No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva.
O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los.
As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia.
Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida.
Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum.
Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da família. Passava os dias e as noites experimentando as horas de sucesso, de festa ou angústia.
Muitas vezes, acalentara o menino que chorava para a mãe desfrutar do passeio ou do jantar.
Outras, vira o sol nascer ao lado da menina com febre e olhos murchos, pensando que ela era mais uma ferramenta para passar a dor.
Na verdade, gostava de seu trabalho, gostava dos filhos que não tivera, gostava da família que era sua.
Nem sempre, porém foi um ente familiar. Muitas vezes, precisou afastar-se quando os momentos não indicavam a sua presença. Dócil e cuidadosa, afastava-se devagar, às vezes arrastando chinelos pelo avançado da noite.
Mas vivia em seu quartinho, hoje tão quente por causa do ferro elétrico.
Tinha uma TV no quarto e se satisfazia em ver que as atrizes negras faziam papéis semelhantes aos que ela desempenhava.
E amavam os patrões tanto quanto ela.
E até sofriam caladas em seus quartos.
Então, estava tudo certo. Ela aprendera com a TV. Aprendera muito.
Também aprendera que a maioria dos homens presos e considerados bandidos eram negros e principalmente jovens. Eles não usufruiram das escolas boas, nem dos conselhos dos pais, nem da disciplina escolar. Não eram bons como os filhos da patroa. E se o governo dava escolas, dava educação (ela considerava assim, que tudo era dado e grátis), eles não aproveitavam. Preferiam ficar na rua fumando maconha, vivendo entre gente ruim.
Os outros não fumavam maconha. Aproveitavam a oportunidade e se acaso acontecesse um acidente, eram reconduzidos ao rumo certo, cuidados em clínicas e tudo ficava bem.
Ela tinha aprendido isso na TV.
Também percebera que as meninas negras e pobres, muitas vezes, se desviavam do bom caminho.
Não iam à escola e se iam, desobedeciam as regras, nem participavam da igreja, não se harmonizavam em grupos para estabelecer boas relações, como os filhos da patroa e seus amigos. Acabavam na vida fácil, tinham filhos sem a idade adequada e às vezes, morriam fazendo abortos.
Eram meninas desprezíveis para a sociedade e para a família religiosa.
As filhas da patroa e suas amigas sabiam resolver suas pendengas, caso acontecesse uma tragédia. Eram levadas a clínicas com muita cautela e carinho e voltavam como se o mundo recomeçasse.
Talvez houvesse uma maneira de reconstruírem as suas vidas, que somente pessoas de classe como a patroa soubessem discernir.
Isso também ela tinha aprendido com a TV.
Algumas meninas de seu bairro foram estupradas e o que saía na mídia e nos círculos de fofoca é que elas incentivavam aqueles homens a agirem como animais.
Portanto, eram culpadas, pois usavam roupas vulgares, mostrando mais do que deviam, dançavam funk e portanto, nem podiam reclamar.
Afinal, os homens tem seus desejos e muitas vezes, não conseguem controlar-se, ainda mais quando incitados.
As meninas da casa, como as da patroa, ao contrário, sabiam muito bem manipular um homem, à custa de sua educação e inteligência. Quando iam a festas, só saiam com o seu grupo, porque não lhes interessava quem não fosse da mesma classe. E tinham razão. Não se misturavam com qualquer um. E se dançavam funk nas festas ou usavam algum incentivo à alegria, tudo eram muito bem controlado pelo grupo. Elas sabiam se comportar.
Tudo isso, Nízia aprendera na TV.
Havia também alguns meninos que eram até seus parentes, um que outro jogador de futebol, mas alguns que tinham essa mania de virar mulherzinha. Queriam usufruir dos mesmos desejos das mulheres, como se assim fossem. Uns até usavam maquiagem. Outros andavam se agarrando, desejando outros homens e até considerando-os namorados.
Um deles, aquele que era seu parente, fora assassinado, alvejado por um policial, que se dizia assediado.
Afinal, devia ter sido muita pressão para o tal policial, afinal ser assediado por um gay! Ele, um cara da lei! Houve até a interferência de um deputado homofóbico contra o menino, é claro.
Mas está correto, ele se desviou do bom caminho. Isso é uma doença.
Na casa grande, quero dizer, na da patroa, também ocorreu algo parecido, mas foi com o dono da casa, o patrão, parece que um amigo do filho o assediou ou foi ele, não sabia. Claro que a coisa fora resolvida na base da educação. Aquilo tudo não passara de uma brincadeira, em virtude de terem bebido um pouco demais e a patroa entendera e todos foram felizes.
Tudo isso, ela havia aprendido na TV.
Certa vez, Nízia recebeu uma visita de um grupo de mulheres negras que lutavam pela dignidade da mulher e sabedoras de seus problemas relacionados à família, ao seu bairro e a pessoas que conhecia, tentaram ajudá-la.
Deram-lhe folhetos, indicaram leis, avaliaram até o seu trabalho, como se morasse na senzala.
Nízia ficou muito braba e não entendeu o que diziam, na verdade, não encarava como verdadeiros aqueles fatos.
Naquela noite, porém, Nízia não conseguiu dormir.
Ligou a TV, assistiu a novela, depois um programa humorístico que mostrava uma mulher negra que reforçava o estereótipo de mulher sensual, de bunda grande e poderosa.
Mais tarde, abriu o folheto e leu alguma coisa relacionada a mulheres negras que venceram como advogadas, educadoras, escritoras ou funcionárias públicas. Não representavam ela.
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