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sexta-feira, janeiro 12, 2018

O reflexo da porta

Patrícia mais uma vez olhou-se no espelho, mas agora seus olhos perdiam-se num passado distante. O reflexo da porta projetado pela sala contígua, apontava o perfil de Benvindo que se afastava, talvez à procura de uma juventude que havia perdido.

Talvez fosse a culpada de sua fuga: aos poucos negligenciara a aparência, o bem viver, o relacionar-se com os amigos e declinar de ser a protagonista. Não, ela era só a dona de casa que o acompanhava nos jantares, nas festas da empresa, na vida social do marido.

Talvez não fosse nada disso, pensou. Não passasse de um encanto transitório por um rabo de saia, uma mulher trinta anos mais jovem, um despertar para uma paixão fantasiosa, de um homem de meia idade. Afinal, não era o que acontecia com quase todos os casais?

Mas se houvesse uma saída, uma maneira de alterar essa situação, de modificar o rumo, esse consenso social? Ela seria outra pessoa, poderia tornar-se uma mulher ativa e participante de uma nova sociedade. Uma realidade em que ela fosse a protagonista.

Então mostraria a todos, se tivesse sorte, que ainda possuía seus encantos e vigor. Participaria do concurso de dança e usaria o vestido da suavidade da valsa ou da energia do tango. Ela seria a estrela, fotografada, anunciada nos microfones, revelada na ribalta. Era a realização do sonho, a virada tão desejada. Já tinha o convite, faltava participar.

Por fim, Patrícia afastou-se do espelho, deu alguns passos pelo velho parquê, torceu o salto fino e esbarrou no capacho. Segurou-se como pode na maçaneta da porta e chamou o táxi.

Em pouco tempo, estaria lá entre os seus pares, magra e linda, revivendo um passado que não fora seu.

O táxi chegou. O porteiro subiu. O elevador parou no andar de Patrícia. Tocaram a campainha. Ligaram.

Patrícia não atendeu.

terça-feira, abril 04, 2017

Dessolidões

Meu vizinho sofria de uma doença estranha. Foi ao médico, ao curandeiro, ao pastor, leu todos os livros de autoajuda, e nada. A tal da moléstia não o deixava em paz. Era um vazio no peito, uma fome de não sei o quê, um vagar assustado pela casa, um temor de qualquer coisa que não se parecesse com movimento e folia. Não tinha o que se queixar, sua vida era perfeita, muito amado nas redes sociais, vivia em noitadas, antecipada aos happy-hours cercados por amigos. Mas o que acontecia que o aporrinhava tanto? Não passava um minuto sozinho, não tinha nada que o aborrecesse de verdade, até no trânsito costumava se divertir: carro potente, som atordoante, quase um trio elétrico.

A vida se lambuzava de prazeres e o mundo nada mais era do que o seu portal de acesso. Estava sempre entre os melhores, aparecia com as mulheres mais lindas, era conceituado como um grande executivo, um homem de negócios e de valor. Até que apareceu aquela dor no peito, aquela quase falta de ar, aquela opacidade no olhar que às vezes se revelava no espelho, aquele murmúrio no meio da noite, com um ah abafado de quem sofre. Mas ele não sofria, era feliz e bem sucedido. Que diabo de doença o acometia?

Até que um dia, sem querer uniu-se a uma turma muito diferente da sua. Um pessoal que costumava flertar com leituras, com estética, com natureza, com vida ao ar livre, com família, com pequenos prazeres jamais considerados por ele.

No meio do papo, à beira da praia, já anoitecendo, começou a se questionar. Perguntou-se o que fazia no meio daquele grupo. Entretanto, deixou-se ficar, já que parecia agradável, uma sensação ímpar, que nunca tinha experimentado. Então, começou a falar de si, de suas vitórias na escalada social, nos grandes negócios, as conquistas as mulheres mais lindas e invejáveis do país. Não houve muito interesse. Em seguida, começou a se queixar. Não entendia o sofrimento do qual era passível. Afinal, a casa era sempre cheia de gente, onde ia, se reunia com as pessoas mais glamorosas, e mesmo assim, sentia este vazio, esta dor no peito, este desconforto que o atormentava. Até que um deles, um barbudo que parecia um guru oriental concluiu que ele sofria de dessolidão.

O prato estava cheio demais, de interesses perdulários, de objetivos materiais e muita, muita aparência. Não gostou do que ouviu, mas à noite refletiu.

É, meu vizinho sofria de dessolidão. Mata mais do que a solidão bem vivida.

segunda-feira, setembro 12, 2016

Sonhos que jazem acordados

Fonte da ilustração: waldryano do site www.pixabay.com

Olhar-se no espelho, meio dormindo, assim pela manhã e deparar-se com uma face nova, que não a sua, não é tão surpreendente assim.

Acontece, às vezes, com qualquer mortal. Principalmente, se ele está completamente desiludido de seus sonhos.

Aconteceu com Gustavo, certa vez.

Olhou-se no espelho, demorado. Piscou um olho, a resposta simultânea assegurava que era ele. Mas tinha consigo, que alguma coisa estranha tinha acontecido naquela noite.

Afinal, o mundo desandara a seus pés.

Escrevera mil histórias, publicou algumas, contos, crônicas, artigos em revistas, até um romance, considerado o primogênito bem amado. Esperou afoito que acontecesse, que desabrochasse para as audiências, que o lessem sofregamente.

Nada aconteceu. Nem um comentário, nem uma notícia boa, nem uma página de jornal.

Tudo burocrático, organizado por ele e 10% pela editora.
Como pensava que teria este vigor todo para tocar em frente, conquistar as plateias, dar entrevistas, divulgar o seu produto.

Apenas um filho, acalentado em sonhos durante as viagens que fizera em torno da imaginação claustrófoba.

Nada acontecera. Fizera umas sessões de autógrafos, umas reuniões com os amigos. Vendera alguns livros, mas só isso.

Não foi adiante.

Teve que tomar uma decisão difícil. Botar a boca no trombone, gritar aos quatro ventos, mostrar o que tinha produzido e revelar ao mundo a enganação que sofrera, ingenuamente.

Pensara que seria ajudado pela editora, que teria sua obra fixada no mural dos autores, que veria resenhas nos jornais, em páginas da Internet. Ilusão.

Calar-se. Era a outra atitude.

Aquietar o espírito e conceber a si mesmo que a estrada bifurcava logo ali adiante e que não havia caminhos paralelos.

Foi o que fez ou o que se permitiu fazer.

Deprimiu-se. Foi desta vez, que se olhou no espelho e viu apenas um espectro de si mesmo, um reflexo apagado da própria figura.

Era apenas mais um, na busca de um troféu que não era o seu, de um prêmio que não lhe entregaram, de um reconhecimento que não tivera.

Gustavo ficou assim, se olhando por mais um minuto. Mas foi só.

Afinal, o tempo passava depressa.

Aquele hálito pegajoso no espelho, já não era mais seu. Era do espelho, que bafejava satisfeito na sua cara.

Abandonou-o de vez e disse para si mesmo que recomeçaria mesmo assim.

Não com aquela manifestação de espírito exacerbada, mas com a vontade de expressar-se sob qualquer circunstância, em qualquer suporte, em que pese as dificuldades para fazê-lo.

Quem sabe, num feedback de comentários, sinta novamente o sabor da luta.

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