Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
segunda-feira, setembro 27, 2021
O lado bizarro da alegria
Mas eis que está aí, ante nossos olhos e corações e ao termos empatia, sentimos tão forte a dor, que nos encolhe e desaparece qualquer beleza primaveril. Dizem que o poeta é melancólico? Que o escritor é pessimista? Mas o que é a natureza, se não a humanidade que a compõe? O vírus faz parte da natureza. Os vermes e bactérias também. O mundo subterrâneo e destrutivo desencadeador de terremotos e tsunamis, também. Ou não são os raios, as tempestades, alagamentos e nevascas, elementos estruturais da natureza?
Dói presenciar nos pezinhos distraídos de crianças faveladas, afundando na lama das enchentes, com a barriga vazia e o olhar perdido dos que não têm futuro. E as patinhas dos animais queimados nas florestas, perfazendo estatísticas de fauna dizimada, transformados em cinza e dor? E a flora, se exaurindo na fornalha, dando cor ao deserto de morte injustificada? Não fazem parte da natureza?
Benditos poetas, escritores, cantores e artistas que cantam e revelam a natureza, sem os matizes da ufania abstrata e cínica que somente enxerga um lado. O lado bizarro da alegria, quando há tanta dor!
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/cervo-floresta-incêndio-1398064/
sexta-feira, outubro 20, 2017
Luta por quem está contigo
Eu costumo comentar com colegas ou amigos, que sempre que havia um desentendimento de alguém que de algum modo me feria, eu não ficava me lamuriando, caso a pessoa fosse apenas um colega ou conhecido.
Claro que sentia, mas sentiria muito mais se eu gostasse realmente da pessoa, se fosse minha amiga ou parente. Ficaria muito triste. Afinal, essas me tocavam de perto.
Em 2014, o Papa Francisco disse a frase que corrobora com o que penso:
“Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.”
Eu acrescentaria o verso do Quintana “eles passarão, eu passarinho”.
Sem ódio, sem tristeza, apenas
exaltar a alegria dos que a compartilham.Vida que segue.
segunda-feira, julho 10, 2017
O despertar do brinde

Saber como se adequar às coisas, como se apropriar da vida, como sobreviver. Poderiam ser frases de um reality show de desafios, mas nos dias em que vivemos, parece que os desafios são mais reais e incongruentes do que qualquer programa desse gênero.
As pessoas já não se encaram, nem mesmo quando estão do outro lado do balcão. Basta-lhes a tela do computador ou o visor do celular. Buscam, pesquisam, navegam, incluem números e documentos e quase não se olham. Um trabalho qualquer numa loja é suficiente para se observar estas facetas dos funcionários, bem como dos clientes.
O sistema é o deus onipotente de qualquer trabalho. O sistema abrange desde a contabilidade das empresas e bancos, até o humor dos empresários ou do passante distraído na avenida. Mesmo no transporte, não existe nada mais importante, nem mesmo os sinais de trânsito do que o gps e o celular.
Isso sem falar nas redes sociais. Ali tudo é possível, a mídia virtual manisfesta a todo o momento as necessidades mais urgentes ou menos importantes dos usuários.
Por um momento, penso, como nos apropriarmos de nós mesmos, das coisas que observamos na rua, da natureza, das construções antigas, da beleza das fortalezas, dos faróis, dos mares, dos navegantes, do povo.
Como nos adequarmos ao simples, ao verdadeiro e real? Como ver apenas, sem registrar para os outros, como assistir o show com a intensidade de sua perfomance, sem lançá-lo instantaneamente para o mundo através de milhões de bites, sem aproveitá-lo na íntegra?
É agradável mostrar aos amigos os nossos prazeres, como viagens e festas, mas de um modo tranquilo, registrado sem perder o momento, a espontaneidade da alegria, o despertar do brinde.
Que brindemos à experiência da vida e somente a partilhemos num registro posterior.
Viver é experienciar no ato.
quinta-feira, outubro 20, 2016
Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/
Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.
Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.
Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.
Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.
Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.
Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.
Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.
Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.
Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.
Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.
Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.
Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.
Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.
Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.
Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.
Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.
Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.
Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.
Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.
quarta-feira, junho 22, 2016
O AMOR E A PIEDADE : sentimentos distintos
Há milhares de expressões que tentam expressar e explicar o que é o amor.
Platão, ligando o amor à beleza e ao bem, dizia que o amor liberta o ser humano e o conduz à verdade.
Para Santo Agostinho, o amor é o nexo que une as pessoas e as diviniza. Somente o amor é capaz de explicar a vida da alma e a sua possibilidade de se elevar ao conhecimento unitivo de Deus.
Enquanto Platão se preocupava em conceber o amor como o elo, a ponte entre o corpóreo e o espiritual, entre o relativo e o Absoluto, entre o particular e o Universal, Santo Agostinho via o amor como o nexo entre o divino e as pessoas.
Mas há centenas de filósofos que dissertaram e tentaram explicar o amor, como Spinoza, Jean-jacques Rousseau, Friedrich Schleeirmacher, Aristófanes, Arthur Schopenhauer e tantos outros.
Do mesmo modo, os poetas e compositores à sua maneira, cantaram e encantaram o amor em todas as suas nuances.
Eu não seria capaz de fazer uma explanação a respeito do tema com esta intensidade e conhecimento, muito menos buscar novas possibilidades de discussão deste sentimento, porém ouso argumentar sobre determinadas situações que podem identificar ou não o amor, seja em que especificidade se encontre: o amor filial, materno, paterno, fraterno, conjugal, etc.
Por exemplo, acredito que o sentimento do amor não implica ou não exige compaixão.
Não se deve acreditar que, ao se ter piedade por alguma pessoa, passaremos a amá-la, como condição inerente a este sentimento. Uma coisa não implica na existência da outra. Na verdade, tratam-se de emoções e sentimentos totalmente distintos.
O amor não depende de outro sentimento para se desenvolver, basta-se a si próprio, é intrínseco à capacidade de amar. Alimenta-se da admiração diária, do carinho efetivado, da troca de emoções que se estabelecem nos encontros.
Ama-se por vários motivos, pela beleza, pelo carinho, pela proximidade afetiva, por laços familiares, por admiração, mas jamais por compaixão.
Nunca devemos realçar ou incentivar as características negativas de uma pessoa, transformá-la num pobre coitado, como se isso lhe possibilitasse o passaporte para almejar o amor.
O que pode acontecer nesta presumível insistência é um sentimento oposto, uma aversão a tal pessoa.
Pessoas que se sentem inferiorizadas em seus relacionamentos ou enfrentamentos a situações cotidianas, costumam afirmar que a sua situação é muito mais difícil do que a de outros em casos semelhantes. Segundo elas, as outras pessoas com que se relacionam são os verdadeiros empecilhos.
Elas nunca vencerão os obstáculos por este ou aquele motivo, como se através desta conduta recebessem como prêmio de consolação, a condição de serem amadas.
Pode-se ter compaixão, não amor.
Por outro lado, o indivíduo que passa a vida inteira suplicando amor, realçando as suas inaptidões, fato corrente, segundo a própria literatura científica, produz um afastamento cada vez maior do bem amado (seja este o marido, a esposa, o amigo, o parente próximo, o vizinho, o(a) amante).
Uma pessoa que demonstra amargura, numa luta constante contra a vida, que está em desconforto com a realidade e nada lhe é favorável, acaba afastando quem poderia descortinar um mundo em parceria, em união e agradável convivência.
Entretanto, o que geralmente acontece é que o suposto candidato a amar sente-se obrigado a aturar tal sofrimento, em virtude da afeição que possui ou acaba definitivamente afastando-se.
Nunca devemos minimizar as qualidades de nossos filhos, exaltando as suas deficiências e transformando-o num coitadinho. Ele apenas colherá os frutos de ser considerado (e de se achar) o pior entre todos.
A criança, via de regra, acaba introjetando que é um ser inferior, incapaz de exercer seu domínio sobre as situações e de atingir seus objetivos. Acredita enfim que é um coitadinho, o que certamente gera um círculo vicioso, sentindo-se incapaz para a vida e tornando-se realmente um incompetente.
A criança não consegue fugir da situação que lhe foi criada.
E apesar de toda carga de presumíveis deficiências que carregará pela vida, não receberá amor, nem carinho por isso, ou se receber, será de uma forma burocrática e social, para que não se sinta pior ou apenas para não desagradar os pais.
Piedade é o pior sentimento que uma pessoa deve despertar no outro. Não constrói nada, não o engrandece como ser humano, nem como cidadão.
Claro, que há momentos em que este sentimento de solidariedade é adequado, compreensível e necessário, mas não deve existir como regra no apequenamento intencional do caráter para atingir tal sentimento.
Não se deve creditar os defeitos dos filhos aos outros. Eles são criaturas normais, e tal como seres humanos que são, erram e possuem dificuldades como todos os outros, não são (nem devem ser considerados) santos.
Os chamados “outros”, tais como educadores, médicos, amigos, patrões, colegas ou familiares, não devem ser os únicos culpados pelos erros de nossos filhos.
Por vezes, estas pessoas podem ser culpadas, sim, de dificuldades imputadas ao filhos, e neste caso devemos lutar para esclarecer os fatos, tomando as medidas necessárias para que a justiça prevaleça.
Devemos sim, ajudá-los, caso a situação exija a nossa interferência.
Por outro lado, devemos nos devotar na resolução dos problemas, examinando com clareza e imparcialidade todas as facetas da complexidade dos fatos, com a compreensão de que nem sempre nossos filhos estão com a razão.
Quando nossos filhos erram, somente crescerão internamente se enfrentarem (e aceitarem) os seus próprios erros e aprenderem com eles.
Não será apoiando indiscriminadamente as suas condutas, ou seja, passando a mão em suas cabeças ou acusando os “outros”, que os ajudaremos a crescer.
Se a culpa de seus fracassos ou frustrações recair sempre noutras pessoas, pensarão que a vida lhes deve respostas imediatas, segundo as suas ideias preestabelecidas, alicerçadas em argumentos irredutíveis e nunca amadurecerão.
Sempre haverá culpados para seus erros nas adversidades da vida.
Não é assim que acontece.
Retomando, jamais se deve pensar que sendo coitadinhos, os filhos serão mais amados.
O amor é incondicional, não impõe regras, acordos, problemas ou adequações.
O amor é íntegro.
Ama-se sem quaisquer adereços de necessidade ou sofrimento.
Ama-se porque o amor é intrínseco ao ser humano.
O homem cansa-se do sofrimento, da queixa, do estigma de pobrezinho. Cansa-se da necessidade de amar pela condição da falta, do problema, do impedimento, da deficiência, da covardia.
Amar não é sinônimo de dificuldade em se enfrentar a vida, ao contrário, de coragem e grandeza de coração.
Admira-se aquele que luta para vencer as adversidades, aquele que se esforça para atingir um ideal, aquele que se supera numa situação adversa ou que almeja tornar-se um ser íntegro e capaz de produzir desassombros pela vida.
É justo e normal sofrer infortúnios, o que não é justo nem normal é alimentar o sofrimento, sobreviver de modo medíocre através da dor, tendo enfim, a necessidade de ressaltar este sofrimento para obter deploráveis ganhos de origem afetiva.
Belo e dignificante é lutar até o fim, mesmo que não se atinja o ideal, que não se consiga a meta proposta, mas que se tenha vivido com dignidade e alcançado o mínimo do que se desejava para ser feliz.
E por fim, que não se tenha desistido no meio do caminho, tendo a certeza de que se acomodar na atribulação, não é mais inteligente do que ir à luta.
Coragem não é gritar aos quatro ventos o que se pensa, sem se ouvir os demais, coragem é permanecer na luta.
Coragem é transformar a sua vida numa escada, onde cada degrau é construído para uma vitória, mesmo que não seja a almejada, mas uma vitória interior, de maioridade emocional, de segurança própria, de sobrevivência digna.
Talvez a felicidade seja apenas isso: lutar, lutar e lutar.
E o amor, este não tem restrições.
Este incide no belo, no feio, no afeto, na emoção do outro, na alegria, na paz, no que subtrai a alma através dos olhos.
Admiração plena ou aversão pura são coisas distintas.
Amar é outra coisa.
Sem condições.
quarta-feira, março 09, 2016
O PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIX
O NOSSO FOLHETIM CONTINUA AGORA JÁ CHEGANDO A QUINTA-FEIRA, 10/03/16 COM NOVOS DESDOBRAMENTOS DAS RELAÇÕES DE ÚRSULA. UMA HISTÓRIA DE MULHERES, NA TENTATIVA DE PENETRAR NO UNIVERSO FEMININO, COM A DIFICULDADE NORMAL DE UMA AUTOR DE CULTURA MASCULINA. ESPERO QUE TENHA SUCESSO. ESTE É O 19º CAPÍTULO, QUE APRESENTO COM MUITO PRAZER.
Capítulo 18
FONTE DA FOTOGRAFIA: AUTOR WILSON FONSECA DA ROSA, GRANDE ESCRITOR, POETA E FOTÓGRAFO RIO-GRANDINO.
Capítulo 19
Sabe, Dulcina, às vezes me pergunto porque acabo indo nas suas águas. Na verdade, sempre refutei tudo o que você me dizia, todas as histórias que em geral achava idiotas, sem sentido. Nunca a vi como um ser humano, estou sendo muito sincera comigo, sabe? Você pra mim, nunca passou daqueles servidores invisíveis, quase descartáveis, que a gente se depara por algumas horas. Que a gente precisa, mas finge que não vê. Que me interessava a sua vida, as suas atitudes desleixadas, o seu jeito simplório de me contar o que lhe acontecia no metrô, na esquina de casa, na feira? Eu tinha outra vida para viver. Outros caminhos para percorrer que não os seus. Ou não. Talvez meus caminhos fossem muito curtos e sem nenhuma aventura e vinha você, falando alto, esbravejando da suas atividades cotidianas, jogando na cara a sua vida intensa. Se esparramando pelo meu tapete, transbordando na minha sala, na minha cozinha, na minha vida insalubre. Não, eu não queria saber de você. Eu odiava essa sua energia.
Sabe que é a primeira vez que falo assim, neste tom? Logo que aquela porta se abria, instintivamente eu recusava me mostrar. Apenas me fechava no casulo e fazia de conta que estava sozinha. Você era menos do que o espremedor de suco da cozinha. Não posso fingir, era muito difícil a nossa relação. Era realmente um sacrifício.
¬¬
–Era mais fácil o retrato, né? Do seu nível.
–Que nível, Dulcina, isso lá é nível? Rita era uma grande atriz, sem sombra de dúvidas, mas como ela existem milhares. No fundo, eu me escondia no passado. É quase um caminho sem volta.
–Só isso?
¬
–Claro que não. Mas agora, não vale a pena decifrar as minhas atitudes. Você as conhece mais do que eu.
–Tá tudo tão estranho, não acha, dona Úrsula? Ta ficando tudo tão leve, tão alternativo.
–Alternativo? Que coisa esquisita você disse. Não tem sentido, Dulcina. Aliás, nesta vida, nada tem sentido. Dulcina, lembra do velho aí da frente?
–Se lembro. O velho assassino. Emparedou a mulher coitada, no meio da sala. Eu vi o concreto mais saliente, nem rebocou direito, o diabo. Para de rir, dona Úrsula, é verdade. Eu juro que vi.
– Dulcina, olhe bem pro retrato da Rita. Você não acha que ela está falando?
– Não sei não. Mas que ela está olhando pra gente, ah, isso ela tá.
–Acho que ela vai contar a nossa história.
–Em inglês?
–Com legenda, não seja boba. E você entende inglês, por acaso?
–Tinha uma moça lá na quadra que sabia inglês mais do que muito professor de curso por aí. Também, coitada, trabalhava na beira do cais.
–Espere.... fique em silêncio. Acho que ela vai... Não deixa, pra lá. Vamos esquecê-la e falar sobre nós. O que é que eu estava falando mesmo?
Impossível não perceber que as duas estão ligadas por laços além dos convencionais de amizade. É um fio condutor que une estas mulheres completamente diferentes. Para mim, que convivo há tanto tempo com Ms. Úrsula, nesta pequena galeria que organizou pra mim, só tenho a lamentar o quanto está perdida. A vida tem sido dura, como costuma dizer, mas também tem lhe proporcionado momentos de aprimoramento, aprendizagem. Seria salutar que os aproveitasse dignamente. Parece que hoje pretendem celebrar a vida de qualquer jeito, como se fossem duas adolescentes. Não há dúvida que optou pelo caminho mais fácil e inadequado. Mas não estou aqui para julgá-las. Talvez o meu dever seja este: narrar o desencadeamento desta história, a partir de meu observatório particular. Afinal, conversamos há tantos anos.
Ms. Úrsula desaba literalmente na poltrona, sem importar-se com as atitudes que este ato impensado pode trazer-lhe. Provavelmente uma dor intensa na coluna, uma lassidão nos músculos. Vejo-a, aos poucos, resvalando, e enquanto estira as pernas negligente, puxa do fundo do pulmão uma fumaça que se esforça em constituir pequenos círculos. Está exultante. A criada desliza no piso encerado, falando em altos brados, trazendo uma espécie de bebida nativa, a qual denomina caipirinha. Não sei onde isto vai parar. De qualquer modo, a vida, pelo menos, neste momento lhes sorri. E tudo é motivo para risada.
Ms. Dulcina, finalmente acocorada ao solo, instiga a patroa a terminar a história que começara.
– Mas o que a senhora está dizendo é verdade, mesmo dona Úrsula?
Ms. Úrsula está vermelha. Por um momento para, fitando o nada. A voz arrastada, reflexiva. Em seguida, porém reaviva a memória, pois grita, destemperada: – verdade verdadeira. O pobre velho era ele. Nem eu acreditava, menina! Susana ficou passada!
A serviçal se debate no chão, frouxa de rir. Parece que a visão do mundo ficou tão zen, que a deixa em perfeito bem estar com a natureza. Fala em tom absurdo.
– Mulhé, eu não acredito, se não fosse a senhora que está me contando, uma pessoa do seu nível, da sua estirpe, eu não acreditava. Falei bem, hem dona Úrsula, estirpe, não é coisa de gente chic?
–Você ta me saindo melhor do que a encomenda, Dulcina. Já nem cabe no embrulho.
–Embrulho é coisa de pobre! Não to entendendo nada!
–É que você está crescendo, sua incompreensível! E como pode dizer coisa de pobre, é a expressão mais preconceituosa que já vi!
Quando se dá conta, volta a rir, confortada que ficara com a explicação. Mas o que fica claro, neste momento, é que o assunto anterior é extremamente interessante, apesar das inúmeras interrupções. Ms. Dulcina volta a ele, sem mais delongas: – e a história da mulher emparedada? Então era tudo invenção da sua cabeça?
– Claro que não. Pensa que sou maluca? Aliás, hoje é o dia em que me sinto mais lúcida na minha vida, desde que meu filho morreu.
– Não vamos falar em tristeza. Nós já fizemos um trato, se lembra?
– Não lembro de trato nenhum.
– Pois se não, vamos fazer agora – com um cotovelo no chão e as pernas juntas, meio dobradas para trás, estica a palma da mão em direção a de Ms. Úrsula – seguinte, a partir de agora, vamos selar um trato. Nada de sofrimento, de dor de corno, de filho perdido, nada disso. Vamos só nos divertir. Pelo menos, esta noite.
–Pelo menos, esta noite, Dulcina.
Ao baterem as palmas das mãos, Dulcina recupera o copo da bebida e o oferece à Ms. Úrsula. Esta se atrapalha e pergunta: – que faço com o cigarro?
– É coletivo. Dá uma azeitada na máquina, mas devagar, que a senhora anda meio enferrujada. Enquanto isso, eu dou uma tragada... A senhora não acha este aroma maravilhoso?
– Dos deuses, Dulcina.
Ficam em silêncio por alguns minutos. Dulcina então se levanta e põe um cd a tocar. Não é seu gênero musical, mas muitas vezes ouviu a patroa executá-lo ao piano, e principalmente ouvi-lo.
– Night and day. Sabe o que é um jazz, Dulcina? Também não interessa. Temos muito tempo para conversar sobre tudo. Sabe que eu nunca tomei uma caipirinha tão saborosa?
–Tempo é o que não nos falta. A gente tem toda a noite pra colocar o papo em dia.
–A gente tem toda a noite. Eu não durmo mesmo. Mas sabe o que eu gostaria de fazer, Dulcina? Sabe qual é o meu sonho?
– Não sei, não. O meu é ficar aqui, puxando este fuminho, jogando conversa fora. Já tá de bom tamanho. Única coisa que penso é no negão. Deve tá pagando todos os pecados!
–Esqueça o negão, menina. Ele tá noutra. Você mesma não disse que ele foi parar no hospício? E lembre do nosso trato.
¬
–A senhora ta engraçada, dona Úrsula.
– Me dá o coletivo, é a minha vez.
Após um fechar de olhos, num torpor de prazer, ela retoma a palavra, nariz obstruído, como se acometida por uma renite letal.
–O meu sonho era ir pra Serra Pelada. Lá, onde o Jaime passou grande parte de sua vida.
Se Madan me contasse, eu jamais acreditaria. Seria o último lugar para alguém conhecer, ao menos que ela queira conhecer água barrenta e a serra que se tornou um verdadeiro abismo. Mas, como declinei inicialmente, não estou aqui para analisar suas atitudes.
Quando ela retomou a história que começara, eu tentei me desligar, e finalmente foi o que fiz. Deixei que narrasse. Não queria me envolver naquele idílio tão horizontal.
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