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quinta-feira, agosto 03, 2017

A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão.

Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo próximo a ela se rasgou e alguns tomates e maçãs se espalharam por debaixo do banco.

Maria Emília suspirou desiludida. Como pegar as frutas que se escorregavam para lá e cá. Um rapaz puxou algumas com os pés e ela conseguiu segurá-las, dobrando a barriga sobre os joelhos e sentindo uma fisgada nas costas. Ficou a metade perdida, mas ela sorriu agradecida.

No final da linha, ela desceu e caminhou mais algumas quadras com o que restara das compras. Sentia-se mal no sol intenso. O suor aumentava e agora descia até o peito, talvez percorresse todo o corpo se demorasse mais um pouco. Uma leve tontura e um tremor nas pernas. Maria Emília não queria parar, precisava chegar em casa e atender os filhos, mas percebia que a dificuldade de caminhar aumentava. Então, sentou-se numa pedra que ficava na esquina, de onde avistava uma casa abandonada, um pequeno bar mais adiante e um terreno baldio. Não faltava muito para chegar em casa e logo que pudesse, levantaria e faria o trajeto o mais rápido possível. Entretanto, a tremedeira aumentava e Maria Emília não tinha coragem de confessar a si mesma de que não voltaria para casa. Estava com muito medo e ninguém passava por ali, naquele calor insuportável. Na hora do meio-dia, todos fugiam da rua e se refugiavam nas casas para o almoço e ficar longe do sol o maior tempo possível.

Maria Emília rezou. Precisava de forças para chegar à casa e ver os filhos. Uma dor no peito a deixava angustiada. Tinha medo de morrer ali, no meio daquele vazio ensolarado, enquanto as pessoas preocupavam-se com suas vidas. E o que significava a vida dela, a não ser uma pequena centelha, quase faísca, quase brasa morta no meio de um fogaréu imenso. Tentou olhar para cima, mas a luz do sol não a deixava ver nada, ao contrário, obrigava-a a fechar os olhos e concentrar-se em si mesma, olhando-se internamente, como quem examina um cadáver. As vísceras, as veias, o cérebro. Tinha a impressão que se observava por dentro, como se fosse uma entidade alheia, vendo o próprio sangue em golfadas pela boca, ao mesmo tempo que sentia um gosto insuportável. No entanto, nada mais acontecia, a não ser um silêncio quieto e um apagamento natural.

Quando acordou, achou que tudo ocorrera há muito tempo e que talvez houvesse morrido e voltado à vida, assim, do nada. Sentia-se um pouco melhor e pôde mexer-se. A dureza da pedra e suas reentrâncias doíam-lhe as carnes, esfolava as pernas naquela aspereza e as mãos estavam crispadas, segurando alguma coisa que não sabia muito bem do que se tratava. Conseguiu dobrar-se com esforço e perceber que segurava um livro, um livro de capa branca e se pudesse abri-lo, veria que em nenhuma página havia algum registro, alguma expressão escrita ou desenho, ou qualquer outra ilustração. Era um livro de capa branca e em branco. Deixou-o cair no chão e virou o corpo um pouco para a esquerda, outra vez para a direita, tentando procurar as sacolas e a bolsa que carregava com os seus documentos e alguns trocados que sobrara da passagem do ônibus. Mas somente avistara o título do livro: Constituição. Esqueceu-o, queria apenas a sua bolsa, os seus documentos, as suas sacolas. Mas elas não estavam ali. Maria Emília se desesperou e quis gritar, pedir por socorro, mas a voz parecia sumir-se num túnel tão grande que as ondas sonoras definhavam pelo meio do caminho.

Maria Emília começou a chorar e achou que não havia saída, que nunca mais voltaria para casa, mesmo que estivesse tão perto, pois jamais sairia daquela pedra e que as coisas morreriam com ela, o seu passado, a sua memória, a sua luta, a sua esperança.

Maria Emília não tinha esperanças. Entretanto, por um momento, pensou que tudo mudaria quando as horas passassem. Quando os homens e mulheres de bem voltassem para seus trabalhos, saíssem das casas abrigadas e encarassem o sol escaldante do início da tarde. Então a veriam ali e certamente a ajudariam a voltar. Quem sabe a auxiliassem com algum dinheiro, com algum alimento, já que não havia nada em casa, nem mesmo o leite para as crianças. Mas eles não apareciam nunca como se houvessem feito um pacto para ficar em casa e se esconderem de um clima adverso e perigoso.

Será que ninguém a veria por ali? Será que ficaria eternamente presa àquela pedra?

Aos poucos, Maria Emília percebeu que a pedra era o único apoio que possuía. Ela era muda, firme e passiva. Era o único recurso que não a auxiliava em nada. Tudo parecia parado, descuidado e omisso com pessoas como ela. A pedra, entretanto parecia responder às suas dúvidas e de repente, começou a crescer, a aumentar de tamanho empurrando-a para os lados, ao mesmo tempo em que ela se agarrava com todas as suas forças para não cair, porque ao mesmo tempo em que escorregava, subia para o topo e ficava cada vez mais longe do chão. A pedra inchou tanto, que ela se assemelhava a uma formiga na laranja, porém havia uma vantagem: lá do alto, podia por fim, avistar o povo que se aproximava. De repente, eles saíam de casa. Talvez tivessem um motivo forte para irem para a rua, quem sabe protestarem contra aquela situação absurda em que a apatia tomava o espírito dos brasileiros.

Algumas mulheres se aproximavam como se estivessem num velório, chorosas e sem atitude, desordenadas, parecendo zumbis. Algumas traziam pequenas bolsas, só com documentos para comprovarem quem eram. Nas mãos, visores coloridos se conectando. Os homens carregavam mochilas às costas, também usavam celulares e aparentavam sorrisos mornos, provavelmente fruto de mensagens lúdicas. Entretanto, pareciam mais apáticos e sentiam-se mutilados nos pensamentos, desprovidos de expectativa de alguma mudança da realidade. Talvez nem quisessem isso ou nem se importassem. Talvez soubessem que o Brasil não tinha jeito.

Maria Emília percebeu que eles nem olhavam para ela, talvez nem a vissem lá debaixo e embora gritasse, pedindo ajuda, não a ouviam. Mas ela percebeu que, um pouco afastado, um rapaz de capuz se aproximava, embora dando guinadas e fumando um cachimbo estranho. Quando chegou mais perto, ela pode ver que ele carregava as suas sacolas e sua bolsa, logo atirando-as no terreno baldio. Eram apenas sacolas rasgadas e vazias, um que outro objeto que ela não distinguia bem, talvez um relógio, mas ela não tinha nenhum relógio, o que seria aquilo? Havia um brilho forte no tal objeto, como se fosse uma arma, sim, talvez uma faca, um punhal. Percebia o amarelo dos ovos se esparramando pela grama seca e algumas frutas que ainda restavam se misturavam ao lixo do terreno. E seu dinheiro e seus documentos, o que ele fizera com eles? Gritou em desespero para que a ouvisse. E ele ouviu. Foi o único que a viu sobre a pedra gigante e parecia divertir-se muito com a visão. Ria sem parar e dava pequenos gritos, como uivos até jogar-se ao chão e ficar desacordado.

Maria Emília estava desolada. Nunca mais a encontrariam, nem seus filhos, nem seus amigos, nem mesmo os parentes. Para eles, ela estaria morta e embora aparecessem por ali, jamais a veriam porque havia um pedra gigante em que se apoiaria para toda a vida. Seu destino, por certo, era virar pedra, fazer parte daquele aglomerado de minerais e transformar-se numa figura invisível, um camaleão disfarçado em pedra, para sempre.

Foi quando percebeu que dois policiais se aproximavam. Ela nem gritou, nem falou nada, pois já não tinha esperança de que a ouvissem. No entanto, viu quando pegaram o menino, deram-lhe algumas bordoadas, uns pontapés, golpearam a cabeça com o cassetete e o levaram para o camburão. Depois, viraram-se para a esquina, aquela onde ficava mais perto de sua casa. Tiraram umas faixas do carro, com algumas expressões em letras garrafais. Esticaram-nas de uma árvore à outra ou as prenderam em postes para que ficassem bem à vista.

Maria Emília conseguiu ler alguma coisa, que a deixou mais perturbada ainda. Não era muito boa em matemática, mas a leitura sempre a agradou e por isso, lia bastante, tudo que aparecia, desde textos escolares até algum romance que passava por suas mãos.

As frases eram firmes, exatas quase matemática.

“Só um governo. Só uma justiça. Não à democracia.”

Maria Emília sentiu que a pedra se alongou mais ainda, como um obstáculo que a empurrava para o topo, para o fim do nada. Como pedir ajuda, como sair dali. Então percebeu que pessoas como ela estavam fadadas a serem esmagadas pela pedra e que ela giraria até que ela despencasse sem vida. Então, respirou fundo e se acalmou. Afinal, não havia justiça mesmo, não havia nem democracia. O país estava no fundo do poço.

Maria Emília, porém ainda teve um resquício de esperança quando viu algumas crianças se aproximarem e teve um choro convulso ao perceber que seus filhos também corriam pelas ruas. Só desanimou, quando os viu servirem-se de restos de comida, jogadas nas esquinas, talvez para os cães. Sentiu uma dor profunda no peito, como um golpe de punhal dilacerando as carnes, as vísceras, o cérebro, o coração e escorregou da pedra.

sábado, julho 29, 2017

A esquina iluminada

Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação.

A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo.

Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos.

Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show improvisado.

Entrou e encostou-se no balcão, acomodando-me entre meia dúzia de homens que se acotovelavam, bebendo e conversando em brados, misturando as vozes com a música que uma cantora se esforçava em dividir com o som e as imagens do futebol na TV. Algumas mesas faziam um círculo com pessoas entusiasmadas que aplaudiam, semelhante a uma plateia de teatro de arena. É provável que fossem amigos ou parentes da cantora magrela, que produzia uma perfomance estranha, vestida de couro em preto, da cabeça aos pés, olhos fundos, salientados por traços escuros, contrastando com uma franja lilás.

Fabrício nem percebera que o atendente perguntara pela décima vez, talvez, o que pretendia beber.

— Cigarros. Pode ser desse azul, aí. – Apontou para o mostrador na parede.

— Só isso?

— Só isso não… – O outro afastou-se para servir o cliente mais à direita, mas insistiu que nem queria cigarros, mas sim uma cerveja.

Fabrício percebeu que o atendente transferira o seu pedido ao garçom magro e de cabeça pelada, que se espalhava entre as mesas. Irritado por ter sido preterido, indagou por que não lhe atendera. Justifiquei a sua indignação, dizendo que teria de esperar que o outro, que estava no lado oposto do bar, viesse até ali e lhe trouxesse uma cerveja.

Alguns homens que estavam ao seu lado voltaram-se para ele, mas logo o esqueceram. Também o caixa fingia não ouvir. O mundo parecia eliminá-lo do cenário.

Antes que o garçom se aproximasse com a cerveja, voltou ao assunto, pedindo esclarecimentos ao homem:

— Não seria melhor teres me atendido? Tiraste o outro da atividade dele.

Ele coçou a cabeça irritado, enquanto o garçom sorriu por um minuto e logo se afastou em direção ao grupo que pedia outras bebidas. Ficou encarando o balconista com raiva estudada.

O vendedor respondeu, sem voltar-se para ele, como se o seu foco fosse alguma coisa abstrata. Enxugava as mãos num guardanapo cinza, que devia ter sido branco e assentava os cotovelos no balcão. Os braços eram fortes, com veias salientes e estranhas tatuagens.

— Olha aqui, meu amigo. Não to aqui pra dar trela. Tu já foi atendido, desencana.

Fabrício percebeu o jeito displicente, o cabelo empapado em gordura, o bigode grisalho mal afeitado. Talvez por isso, decidira levar a discussão adiante. Respondeu que ele estava ali para dar trela sim, usando as suas palavras. Afinal ser atencioso e eficiente devia ser uma regra de boa convivência, pois o bar era um ambiente público, no qual o cliente deveria ter prioridade absoluta.

O outro respondeu já na outra extremidade do balcão, atendendo na caixa:

— Meu amigo, não tenho tempo pra discutir isso tudo que tu falou aí, do teu manual. – Terminou a frase rindo com ironia, piscando para o freguês a quem dava o troco, que também sorria.

Um ódio se insurgiu nos sentimentos de Fabrício e por um instante, imaginou o pai na figura daquele homem, extrapolando as suas funções e dando lições de moral. Foi neste momento, que gritou:

— Para coçar o saco, enquanto oferece um salgado, tu não te importas! Nem ao menos, pegas um garfo, um guardanapo de papel. Estás sempre pendurado neste pano de pratos sujo em cima do balcão. Eu poderia chamar a vigilância sanitária e fechar esta espelunca.

— Tu é da fiscalização? Se não é, vaza! Não me enche o saco!

— Sim, como todo cidadão.

Um dos que estavam ao seu lado, um homem franzino e de pescoço comprido, se pronunciou agressivo, mandando-o calar a boca. Não pensou duas vezes e o acusou de ser um alienado.

— Não te mete, seu garnizé. Se tu és daqueles indivíduos que aceitam tudo sem reclamar, o problema é teu.

— Tu tá criando caso, só isso. Já foi atendido, não foi? Então fecha a matraca, que a gente quer assistir o jogo – disparou com fúria solidária ao companheiro, um outro de corpo avantajado e camisa regatas.

Fabrício sentia náusea do suor que brilhava na axila peluda. Afastou-se um pouco dos braços enlaçados do balcão e resmungou "um bando de idiotas!".

Pegou a cerveja que lhe foi empurrada da caixa e e dirigiu-se a uma mesa próxima ao palco improvisado, no qual a cantora, neste momento encerrava a apresentação.

Em seguida, o rapaz de cabeça pelada limpou a mesa e antes que se afastasse, ele agradeceu e ficou em silêncio.

Bebeu o primeiro gole e a bebida escorria amarga. Entornou um copo atrás do outro até acabar o conteúdo. Havia uma necessidade de terminar e pedir outra cerveja. Desta vez, o garçom foi rápido. Continuou no mesmo processo, embora agora, sentisse uma certa euforia na bebida. Olhava enviesado para os habitués, que a esta altura, o haviam esquecido , fascinados que estavam pelo futebol.

Os ruídos se aceleravam, além do som da TV, como se fosse um final de festa, sem a música, apenas os ruídos remanescentes.

Ao terminar, Fabrício levantou-se da mesa, empurrando-a e riscando os seus pés de metal no piso.

Ato contínuo, aproximou-se da caixa, onde estava o pivô da discussão, agora tranquilo, apenas assistindo o jogo. Chegou bem perto para chamar-lhe a atenção, gritando para que todos ouvissem:

— Um dia, tu vais aprender a tratar bem as pessoas.

O atendente voltou-se surpreso e muito assustado, porque Fabrício apontou uma arma em sua direção.

Os demais se afastaram correndo do balcão, produzindo uma clareira no centro do bar.

Apenas ele e o balconista se enfrentavam.

Algumas mulheres gritavam em pânico.

O rapaz da cabeça pelada escondia-se num nicho de uma porta que certamente existira no passado, atrás de uma cortina ensebada.

Fabrício percebera que o homem da caixa estremecia e falava com uma voz gutural, esforçando-se em me pedir cuidado.

— Calma com este troço aí, amigo, isso não é brinquedo.

Não lhe deu ouvidos, ao contrário, engatilhou com a mão firme e respondeu com fúria:

— Não me chama de amigo, seu palhaço. Eu não sou teu amigo!

O outro fez um anteparo com as mãos espalmadas em sua direção, apavorado.

— Está bem, mas por favor, vai embora. Que pensa que tu vai fazer, pelo amor de Deus!

Ele começou a rir, sempre apontando a arma para ele.

— Agora estás te cagando de medo, seu covarde! Cuidado, vais te borrar nas calças – e voltou-se para a plateia silenciosa – vejam pessoal, o valentão está se borrando de medo!

Virou-se num segundo para o balconista e o viu abaixar-se atrás do balcão, com os olhos arregalados, suplicando por sua vida.

Não podia atendê-lo, significava muito a sua liberdade, por isso, o atingiu.

Um estampido somente. Um breve instante e uma risca de sangue pela boca, o pulmão perfurado. Rápido, fulminante, certeiro. A morte atrás do balcão. Mais um idiota intolerante fora eliminado.

O garçom de cabelo muito curto trazia outra cerveja e comentava alguma coisa, mas não o ouvia. Ficou parado, pensativo, tentando adivinhar o que estava fazendo ali. Entretanto, segurou a garrafa com parcimônia, agradeceu e deixei-a sobre o balcão de pedra.

Quando voltou a vê-lo, ele já estava do outro lado, servindo as mesas restantes.

Olhou para o caixa que parecia esforçar-se em manter-se alheio. De vez enquanto, arriscava por debaixo dos olhos para os fregueses e acenava a cabeça, entediado com as conversas e as beberagens. Quando respondia alguma pergunta, nunca encarava as pessoas e quase sempre entregava as tarefas ao garçom, mesmo que este estivesse perdido entre outras mesas.

Examinou o seu olhar miúdo, um tanto ausente. Devia ser o dono daquela espelunca, pois demonstrava muito zelo pelas contas.

O atendimento deveria ser mais amistoso e pessoal, pensou. Entretanto, não reagiu, não tomou qualquer atitude que expressasse o seu descontentamento.

Se tivesse uma arma naquele momento, teria atirado naquele imbecil ou talvez apenas avistasse pela janela a esquina toda iluminada e decidisse seguir em frente.

quarta-feira, maio 24, 2017

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.
 

Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.
 

A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão. 

Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.
 

Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.
 

O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que restava dela: a mão branca, as veias azuis e o café preto, borbulhante. Tomou o café, na esperança de ter um up no ânimo. Mas deixou-se ficar ali, alisando o cartão de crédito no granito do balcão. Por um momento, olhou-se na pedra brilhante. Seu rosto contorcido, fundo de colher, como num espelho de circo. Um cheiro de álcool passava entre seus dedos. A limpeza constante do bar, o esfregar de lá pra cá, como se o estivessem correndo dali. Tomou o último gole de café. Voltou para o celular. Abriu o tablet.
 

Por um momento, teve um pensamento estranho: se abandonasse o local, se deixasse o aeroporto e voltasse para o hotel. Não tinha nada a perder quanto às finanças. Tinha tudo emocionalmente. A casa, o lar, a vida que construíra, tudo estava tão longe, distante de seu controle. Via naquela moldura embrumada a mulher desenvolta nas atitudes cotidianas, levar a filha na escola, deixar com a babá, voltar para o trabalho. Via-a sorrindo com as colegas, enfeitando a escola para a copa, fazendo o artesanato das crianças, voltando para casa. Via-a agir, assumir, viver. Ele ali, parado e aquela neblina envolvendo tudo, o retrato ficando longe, cada vez mais, e as nuvens tomando conta. Tudo parecia passado, embora tão presentes em sua mente.
 

A garçonete perguntou alguma coisa. Ele nem ouviu ou se ouviu, fingiu que não. Mesmo assim perguntou se o aeroporto tinha wi-fi. Pergunta boba, mas necessária naquele momento. Precisava dizer alguma coisa e era o que lhe vinha à cabeça. Guardou o tablet na mochila, sem usá-lo. Guardou também o celular no bolso do paletó. Sentia um suor escorrer testa afora e parar na boca. Sentiu o gosto salgado e não fez nada para evitar. Alguma coisa mais forte o mantinha preso àquele lugar. Levantou os olhos na direção das luzes neon do bar e ficou imaginando as letras coloridas da escola. Certamente aquelas que sua filha decorava e enfeitava o caderno. O pequeno caderno colorido, com mais desenhos e ilustrações do que texto. Era o caderno de sua filha. Que estaria fazendo ela, aquela hora?
 

Então, voltou-se para o painel novamente. As linhas mexiam-se rápidas no seu astigmatismo. Tinha quase certeza de que era o seu vôo. Correu em direção ao painel para ver de perto. Um aviãozinho circulava pelo céu de Brasília. Ele não estava lá.
 

sexta-feira, maio 12, 2017

O detetive e a cerveja alemã

Samuel Smart era o nome dele. Dizia-se detetive particular e tinha tanto sigilo, que temia que o chamassem de detetive. Certa vez, estávamos num bar tomando umas cervejas e o chamamos, mas ele nem nos olhou. Ficamos nos perguntando o que estava acontecendo , eu e outro amigo que comemorávamos qualquer coisa, como o início do verão, ou apenas o simples motivo de nos reunirmos.

Afinal, Samuel Smart era nosso conhecido há muito tempo, não que tivéssemos uma amizade mais próxima com ele, mas a intimidade se dava devido à pequena distância de seu escritório como o nosso trabalho. Às vezes, o encontrávamos ali mesmo, no bar, com uma história capciosa, mas aquele dia, especialmente ele nao queria a nossa presença.

Tempo depois, voltou assoberbado e até ofegante, passando por nós e evitando conversa. Não deu outra: resolvemos tirar a limpo o que estava acontecendo. Levantamos da mesa e fomos ao seu encontro. Samuel disfarçava, olhava enviesado para os lados, procurando não dar na vista. Insistimos, queríamos saber o que estava acontecendo.

Ele então confirmou, irritado:

— Eu estava numa campanha, numa investigação importante, entende? E vocês começaram a me chamar por detetive, estavam colocando tudo a perder! Não podia responder.

— Mas qual era o caso? – Perguntei displicente.

— Como assim? Acha que não tenho sigilo com os meus clientes?

— Ah, você sempre dá uma dica. – Acrescentou o meu amigo, que a estas alturas estava um pouco alto. Insistiu com Samuel. – Você até contou que tava perseguindo uma mulher que traía o marido e que era ...

—Cala a boca, você quer me prejudicar?

Eu então fiz o convite crucial. Perguntei se não queria sentar a nossa mesa. Ele foi definitivo:

— Quando estou a trabalho, não bebo.

— Mas você já não terminou a investigação?

— To no processo, você sabe. A coisa não acontece assim, de uma hora pra outra, não é tão simples assim.

O meu amigo perguntou, irônico:

— E você não tem medo de ser capado por algum marido descoberto?

— Não diga bobagens. O cara fica tão desesperado que quer fugir e esquecer até que eu existo!

Decidi encurtar o caso. Melhor era voltar para a nossa beberagem e curtir o fim do dia. Perguntei pra Samuel:

— Você viu a nova cerveja alemã que tá no mercado? Viu a data, você que sabe tudo, grande detetive.

— Você está me zoando.

— Sério. É de 1945. Já tomou? Olha o selo na garrafa.

Samuel aproximou-se do balcão, examinou bem a garrafa, passou a mão pelo rótulo, pela tampa, tentou decifrar o que dizia em alemão e concluiu:

— Não tem importância a data.

— E por que não? – Perguntei, intrigado.

— Porque deve ter outra fresquinha aí dentro. Essa já tomaram naquela época.

sábado, novembro 12, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19

No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando.

Fernando conclui, satisfeito:

— Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo?

Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta:

— Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma.

Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja.

— Então, me diga, o que é que você queria me dizer?

— Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário.

— Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe.

— Há pouco tempo, você disse que havia empatia entre nós.

— É verdade, mas… deixa pra lá. Não precisamos de um motivo para tomar uma cerveja, não é mesmo?

— Tem um motivo.

— Como assim?

— Você sabe que venho observando-o há algum tempo, deve ter percebido, não?

— Olha aqui, Alfredo, só quero lhe dizer uma coisa: eu não sou gay.

— Meu Deus, o preconceito é uma coisa terrível.

— Não, eu não tenho preconceito, se tivesse, não estaria neste bar, desculpe a franqueza, conversando com você.

— Você acha que dou pinta?

— Não, você parece mais macho do que muito cara que conheço, mas todo mundo sabe…

— Não se trata disso, Fernando. Não tem nada a ver com orientação sexual. Na verdade, eu nunca pensei em ter um caso com você, se é isto que o está afligindo.

— Ah, sim.

— Como disse, eu venho observando você, além disso, você sabe, sou advogado. Sei que não é uma coisa muito honesta, mas no meu meio, sabe-se de tudo.

— Que eu fui presidiário?

— É verdade. Eu sei tudo sobre a sua vida, sei também que você matou um homem.

— E o que isso tem a ver com o nosso papo?

— Quero que você me ajude. Acho que você é a única pessoa com quem posso contar.

— E o que você quer de mim?

Alfredo entorna o copo, sentindo a bebida gelada escorrer-lhe pela garganta. O suor empapa-lhe o colarinho da camisa. Por um momento, tem a sensação de que está conversando com a pessoa errada, na hora errada, mas agora não há como recuar. Solta o copo e abre um pouco a camisa, enquanto olha fixamente para Fernando.

— Sei que as coisas estão difíceis para você. Olhe, eu não tenho nenhuma intenção de prejudicá-lo, só falei isso porque você precisava saber com quem está lidando. Não podia simplesmente fingir que somente o conhecia como o jardineiro de minha mãe.

— Muito bem, até aí, eu concordo. Mas não entendi qual é a sua intenção.

— Bem, na verdade, eu preciso de um favor.

— Um favor? De repente, todo mundo precisa de um favor meu.

— Por que você diz isso?

— Nada. Esquece.

Alfredo faz uma pausa, pensativo. Em seguida, pergunta se Fernando não quer outra bebida.

— Você não acha que está bebendo muito para quem está dirigindo?

— É verdade, mas você não quer repetir a dose?

— Não. Gosto de beber com amigos, desculpe. Acho que esta já é de bom tamanho.

— Acho que você tem razão. É a segunda vez que afirma que não somos amigos.

Fernando fica calado, olhando para o copo. Alfredo prossegue, um tanto ansioso.

— Claro, claro, não faz diferença.

— Meu amigo, não enrola. Me diz como posso ajudá-lo.

— Preciso explicar-lhe com calma. O assunto é delicado.

Fernando decide pedir outra cerveja, considerando que o assunto será longo. Faz o pedido e o garçom se aproxima, trazendo a bebida em seguida. Alfredo então, põe as cartas na mesa.

— Bem, Fernando, a minha família está passando por um momento muito complicado. Vou resumir a parte que interessa e depois, vejamos como você pode me ajudar.

— Você se refere a sua mãe?

— Um pouco sobre ela sim, mas o problema maior é o meu pai.

— Seu Sandoval?

— Ele está com uns planos malucos, está sendo desonesto com minha mãe e eu preciso ajudá-la de qualquer maneira. Não vou deixar que a considerem louca.

Fernando lembra-se da conversa que tivera com Santa e do segredo que ela lhe confiara. Teria a ver com o que Alfredo falava neste momento?

— E o que você quer que eu faça?

— Quero que dê um susto no meu pai. Não quero matá-lo, não faria isso, mas quero que ele desapareça por uns tempos.

— Cara, eu não sou bandido. O que está havendo hem, todo mundo ta querendo me ferrar, é isso? Eu estou em liberdade condicional, querem que eu volte pra cadeia?

— Escute, Fernando, você vive naquela casa, praticamente todo o dia. Sei que desde que foi para lá, tem ficado na casa dos fundos, junto com Linda. Você deve estar a par de tudo.

— Eu vou sair de lá. Você sabe para onde estou indo agora.

— Tudo bem, você vai voltar para a casa que era de seus pais, mas continuará trabalhando em minha casa.

— Como assim, um susto?

— Eu pensei muito quando você pretendeu se mudar. É uma casa abandonada, num lugar afastado. Eu quero que você o leve para lá, por uns tempos, até que eu resolva todos os problemas de minha mãe.

— Você quer que eu sequestre o velho?

— Sim, mas será por um mês.

— Você não parece advogado, né, a menos que queira me ferrar mesmo! Então não sabe que toda a polícia vai procurar o velho na minha casa? Será o primeiro local que procurarão.

— Não, ninguém o procurar, não se preocupe, porque direi que ele decidiu viajar. Invento qualquer coisa em relação à empresa. Não se preocupe, não acontecerá nada com você.

— Que família desgraçada, hem!

— Por que diz isso?

— Porque a sua mãe também está planejando contra o velho.

— Como assim?

— Contra ele e minha tia. Parece que os dois estão de conluio, estão querendo enlouquecer ela, foi o que me contou. Então, ela quer que eu descubra tudo e consiga provas para mostrar a vocês, a toda a família o que eles estão aprontando.

— Meu Deus, eu tinha razão. Meu pai quer ficar com toda a fortuna, sozinho.

— Mas tem mais coisa aí, você sabia que seu pai tem um filho com Linda? Foi o segredo que sua mãe me revelou.

— Miserável! Eu não sabia de nada!

— Os dois tem um plano, mas não sei ainda se estão juntos por conveniência ou por que minha tia o chantageou.

— Então, o meu plano tem muito mais razão de existir. Este canalha não pode ficar impune!

— Mas o que você pretende fazer com o sumiço do velho?

— Nesse meio tempo eu pretendia provar que minha mãe é uma pessoa lúcida e capaz. Não posso deixar que ele participe do processo, porque vai moldar a situação de acordo com seus objetivos. Mas, agora sabendo o que sei, que você me disse, o caso muda de figura.

— Por que?

— Porque é muito mais grave do que eu pensava. Nós sumimos com ele e você aperta com sua tia. Nós vamos provar que os dois estavam planejando se livrarem de minha mãe.

— Eu não posso fazer nada contra minha tia, porque ela me ameaça, me joga na cadeia novamente.

— Mas você pode fingir que não sabe de nada e começa a se preocupar com ela, perguntar coisas. Não pode enfrentá-la, apenas. Tem que ser cínico.

— E o que eu ganho com isso?

— Eu posso lhe dar um bom dinheiro, é isso que interessa, não é mesmo?

— E o que eu faço com a proposta de sua mãe?

— Faça a sua parte, descubra tudo com a sua tia, não é o que ela quer?

— Sim, inclusive sobre os remédios. Sua mãe desconfia que minha tia está lhe dando calmantes fortíssimos, para que se esqueça das coisas.

— Muito bem, faça isso. E faça o que lhe pedi, tenha certeza que só tem a ganhar.

— E como vou fazer isso? Eu já lhe disse, eu errei uma vez, fiz uma burrada, acabei matando um homem, mas não sou um bandido. Eu não quero voltar pra prisão!

— Só tem uma maneira: fazer a coisa certa. Pode deixar, eu vou ajudá-lo.

Fernando coça a cabeça, intrigado.

quarta-feira, outubro 12, 2016

A margem oposta

Fonte da ilustração: fotografia do facebook do escritor e poeta Wilson da Rosa Fonseca

Passei a viver assim taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacudisse o pó e o levasse comigo.

Este frio que me atazanava, que me doía as carnes, que me comprimia os ossos e me deixava zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma.

Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente.

Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo.

Mas precisava ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assolava e me deixava assim, desconsolado.

Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem consequência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa.

Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de meus pares, afastado de minha vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir.

Caminhada infértil, estéril, vazia.

Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.

Desci correndo as escadas e me deparei com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar.

Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que outra, motivadas pelo vento.

Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seu olhar sagaz nas sombras da noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários.

Mas ao contrário, o que fiz foi afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas.

Mulheres que passeavam pelo cais, acenavam, obscenas. Soturnas e sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia.

De repente, as luzes pareciam mais intensas, movimentos giratórios e alucinantes. Sons que emergiam, línguas de fogo ágeis desfilavam por bares cheios, pessoas que corriam, ruas apinhadas e trânsito parado.

Fechei a gabardine até o pescoço e trouxe a touca aos olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados.

Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaiei passos pela calçada lateral.

Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dava náusea.

Apoei-me no muro de pedras e sentia as costas doerem. Queria perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto.

Tudo me vinha à mente, mas pouco se transmutava em meus lábios.

Raramente falava, ficava assim, alienado e mudo. Temia ser mal interpretado. Temia respostas. Compartilhamento. Parcerias. Talvez temesse viver.

Olhei em torno, a gordura se misturava com a fumaça do cigarro do homem que passava resmungando coisas sem nexo, iluminado no néon do bar.

Uma mulher se aproximou e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu coração saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora.

O frio fazia-me bater dentes. Talvez pela ansiedade.

Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso.

Entrei distraído, olhando para o nada.

Mas vi uns balões pendurados no teto e recordei as noites de São João, fogueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu abrilhantado de estrelas, quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos.

Depois, olhei para o chão e vi a lajota rugosa, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos curiosos.

Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão.

Um copo de cachaça bateu no tampo de granito danificado.

Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar, a ponta de alegria que personificava a máscara.

Olhei para um, para outro e aceitei o drinque.

Ela perguntou, voz fina e esganiçada:

— Tá procurando diversão?

Diversão? Foi o que eu procurei em toda a minha vida.

A cachaça escorreu pela garganta e um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo.

Tentei afastar-me, foi só um gesto.

Ela segurou meu braço, decidida.

— Muito frio lá fora, moço. Aqui dentro está gostoso, não acha? – Apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna.

Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo.

O homem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, inserindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos.

As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes.

De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.

— Você não é o Gomes?

Balbuciei qualquer coisa, desconfiado.

Ele nem me ouviu. Prosseguiu, inquieto:

— Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – E antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes está aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, mas é mentira.

— Não, não sou o Gomes.

A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores.

O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto:

— Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara está vivo, não é?

Voltei-me para a mulher, afirmando-lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita:

— Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.

Tentei argumentar, afastar-me, mas minhas pernas bambolearam.

O banco estremeceu, quase desandando no chão. A mulher o segurou rapidamente. Em seguida, abraçou-me, enquanto dezenas de frequentadores se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele, o Gomes.

A bebida rolava no balcão. Até um cigarro de maconha me ofereceram.

—Sei que tu é da lei e não destas coisas, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa!

Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme e grave.

Um silêncio sepulcral se fez no ambiente. Até o funk parou.

Entretanto, o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele.

— Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! – E um deles gritou, acompanhado nas risadas de muitos: — Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhar. É o seu carma, não tem jeito.

Então, ingeri o restante do copo. E mais enchiam, mais tomava.

O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a tal Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho.

Fiquei paralisado no meio da roda.

O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade.

Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpente, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo.

Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no chão, desajeitados, filhos pródigos de um pai atencioso.

Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool.

Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”.

Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra.

E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda.

E o povo gritava, vai Gomes, vai Gomes, vaaaiiiii.

Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes.

O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço.

Comecei a abraçar Marielsa, a beijá-la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”.

Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma.

Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiam para contar como me livrei do afogamento.

Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário.

Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente.

O círculo se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro.

De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção.

Eu parei, ousado. Até sorri.

Ele colocou uma mão na cintura, indicando uma arma.

Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos.

Eu segurei-me impávido.

O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de chamas o mar escuro:

— Você é o Gomes?

Confirmei, firme, quase arrogante:

— Sim, sou o Gomes.

Puxou a arma disparou dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo. Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença:

— Paguei a minha dívida.

As pernas fraquejaram.

Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos braços, como a Virgem. Os outros como pinguins em bando, me acercaram.

Pensei que cruzava a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, produzindo um som abafado acordando a noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não era o Gomes.

segunda-feira, setembro 05, 2016

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas.

Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano.

Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de boêmio, revelando a segunda-feira o registro da ressaca espiritual e física.

Mas Xavier sabia o que fazia. Quando comentava algum detalhe, preenchia-o com tantas expectativas, que tornava o interlocutor um passivo ouvinte, quase no desespero de descobrir o que pouco era exposto.

Certa vez, Xavier resolveu abrir o bico. Só, que expert na área de levar vantagem, impunha uma condição, ao que os colegas se olhavam intrigados e até, insatisfeitos em ceder em alguma coisa. Não era uma coisa qualquer, era algo digno de transformação de todo o grupo de trabalho, a ponto de mudarem as lideranças ao descobrirem pecados inadmissíveis àquele bando.

Xavier tinha os seus caprichos e só contaria se fizessem como dissera. E o que queria ele?

O que de tão cabuloso fazia em suas noitadas festivas? E quais eram os pecados dos colegas?

Era exatamente isso que ele desejava: cada detalhe que contasse de sua vida desregrada seria recheado de minúcias da vida certinha ou não tanto, dos colegas.

Foi num happy hour que ele deu o veredicto. Ninguém acreditava no que dizia. Estavam juntos Márcio, o economista, Juarez, o relacões públicas, Manoel e Frederico, que chamavam de Fred, os funcionários do atendimento ao público e Rodrigo, o estagiário que era pau pra toda obra.

Entre um chop e outro, Xavier decidiu colocar as regras na mesa. Claro que todos arrepiaram. Olharam-se de vesgueio, intrigados. Mas que fazer? Por que não contar? E o que contar de suas vidas medíocres, tão iguais, tão insossas, tão diferentes da exuberante de Xavier?

Afinal, a bebida já os fazia abrir as golas das camisas e desabotoar os sentimentos. Estavam se livrando das amarras, aos poucos, não tanto quanto Xavier, porém quem sabe não seria este o momento?

E nesse meio de conversas e risadas cada vez mais frouxas, Xavier fez um comentário de um colega. Todos fizeram silêncio. Até que ele repetiu. Era sobre Juarez, o relações públicas da empresa. Ele saiu da pasmaceira e perguntou: — O que foi que você disse?

— Nada demais Juarez, mas muito engraçado. Eu vi que você leva um copo plástico pro mictório.

Os demais começaram a rir. Juarez interpelou, já irritado: — Não sei do que você ta falando.

— Mas você leva o copo, não vai dizer que não?

— Pra que, Juarez? Pra … – e Manoel faz um gesto obsceno, indicando masturbação – é pra isso mesmo?

— Cala a boca Manoel, deixa de ser ridículo - gritou o exarcebado Juarez.

— Desculpa aí, amigão, mas eu sei pra que você leva o copo — e Xavier prossegue, caindo na risada — tem uma utilidade aí. Você enche o copo dágua, derrama devagarinho no vaso e mija à vontade.

— E o que tem isso? Aprendi com um cara estrangeiro, dizia que ajudava - olha aqui, não devo explicações a vocês. Vãos se fuder!

Fred então saiu na defesa de Juarez.

Fred era um cara baixinho, de cabelo crespo, muito preto e barba cerrada. Olhou para os lados, encarou Xavier e disparou: — Sei que você tá tentando fugir da coisa. Não me engana Xavier, chamando a atenção pro problema do Juarez, você – foi interrompido com a reclamação de Juarez – não é problema! – e continuou – que seja, não é problema, o fato é que o Xavier se aproveitou disso pra não contar a sua vida de sacanagem.

— Ué, eu disse que cada um tinha que contar uma falha, um pecadinho. Tá todo mundo com auréola de santo aí. E você Fred, que tá reclamando, vai, conta o seu.

— A minha vida é calma como o rio que passa sob a ponte. Vocês sabem que sou casado há pouco e tudo que acontece é dentro das quatro paredes.

Xavier, parecendo saber de alguma coisa, pergunta, irônico: — Mas me diga, parece que vocês andaram meio assustados numa noite dessas. Não foi esta pasmaceira que você tá falando.

O outro sem graça, reclama: – Bobagem, nem sei do que ta falando.

— Da vizinha do quarto andar.

Juarez, agora mais relaxado, cai na risada – Então aí tem coisa. O que tem a vizinha do 4º andar?

— Vocês estão malucos? Não tem nada a ver.

— Claro que não – prossegue Xavier – mas ela andou espalhando umas coisas por aí. Não sei como soube, acho que pela sua mulher mesmo.

— Foi um sonho.

—Então explica. Fala pra nós, cara.

— Eo que esta vizinha enxerida falou?

— Ela acha que nao passou de uma brincadeira.

— Pois se você sabe, conta você Xavier. Você não é o alcoviteiro da vida de todo mundo?

— Aí não tem graça -concluiu Xavier. Manoel então insistiu: — O que aconteceu afinal, Fred?

—Ah, caras, uma história maluca. Mas neste caso, os pecados são da Mara, a minha mulher.

— O que foi que ela fez?

— Sei lá, era umas três horas da madrugada, ela ouviu ruídos fora do quarto. Levantou-se da cama sobressaltada e apavorada se encostou no meu ouvido, falando baixinho que o marido estava ali. Imagine, eu, claro que estava ali. Não entendi nada!

— Mas e daí? – fomenta ainda mais Xavier.

— Sem muito entender, me levantei enlouquecido, pulei pela janela só de cueca. Na queda, arrebentei o pequeno muro que separa o jardim da frente, do corredor e bati com a bunda nas pedras. Eu tava num transe, acho, tamanha era a minha ira. Mas, como se me acordasse de repente, pulei a janela de volta, ensandecido. Gritei irritado para Mara: – Sua louca, maluca, sua pirada. Olha como to, todo machucado, porra. Teu marido sou eu!

Fez uma pausa e prosseguiu com suspense: — Sabe o que ela me respondeu? Sabe o que ela teve a cara dura de responder?

Rodrigo, o estagiario concluiu: — Depois de mandar você procurar o marido que era você mesmo, nem sei o que pensar. O que ela respondeu?

— “Ah é pulou a janela porquê? Tá de consciência pesada?” Vê se não é maluca, mesmo?

Todos cairam na risada, uns diziam que era um sonho, ou um pesadelo. Mas ficava a dúvida, em que marido ela estava pensando, ou melhor sonhando? Será que ela achava que estava com o amante e que o marido havia chegado, ou seja, o próprio Fred?

Xavier por fim, vaticinou: — Vai ser duro de eu contar a minha história, porque meu amigo, aqui o pecador não foi você. – e olhando ao redor, perguntou exaltado – quem se habilita?

Ninguém abriu a boca. Olhavam para Fred com a pulga atrás da orelha.

quinta-feira, julho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 14º CAPÍTULO

No capítulo 13, Júlio refletia sobre a personalidade de Rosa, que em poucos dias, conhecera como uma mulher com traços distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento.Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que ingetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. A partir de agora, publicamos o capítulo 14 de nosso folhetim policial.

Capítulo 14

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bar-bebidas-álcool-geladeira-926256/

Ricardo dirigia-se ao estacionamento, quando sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Uma presença muito próxima, quase um bafejo na nuca, como se um espectro se aproximasse para atirá-lo do 3º andar da garagem. Olhou para os lados, mas não viu nada, apenas um barulho metálico, como se alguém deixasse cair uma ferramenta de metal. Respirou fundo e aproximou-se da sacada, tentando ver se alguém descia as escadas ou deixava o estacionamento naquele momento. O lusco-fusco do anoitecer produzia mais dúvidas do que certezas.

Ricardo então voltou para o veículo e ao entrar, um novo barulho, desta vez um estalido de madeira, acompanhada de uma pequena batida no bagageiro do carro. Desceu decidido a descobrir o que o assustava, quando ouviu uma gargalhada irônica que vinha detrás de uma coluna. Indignado, percebeu que Raul o esperava, zombando de seu ar surpreso.

— Puta que pariu, o que você tá fazendo aí?

Raul riu mais uma vez e aproximou-se amistoso, estendendo-lhe a mão. Ricardo afastou-se na direção do carro, ainda mais irritado.

— Desculpa, meu velho, não quis assustar você.

— Ah, não quis? e que significam estes barulhos e você escondido atrás da coluna? Não tem mais o que fazer?

— Mas eu não fiz nada, juro, com excessão da varinha que quebrei ainda há pouco. Vi quando você foi até a sacada, quase me mijei de rir.

— Muito engraçado pra quem não tem o que fazer. Nem vou discutir essa bobagem agora e vou embora, com licença.

Raul corre ao seu encontro, antes que ele ligue o carro e desça a rampa.

— Espere, Ricardo, preciso falar com você.

— Sinto muito, mas tenho compromissos. Vou combinar a vinda de minha namorada no fim de semana.

— Então pode dar-me uma carona?

— Escuta, Raul, por que não volta como veio? Você não mora muito longe daqui.

— Por favor, meu amigo, eu lhe peço. Parece que se afastou de mim para sempre. Não conversa mais, não quer nem saber como estou passando.

— Pelo que sei, Raul, você está muito bem. Mas sabe como ando ocupado. Aconteceu alguma coisa?

— Sempre acontece alguma coisa comigo, você sabe. Depois que fui atacado por aquela gente, nunca mais tive sossego.

— Por que não foi à polícia?

Raul cala-se sem saber o que dizer. Em seguida, corre e senta-se no banco ao seu lado: — Então, vamos?

— Mas você veio até aqui, ao estacionamento do hospital, para pedir-me carona?

— Você pensa muito mal de mim, meu amigo. Vim pegar uma receita, você sabe que to sempre precisando de medicamentos. Quando saía, vi que você estava indo para o estacionamento. É um crime pedir uma carona a um amigo?

Ricardo reflete que não fará diferença se levá-lo até a sua casa, além disso, ele já se instalou ao seu lado e será muito mais difícil convencê-lo a sair.

Raul, entusiasmado o convida para tomarem uma cerveja.

— Você veio buscar remédios e quer tomar cerveja. E a sua diabete?

— A gente não pode se privar de tudo, você não acha?

— Eu não sou um desocupado como você. Não posso ficar bebendo por aí.

— Sabe que você às vezes é um chato?

— Sei, mas não posso fazer nada.

O carro desce a rampa da garagem e em seguida está na rua principal que desemboca na esquina do hotel de Ricardo. Raul prossegue, queixoso: — É que eu queria conversar com você sobre aquele problema.

— Por favor, Raul, não vá começar com esta história de crimes. Como se não bastasse aquele detetive me perguntando mil coisas e o pai de Taís me acusando. Chega!

— O detetive está fazendo perguntas, é? Mas a tal de Taís não passou de uma noite.

— Como você sabe?

— Eu sei o quanto ela se grudou em você. Eu sei que a garota enlouqueceu!
— Me diga uma coisa, Raul, ela costumava fumar maconha com você?

Raul dá uma risada sarcástica: — Isso é coisa que não se pergunta, meu amigo.

Ricardo imagina que seria melhor conversar com calma com Raul, talvez seja a oportunidade de descobrir se havia um envolvimento da jovem assassinada com o pessoal do coral. Precisava saber mais sobre Taís, com quem andava, o que fazia e Raul poderia ajudá-lo, por isso aceita o convite para a cerveja.

Quando chegam no bar, havia poucas mesas vazias, na verdade, talvez duas ou três. Raul escolheu a que ficava próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu atenciosa. Parecia que todos falavam com extrema euforia. Ricardo, de repente, sentiu-se num mundo paralelo, que não era o seu. Desde que viera àquela cidade, convivera com pessoas hostis, que demonstravam confrontá-lo a todo momento, inclusive no próprio local de trabalho, ou então eram inconvenientes, como era o caso de Raul. Ali, no entanto, todos pareciam afáveis e dispostos até a terem uma conversa amistosa com ele. Alguns até o cumprimentavam.

Raul, por seu lado, parecia muito feliz, mas quanto a ele, isso não significava uma grande mudança, pensou Ricardo. Pediu a cerveja, o que foi em seguida, atendido pelo garçom, um velho conhecido do amigo. Conversou algum tempo com ele e enquanto se afastava, Ricardo comentou.

—Parece que você conhece todo mundo aqui.

Raul sorriu, apenas acenou com a cabeça confirmando.

Ricardo tomou a cerveja, sentindo que a garrafa congelava os dedos. Perguntou, indeciso, se Taís participava do coral da igreja.

— Não, aquela lá não tinha estas pretensões. Por que você quer saber isso, Ricardo?

— Veja bem, cara, é muita enrolação. Eu acabei me envolvendo com os problemas da cidade, desde que cheguei aqui. Primeiramente, você quis encontrar-se comigo com aquela história do presumível crime da insulina, que a meu ver, não deu em nada.

— Ainda não sabemos. Essas coisas demoram.

— Depois, a sua mãe quis falar comigo, andava assustada com você.

— Minha mãe? Do que você tá falando, meu irmão?

— Desculpa, Raul, to cometendo uma inconfidência, mas ela me procurou sim, na noite em que você foi hospitalizado. Estava preocupada com você, mas não acreditava nessa história que você andava comentando sobre o ataque no parque, os caras da pet-shop. Enfim, ela acha que você inventou tudo e queria a minha ajuda. É isso.

— Mas que velha sacana! Ela fumou o quê pra lhe falar isso?

— E fiquei sabendo que ela contratou um detetive para ajudá-la. Aliás, o mesmo que o pai da Taís acabou contratando pra descobrir o assassino da filha.

— Puta que pariu, brother, que rolo! Ta todo mundo louco nesta cidade e eu é que fumo baseado!

— Sei lá, cara, às vezes acho que esse pessoal me odeia. Taís, você sabe, ficou no meu pé o tempo todo, a gente transou, não vou negar, só isso. Também não sou de ferro. Mas não havia nada sério entre nós e a menina inventou que eu a seduzi, que coisa ridícula. Como essa gente pode aceitar uma coisa dessas? Agora o pai anda por aí afirmando que a matei, que quer vingança. Ainda bem que o namorado desistiu dela em tempo.

— É, você ta encrencado, meu amigo.

— Eu não fiz nada, cara.

— Bom, então dê tempo ao tempo. Agora, quem sabe esse cara descobre que os donos do pet shop são os responsáveis pelos crimes.

— Mas segundo dizem, Taís foi empurrada da ponte.

— Será que estas histórias tem alguma relação uma com a outra?

— O que você acha, Raul?

— Não sei, meu amigo. Só espero que os crimes não continuem.

— Então me diga, você que conhece todo mundo na cidade. O que o namorado de Taís tem a ver com Rosa?

—Ih, meu velho, essa é uma história dificil de destrinchar.

— Como assim?

— Você fala do mecânico, né? O que eu sei é que eles tem uma ligação muito forte. Rosa é uma pessoa estranha, sabe? Ela se apega às pessoas de uma maneira tal, que se torna possessiva. Acho que é uma carência, sei lá.

— Mas ela é amante dele?

— Amante é uma palavra muito forte. Pode ser que ele tenha dado uns pegas nela.

— Parece que você não respeita ninguém, Raul.

—Eu? Mas é você quem está perguntando se ela é amante do cara.

— É o que ouvi falar, mas Rosa é uma pessoa sensata, uma mulher recatada. Também, que me interessa a vida dos outros, não é mesmo?

— O que dizem é que o cara tava procurando a mãe por aqui, na região, veio de longe o infeliz. Depois, não tinha onde morar, pediu ajuda e a Rosa acabou cedendo um apartamento que ela aluga. Mas o que o povo fala é que a mulher é apaixonada pelo mecânico. Mas o que isto tem a ver com o que a gente tava falando?

— Não sei, é que certa vez Taís comentou isso. Na hora, eu não acreditei. Rosa é uma das poucas pessoas desta cidade que tratou muito bem.

— E o seu amigo aqui, não conta?

—Claro, mas estou falando das pessoas que eu não conhecia. Vamos pedir outra cerveja e esquecer isso.

— Quem sabe a gente rememora as pessoas da cidade e os seus relacionamentos.

— Como assim?

— Como você disse, eu conheço todo mundo. Então, vamos pensar quem poderia ter interesse na morte da moça.

— Parece que quer me ajudar.

— Vou lhe contar uma coisa que você não sabe. Você já ouvir falar em Ana, né, a menina que encontrou o corpo ou que ouviu alguma coisa, sei lá.

— Sim, o detetive me falou alguma coisa sobre isso.

— Pois essa garota faz parte de um grupo com outros adolescentes. São alguns rapazes que usam drogas pesadas, sabe? Eles sempre faziam os luais à beira do rio e o cara que organizava tudo é um tal de Carlos, o filho do prefeito. Nestes luais aconteciam verdadeiras orgias sexuais, até uma garota de programa vinha da capital contratada por eles, para incrementar as festas.

—O que a Taís tem a ver com isso?

— Ela pegava as drogas com eles e participava das festinhas também. Pra você ver, que a moça não era tão santinha assim, pra ser seduzida por você.

— Mas então, todo mundo sabe disso. Por que o silêncio todo, até a polícia finge que não acontece nada!

— Não se esqueça, meu amigo, que o rapaz é o filho do prefeito.

— E você acha que algum deles possa ter matado a moça?

— Tudo é possível, meu amigo. Tudo é possível.

quinta-feira, janeiro 14, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I I

HOJE QUINTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O TERCEIRO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 3

Agora que Dulcina foi embora, sinto-me mais à vontade para viver a minha vida. Ela jamais me entenderá, como você. Tem a cabeça fraca, desorientada. Quase uma boçal.

Agora, posso observar a escuridão das ruas, as luzes ao longe, o vaivém de lâmpadas que se acendem nas escadas dos edifícios, quando alguém acaba de entrar nos prédios. Em alguns, quase participo de suas vidas. Vejo-os entrar, deslocarem-se para seus quartos, seus locais de trabalho ou lazer. Um menino passa metade da noite na frente da tela do computador. A mulher do prédio da esquina se acomoda numa poltrona que quase desaparece, hipnotizada pela tv. Cada um faz uma atividade que lhe faz bem, que lhe proporciona prazer.

Eu cá, fico na minha janela. Daqui vejo o mundo, do qual não posso partilhar. O velho aí da frente, ainda não se deitou. Já devia tê-lo feito, pelo menos, de acordo com a sua rotina diária. Como pode ser tão metódico. Fica perdido lá por dentro do apartamento, talvez na cozinha ou na sala assistindo tv. Isso, não posso descobrir, não tenho olhar de raio-x. Às dez horas, porém, costuma deitar, após o banho. Via de regra, já aparece de pijama. Coloca a calça passada na cadeira, ao pé da cama, o casaco, a camisa e as meias e se deita, esquecido do mundo. Que pensará um homem como aquele? Será que ele tem algum drama na vida? Será que perdeu um filho? E aquele homem, que aparece, além do enfermeiro? O enfermeiro passa algumas horas medicando-o e vai embora. O filho, raramente. Hoje, ele ainda não veio deitar-se. Sempre dá uma olhadinha na janela para baixo, antes de ir para a cama. A lâmpada, só a da cabeceira. Passa a noite na penumbra, deve temer o escuro. Acho que no prédio dele, não tem gente muito decente, não. Aquela prostituta bate o ponto invariavelmente às 6 da manhã. Como é que deixam uma mulher da vida, morar num prédio familiar? Mas quem disse que é familiar? Hoje em dia, elas estão em qualquer lugar, até nas igrejas.

Houve um tempo em que fui religiosa, acho que foi antes do Luisinho morrer. Acabei abandonando os santos ou eles me abandonaram. Meu destino é passar as noites a olhar para fora, a investigar a vida dos outros, a perscrutar seus relacionamentos, suas atividades noturnas. Não são muito criativos. Aos poucos, todos fazem a mesma coisa: vão apagando as luzes dos apartamentos e tudo vai ficando às escuras. Mas daqui, eu vejo as ruas. Estas não dormem jamais.

Meu Deus, quem diria! Lá está ele, como de praxe. Está atrasado, meu amigo. Certamente, vai fazer a revista na tropa. Espia para baixo, examina as esquinas, as pessoas que passam apressadas ou não, os que ficam na calçada, conversando ou os que entram na farmácia. A visão dele é melhor do que a minha, porque fica quase na esquina e do outro lado da rua, é possível observar toda a região de comércio pesado. Os botequins, os bares, as livrarias. Estranho, ele não voltou para dentro. Que está havendo com este velho? E está falando novamente! À noite, ele se abstém destas caduquices. Mas o que pretende?

Quando Gustavo ainda era menino, tínhamos a impressão que ficaríamos eternamente juntos. Sabíamos que preparávamos o seu futuro, mas o seu destino já estava traçado. Nada que fizéssemos mudaria o que estava escrito. Não imaginávamos, porém que a mudança seria tão radical.

A quem ele se refere? Ao filho? Então não sabe que o futuro não pode ser decidido por ninguém, muito menos pelos pais. Provavelmente, fora um homem autoritário, um machista que mandava e desmandava na família, que pretendia escolher até a carreira do filho. Por esta razão, o rapaz desistiu de visitá-lo, de aproximar-se, de compartilhar seus desejos, seus sofrimentos e alegrias. Este velho nunca me pareceu coisa boa.

Se ao menos Sarita estivesse ao meu lado, teríamos uma vida para recordar e quem sabe, reviver o passado. Não fosse o ciúme mortal, a dose de veneno que engoli, dia a dia, e que aos poucos fui expelindo, enchendo o ar, entornando o copo até alcançar o ápice da explosão.Sempre fui um homem exaltado, de orgulho próprio, de forte auto-estima. Jamais admitiria uma transgressão. Por isso, fui aos poucos te enjaulando, emparedando, te prendendo como o joão- de-barro traído. Não devias ter feito isso, não devias ter me transformado no que sou hoje. Oh, Sarita, se pudesse, se Deus me permitisse, eu desfaria tudo, eu retornaria ao passado e jamais cometeria o mesmo ato.

O que ele quer dizer com isso? Será que é o que estou pensando?

Sei que meu filho me abandonou porque acabei com a sua vida. Agora estás lá, emparedada naquele mar de cimento e brita. Morreste em pé e para sempre ficarás, enquanto tuas carnes não desprenderem de teus ossos e desaparecerem como pó.

– Meu Deus! Assassino! Assassino!

Ai, tenho que calar-me, ele pode ouvir-me. Como pude expressar com voz alta. Você ouviu, Rita? Não pude conter a indignação. Eu sabia que o maldito tinha alguma coisa a esconder. Então ele enterrou a mulher na parede, em pé, cheia de cimento e brita. Ele é um monstro e pode querer matar-me também, se souber que sei de tudo.

Quisera poder voltar atrás, sair desta masmorra que se transformou a minha vida ou o que restou dela. Sei que você me perdoou Sarita, mas não tive escolha. O desespero era intenso, a dor que sentia era maior do que tudo.

Velho miserável. Agora chora. Depois de matar a mulher sufocada num saco de cimento! Queria por acaso que o filho concordasse com ato tão covarde? Pois que o deixe sozinho, abandonado e que apodreça naquele apartamento! É por isso que ainda não se deitou, consciência pesada. Por isso, está na janela, como eu. Só que meus motivos não foram produzidos por mim, mas pela vida, que me traiu. Ele, ao contrário, traiu o filho. Este velho deveria estar preso, o que faz neste edifício, ao lado de pessoas de bem?

Olhe, Rita, olhe. Saiu da janela, sem encarar-me. Teme, por certo, meu olhar de censura. Intimamente sabe, que qualquer pessoa pode acusá-lo. Basta olhá-lo, basta ouvir-lhe a voz, os pensamentos.

Eu sabia, Rita, que hoje seria uma noite diferente. O velho escureceu o quarto, completamente. Pela primeira vez, apagou a luz da cabeceira. Certamente, não quer distinguir um só objeto, nem a própria sombra. Ou talvez esteja me espiando, às escuras, analisando a minha sala, tentando descobrir a minha fisionomia para marcá-la e cometer o mesmo homicídio cruel. É um psicopata perigoso, preciso fazer alguma coisa. E se eu ligasse para a polícia? Não, não acreditariam que eu sei de tudo e como vou provar que consigo ler os seus lábios e até pensamentos? Tenho que pensar num plano, um plano que me leve a alguma descoberta. Quem sabe, uma investigação? Sim, se a jornalista me ajudasse. Ela tem a mídia nas mãos, podemos acusar o velho, colocar a foto no jornal e denunciar toda a sua história. Ele não pode ficar impune.

Fonte da ilustração:columbo.jpgBy Prawny

domingo, outubro 11, 2015

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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