cara de pau. Pegou a velha! – exclama Ricardo, sorrindo irônico, calando-se logo em seguida, com a xingação de Letícia – Cale a boca, imbecil. Eu não esqueci o que você fez!

O bispo segura o copo de água, que Linda trouxera, com as mãos trêmulas. Toma um gole, aproxima-se da mesa de tampo de vidro, larga-o e pede licença para sentar-se.

Todos se aproximam, fazendo um círculo, em silêncio.

Ele então, senta-se, tentando refazer-se de um possível mal-estar. Por fim, recomeça:

— Bem, amigos, continuando. Nós tivemos um breve caso, uma coisa passageira, da qual me arrependi por todos os meus dias. Mas, daquele pequeno relacionamento, ficou uma joia, uma joia que ela me doou de despedida. A bússola, que vocês agora conhecem. Esta bússola pertencia à mãe de Sandoval. Eu precisa me livrar dela, era uma punição para mim, o símbolo de meu pecado. Meu amigo, me perdoe, mais uma vez eu lhe peço.

Sandoval bate com os punhos na mesa, enquanto os demais o observam estarrecidos.

Eu tinha certeza que era a bussola da minha avó. Ela morreu repetindo isso, milhões de vezes, dizendo que minha mãe tinha desaparecido com a joia.

O bispo prossegue, pesaroso:

— Pois é, Sandoval, isso me trouxe muitos problemas. Tanto, que tive a ideia de inventar a história que ela tinha sido doada à igreja no dia do batismo de dona Santa. Reconheço que foi uma canalhice sem perdão, mas eu não peço que me perdoem. Pedirei a Deus, como já tenho feito todos os dias de minha vida.

— E você, Santa, compactuou com esta sujeira. Como foi capaz?

— Eu não sabia de nada, Sandoval. O bispo me confidenciou um pouco antes do aniversário. Você não pode me acusar disso, pelo amor de Deus!

— É verdade, amigo Sandoval, ela não sabia de nada – confirma o bispo, mostrando remorso.

— Ora, vai se fuder! Não me chame de amigo, você transou com a minha mãe,ficou com uma joia de família, inventou que era um presente à igreja e fala isso agora, com essa cara de pau!, um padre, um bispo, você na verdade, é um velho sacana, isso sim! Você é um canalha, eu devia acabar com a sua carcaça podre!

Ricardo não esconde o sorriso e uma certa vingança pela revelação de Santa, ouvindo atento a explicação do bispo Martim.

— Eu segui o que dona Santa me pediu, por favor – o bispo suplica, assustado – Eu me expus na frente de todos, revelei situações e sentimentos que já estavam mortos no passado, os quais eu temia até em pensar. Vivos, apenas na minha lembrança e no meu remorso. Agora, estou livre. Se vocês me perdoam ou não, não posso fazer nada. Mas se pequei, devo a Deus o beneplácito do perdão. Mas, parece que não apenas eu devo à sociedade, Sandoval. Acho que Linda também tem muito a dizer.

— Quer acusar a Linda também? Não quer ficar sozinho na sacanagem? – indaga Sandoval, com exagerado desvelo.

Alfredo encara o pai com desconfiança.

— O que Linda tem a ver com isso, mamãe?

terça-feira, setembro 27, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 6

No quinto capítulo Santa expõe à família que teve uma visão de Nossa Senhora e decidira propor a cada um uma missão que não lhes parecia nada fácil. Cada um receberia um envelope onde haveria uma lista de medidas pessoais que deveriam tomar, para uma mudança em suas vidas. Por isso, teriam seis meses para implantarem tais medidas. Todos estavam envolvidos, os filhos Alfredo, Tavinho, Letícia, o genro Ricardo, seu marido Sandoval e também o bispo Martim, que for a convidado para a reunião. Caso neste período de tempo, ela perceber que não ocorreu mudança nenhuma, sairia da casa para sempre e viveria entre os pobres, inclusive o povo da ilha para onde a bússola apontava o seu norte.

A seguir o 6º capítulo de nosso folhetim dramático que é publicado nas terças-feiras e nos sábados.

Capítulo 6


Talvez uma vida mais simples tivesse mais sentido. Talvez apenas reconhecer-se um esposo e pai, sem se dedicar ao trabalho com tamanha energia. Sandoval mergulha numa incongruência de pensamentos e imagens que o deixam assustado. Por que depois de tanto tempo se preocupar na inabilidade em exercer os papéis familiares? Por que se deixar envolver naquele clima de insegurança no qual Santa jogara toda família?

Ela deveria estar satisfeita com a aparição da Virgem, devia aprofundar-se em orações e permanecer o maior tempo possível na igreja, pedindo pela paz e felicidade de todos.

Afinal, agora despertara para uma espiritualidade muito maior. Ao contrário, parecia disposta a criar conflitos que desuniam a família, cultivando desavenças, protagonista de uma história ridícula, assumindo-se redentora de um grupo que não significava nada para a sociedade.

E para completar, mandara Linda distribuir aqueles malditos envelopes, com mensagens individuais. Qual era o seu verdadeiro objetivo?

Sandoval afasta-se dos demais. Sente-se um execrado naquele grupo, no qual deveria ser o o baluarte, o líder ao lado da mulher que revelava ter tanto poder sobre todos. Na verdade, suas ideias e percepções nunca tiveram grande valia. Sempre o ouviram com ressalvas, sempre o deixaram em segundo plano. Tampouco, se importava com isso. Era até conveniente afastar-se sem dar conta de seus passos. O trabalho na empresa era a desculpa ideal para o seu tempo fora de casa.

Mas agora, Santa está passando dos limites. Faz uma chantagem transversal, usando a imagem da Santa para atingir seus objetivos.

Decide abrir o envelope, mas ignora a mensagem.

Depara-se de súbito, com o olhar inquisitivo da mulher e tem um certo estremecimento.

Santa parece antever alguma coisa obscura, como se o tivesse em suas mãos. Ela se aproxima, sorrateira e comenta ao seu ouvido.

— Veja como todos agitados. Ficam discutindo e nem se fixam nas mensagens.

— Você parece estar se divertindo muito, Santa.

— Você pensa assim? Eu só quero o bem da minha família – enfatiza.

— Você quer dominar a todos. Não pense que sou idiota.

— Sandoval, você está sendo injusto. Se pelo menos, tivesse aberto o seu envelope e lido a mensagem, talvez pensasse diferente.

— Nem sei se vou ler esta bobagem. Com esta história de Virgem, você está usando todo mundo. Não sei onde quer chegar.

Neste momento, Letícia os interrompe, ratificando as palavras do pai.

— Eu também não sei onde você quer chegar mamãe. Papai tem razão, você não pode dispor das nossas vidas assim.

— Isso que você está dizendo é muito bonito, Letícia, parece frase de uma peça dramática, mas eu fui bastante clara no que falei para vocês. Eu disse e repito, quero o melhor para a família, portanto, não há nada me impedirá de ir às últimas consequências. Do que você está reclamando?

— Esta história de ter filho e ser mais religiosa é ridícula. A senhora sabe que eu e o Ricardo decidimos não ter filhos. Tenho o meu cargo de promotora que preenche todo o meu tempo, não posso me dedicar a crianças – pondera, obstinada; a maçã do rosto vermelha. Santa contrapõe a filha: — Mas é um absurdo!

Neste instante, Sandoval acabava de ler a mensagem e reage, indignado, refutando a expressão da mulher.

— Absurda é esta mensagem que você deixou pra mim, Santa. Você está me ofendendo. Eu que me dediquei a esta família, que aumentei a nossa fortuna com o meu trabalho, com a minha dedicação na fábrica e você vem me dizer que devo deixar a jogatina. Quem lhe disse que jogo? Você enlouqueceu, mulher?

Santa não responde, observa o pequeno grupo ao longe, que se desfaz aos poucos. Nem percebe a presença de Alfredo, que ouvira a reclamação do pai, enquanto se aproximava do trio.

— Parece que a coisa tá preta, papai. Mamãe pegou pesado. Se ela desconfia que o senhor joga, imagina o que pensa de mim. Ela sugere que eu me case, que arranje uma mulher, pois nunca me viu com nenhuma namorada – e voltando-se para a mãe, pergunta, ansioso – o que a senhora insinuou, mamãe?

Letícia, entretanto parece estar no ápice da impaciência e destila todo o veneno na primeira oportunidade. Pergunta irônica, a Alfredo, antes que a mãe faça qualquer conjectura: —Ainda precisa confirmar, Alfredo? Mamãe apenas declarou o que nós todos pensamos.

Por favor, Letícia, não seja maldosa – pondera Santa, tentando evitar o pior.

— Eu? Maldosa? A senhora foi cruel e eu que sou má! Ela deixou bem claro que duvida de sua masculinidade, ou seja, que você é gay! Quer que eu esclareça melhor?

— Vocês estão todos loucos – reflete Alfredo, olhando para os lados, procurando um apoio.

Letícia prossegue, implacável: –— Não, Alfredo. Nós não estamos loucos. A verdade é que a mamãe está dizendo o que sempre pensou de nós, mas na sua carolice, na beatice, nunca teve coragem. Agora, aproveitou esta desculpa para dizer o que pensa.

Santa ouve a filha, angustiada. Tenta remendar a situação: — Não é nada disso. Vocês estão distorcendo as minhas palavras. Parece que ninguém entendeu nada. Vocês se desviaram do caminho certo, eu só quero ajudá-los. Custa entender isso?

— Fazendo chantagem, jogando na nossa cara que vai se desfazer da sua fortuna, da parte que lhe cabe e que é nossa também, se não fizermos o que deseja. – e voltando-se para o irmão mais jovem, indaga, sarcástica – Diga, Tavinho, você que é o queridinho da mamãe, se concorda com a proposta dela.

Tavinho se ajeita na poltrona, sem nada dizer, mas revela-se também incomodado com a mensagem que recebera. Santa então se dirige ao filho, defendendo-se.

— Não é apenas uma proposta minha. Foi uma vontade da Virgem.

— Sim, da Santa matriarca, da déspota da casa! – grita Letícia, exaltada.

— Cale a boca, Letícia. Me respeite!

Ela entretanto, prossegue no mesmo tom enfático: — E você, nos respeitou, mamãe, com esta história toda? Você pensou em nós, nos nossos direitos? Você se colocou no nosso lugar? Não, você só pensou nos seus propósitos radicais, no seu modo de ver as coisas. Mas cada um é diferente do outro, você não pode exigir que pensemos como você.

Neste momento, Tavinho parece se acordar da apatia em que se encontra, para confirmar: — E nem que tenhamos a sua fé.

— Por que diz isso, Tavinho? Você foi sempre tão dedicado, quando criança... – reflete Santa, desiludida. Ele responde, ríspido: — Mas eu não sou mais criança, mamãe. A Letícia tem razão. A senhora só pensou em si.

— Até que enfim, alguém me dá razão – assevera Letícia, sacudindo os ombros.

Ele continua no mesmo tom anterior, revelando a sua decepção.

— Eu não tenho que abandonar o meu curso, é o maior desatino que já ouvi, imagine, eu trabalhar na fábrica de papai, a senhora enlouqueceu! Eu sou um artista, mamãe, não posso enquadrar a minha criatividade naquelas paredes de escritório.

Ricardo intervém no grupo, segurando o braço de Letícia, e rogando com um olhar de falsa compreensão: — Amor, vamos embora.

— Por que você quer ir, afinal, qual foi a sua mensagem, Ricardo?

— Uma bobagem, acho que sua mãe estava brincando.

— Não, me deixe ver, Sei muito bem o quanto você é dissimulado. Me dê isto aqui!

— Por favor, Letícia, vamos embora. Não faça escândalos!

— Ah, então é isso – esbraveja, retirando do bolso da calça, o cartão com a mensagem – Você deve deixar de ser mulherengo. Seu miserável, você tem uma amante!

— Pare com a baixaria. Já lhe disse, sua mãe não está bem da cabeça, você mesma não concorda com o que ela lhe escreveu.

— No meu caso, é diferente. Ela deve saber alguma coisa sobre você. Me parece que ela tem olhos na nuca, ela sabe tudo de todo mundo! Me diga, seu patife, você tem uma amante!

— Não se subestime Letícia.

— É muito fácil, agora. Não se subestime, mas você não pensou em mim, quando … oh, meu Deus, será que tudo isso é verdade? Você sempre me enganou, agora, eu tenho certeza.

Neste momento, todos olham para o casal, como se examinassem uma cena estranha. Talvez fiquem se perguntando, o que está acontecendo naquela casa, onde todos parecem participar do jogo da verdade.

Santa e Sandoval ficam alarmados, mas prosseguem impassíveis, enquanto a discussão acelera os ânimos de Letícia e Ricardo. Tudo vem à tona, quando ele chega ao limite da raiva e põe as cartas na mesa.

— E você pensa que é fácil para mim, aguentar essa sua língua afiada, esse seu falar esganiçado o tempo todo? E depois, você se acha, mas não é tao boa de cama assim. Tenho outra mulher sim, uma mulher que não fica me azucrinando o tempo todo e me obrigando a participar desta família falida!

— Letícia atira-se contra o marido, dando-lhe diversas batidas no peito, com as duas mãos, chamando-o de miserável.

Desta vez, Sandoval intervém, segurando a filha.

— Vamos acabar com esta loucura. Letícia, não devia ter feito isso. Minha filha, não se rebaixe.

Este canalha merece muito mais! – ela grita, aos prantos.

Em seguida, Ricardo imediatamente, parece cair em si e tenta recobrar a comprrensão da mulher.

— Letícia, eu sei que estamos todos exaltados, eu não devia ter dito estas coisas para você, mas foi no calor da discussão.

— Não se atreva a falar mais comigo – responde sem olhá-lo.

Ele continua no mesmo tom persuasivo: — Mas você sabe que a amo, depois conversamos melhor em casa. Vamos embora, vamos acabar com isso.

Letícia, ao contrário, pretende desafiar a todos, como se pretendesse jogá-los na mesma ruína.

Não, agora quero ir até o fim. Quero que todos coloquem na mesa as mensagens que receberam. Não é isso que mamãe quer? Pois vamos fazer a sua vontade.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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