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sábado, junho 03, 2017

DIA DE LIMPEZA

Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças.

Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida.

Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno.

A sorte foi a chuva.

A sorte foi estar acordado.

A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma.

Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer.

O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado em cinzas não era a saída?

Mas ficar assim, humilhado, era pior.

Ainda me sentia assim. Ainda tinha brios que desconhecia.

Agora estou aqui, com fome, procurando um café pra aquecer o estômago. Mexo nos bolsos, agitado. Parcas moedas tilintam nas mãos.

Oh, amigo, quer encostar o carro? Puxa pra cá, arreda pra lá. A gente se acerta.

Mas é difícil participar da vida dos outros. Eles não querem intimidade. Têm medo da gente. Medo de bandido, como eu.

Talvez, um dia, procure uma saída.

Talvez saia desta vida, faça a barba, corte o cabelo e procure alguém que ficou pra trás. Lá longe, bem distante, quase no infinito do paraíso.

Uma velha mãe escondida na costura. Uma mulher que mudou de vida, para esquecer o marido bêbado. Levou os filhos, levou os móveis, os poucos agasalhos. Levou a vida.

Mas só o café não basta.

Um trago forte vinha a calhar.

Quem sou eu, me pergunto. Lavo os para-brisas dos carros em busca de alguns trocados. Procuro uma vaga nos estacionamentos. Se não existem, invento.

Tenho raiva de fazer isso. É o que me toca. Não tem jeito. Quem sabe, ainda arranho o carro deste cara, que esqueceu de me dar o que mereço.

Aturar a cara emburrada, enfiar um sorriso, tentando argumentar do meu jeito e depois ser jogado pro lado, como quem empurra um traste qualquer, interrompendo o caminho.

Quando a noite chega, o frio aumenta.

Voltar pro buraco é tentar conhecer o túmulo antes da morte. Empurrar os pés na laje e fingir que se encosta no baú, aos pés da cama.

O frio enrijece os músculos. Os pensamentos ficam mais demorados, mais confusos.

A melancolia avança noite adentro, sem convite.

Tenho tosse, dor de cabeça. Pés gelados.

Ouço barulhos lá fora, risadas, choros, gritos quase uivos ao longe.

Alguém que morre, leva porrada ou vai preso.

Ainda tenho este canto do túnel pra me agasalhar.

Os companheiros não vieram. Certamente estão enfiados nos albergues para passar a noite. Aquecer a garganta com uma sopa quente, submeter-se ao banho.

Sinto que não vou dormir.

Uma luz forte invade meu espaço, sem pedir licença. Vozes de homens, ganidos de cães.

Um grito mais forte nos meus ouvidos, o cano de um fuzil apontado para minha cabeça.

O mundo mergulha em desespero, não por mim, não pela minha pele frágil e suja. Mas pela dor tangente na alma dos homens.

Um dia os sinos tocarão em regozijo e eu serei, quem sabe, amado por alguém.

Aquela velha na costura deve estar lá me esperando, talvez a gente se encontre.

Puxam-me os pés, empurram-me o corpo, usam expressões rasteiras.

Olhos brilham na noite, como corujas alertas. Me encaram de perto. Cães farejam. Sentem meus humores. Procuram meus pertences. Examinam meus bolsos. Nada que procuram encontram, mas o que acham lhes basta para completarem o gozo: meu corpo frágil e oprimido.

Pelo menos, aqui, têm uma resposta a suas indagações.

Um isqueiro brilhou próximo aos olhos de um deles.

Estremeci, não pelo fulgor dos olhos, mas pelo clamor da chama.

Baixei a cabeça e vi cair perto dos coturnos o palito quase cinza.

Mas a visão daquela chama ainda abala meu ser, como se os alicerces enferrujados afrouxassem pela força do vento. Vento que agora zune forte, esfriando ainda mais o ambiente.

Levaram-me com eles, sem dizer o destino.

Tinha de concordar, quieto, calado. Era dia de limpeza.

A cidade aguardava um influente evento internacional.

Tinha de tomar o meu rumo.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Resenha sobre o meu romance “O eclipse de Serguei"

O romance “O eclipse de Serguei” produz a sensação ao leitor de estar incluído num mundo complexo e cheio de veleidades do qual não faz parte. Um mundo da ficção.

Entretanto, com o desenrolar da trama, é possível perceber que o mundo que se apresenta está bem ali, ao alcance da mão, ao folhear das páginas, é o nosso mundo real, onde transitam diversos personagens que podem ser as pessoas com as quais convivemos: o porteiro de nosso prédio, o professor da escola de nossos filhos, a vizinha ao lado.

O eclipse de Serguei é assim ousado, revelando a realidade crua de nossas vidas, nas quais a violência latente campeia devagar, insinuando-se em nossas relações, condutas e preconceitos.

No entanto, esta realidade acontece de uma maneira suave, sem pressa, de tal forma, que nos cativa e remete a um cenário muito peculiar e ao mesmo tempo familiar, inferindo em cada página, o desejo de nos inteirarmos das tramas desenvolvidas.

Há, sem dúvida, a emoção desenhada na cada fala dos personagens, nas descrições mais apuradas das situações apresentadas por personagens complexos e simples, como nós.

Uns, cheios de vida, idealismo e esperança, outros destituídos do senso de humanidade, centrados em seus sentimentos de posse ou convicções retrógradas.

Todos fazem parte da cultura embasada no fundamento falso de vida moderna, da aparência e da vantagem imediata, na qual o homem tem involuído ao invés de crescer.

Assim é Serguei, um homem que acredita fielmente em seu lugar na sociedade, como homem branco, de classe média, acostumado a seguir um código padronizado, há muito registrado em sua mente.

Possui uma vida medíocre, calcada nos conceitos mais primários, alicerçada na vontade imperiosa da mãe e do sentimento de solidão advindo de sua infância perdida.

Dois acontecimentos parecem ter embotado a sua criatividade e a vontade de lutar por si próprio: a perda do esperado fenômeno do eclipse solar e o desaparecimento estranho do pai, um militante de esquerda.

Serguei desempenha atividades monótonas num cartório e através de uma brecha de criatividade, exerce as funções de atendente num turno da biblioteca de um museu, pois considera que aqueles documentos tem uma história para contar.

Fica dividido, quando através da genealogia da noiva, Beatriz, descobre que a mesma é judia.

Influenciado pelas ideias conservadoras da mãe, sempre se dedicara a pensar que sua origem fosse mais nobre do que a da maioria dos mortais.

Para completar, em meio há tanta mediocridade do cartório, desfilam personagens como o funcionário puxa-saco, Anselmo, o próprio chefe, o Sr. Oliveira, do qual Serguei nutre uma admiração pelo poder que exerce e ao mesmo tempo uma certa desconfiança, o misterioso homem do café, que tem o sugestivo nome de Adolf, Dóris, a secretária que desempenha estranhas atividades e que vem a ser sua aliada, chegando a morar em sua casa, detentora de um plano fantástico para a sua liberdade e finalmente, talvez o único personagem íntegro e que possui dotes de inteligência,um negro, fato que deixa Serguei cada vez mais intrigado.

O clima de insatisfação vai crescendo até que ele descobre que Gomes, o funcionário do cartório que se suicidou, era muito parecido com ele.

Finalmente, se depara com a comunidade do cartório, e percebe que atrás daquele grupo bem costurado, há um líder, que pensa como ele, e por isso, considerado o “escolhido”.

Para tanto, chega um momento, em que ele não vê saída, a não ser assumir o seu lado neonazista e por ironia do destino, acaba encontrando no seu caminho perturbado, um homossexual.

Chegou a hora de se tornar um verdadeiro baluarte de sua verdade tantas vezes oprimida.

Torna-se um skinhead, seguindo os preceitos da mãe.

Finalmente, descobre que tal como o eclipse, que se dissipara, o seu passado não passava de uma nuvem de poeira forjada, insossa, padronizada, culminando com a descoberta do verdadeiro delator das atividades clandestinas de seu pai.

A quem seguiria Serguei?

Quem era ele afinal?

e-mail do autor: gcgilson4@gmail.com

domingo, maio 29, 2016

O OUTRO

Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido.

Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida.

Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava.

Por um momento, senti certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação.

Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos.

Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço.

Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação.

Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem.

Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça.

Em volta, pessoas caminhavam rápidas, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano.

Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual.

Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre.

Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro.

Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam.

Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade.

Mas ainda o vejo ali, deitado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo e fedorento.

As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos.

A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro.

Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira.

Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer.

Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla.

Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo.

Afasto-me e temo encontrá-lo novamente.

Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti.

Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

Fonte da ilustração: http://moradorderua.zip.net

quinta-feira, janeiro 14, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I I

HOJE QUINTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O TERCEIRO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 3

Agora que Dulcina foi embora, sinto-me mais à vontade para viver a minha vida. Ela jamais me entenderá, como você. Tem a cabeça fraca, desorientada. Quase uma boçal.

Agora, posso observar a escuridão das ruas, as luzes ao longe, o vaivém de lâmpadas que se acendem nas escadas dos edifícios, quando alguém acaba de entrar nos prédios. Em alguns, quase participo de suas vidas. Vejo-os entrar, deslocarem-se para seus quartos, seus locais de trabalho ou lazer. Um menino passa metade da noite na frente da tela do computador. A mulher do prédio da esquina se acomoda numa poltrona que quase desaparece, hipnotizada pela tv. Cada um faz uma atividade que lhe faz bem, que lhe proporciona prazer.

Eu cá, fico na minha janela. Daqui vejo o mundo, do qual não posso partilhar. O velho aí da frente, ainda não se deitou. Já devia tê-lo feito, pelo menos, de acordo com a sua rotina diária. Como pode ser tão metódico. Fica perdido lá por dentro do apartamento, talvez na cozinha ou na sala assistindo tv. Isso, não posso descobrir, não tenho olhar de raio-x. Às dez horas, porém, costuma deitar, após o banho. Via de regra, já aparece de pijama. Coloca a calça passada na cadeira, ao pé da cama, o casaco, a camisa e as meias e se deita, esquecido do mundo. Que pensará um homem como aquele? Será que ele tem algum drama na vida? Será que perdeu um filho? E aquele homem, que aparece, além do enfermeiro? O enfermeiro passa algumas horas medicando-o e vai embora. O filho, raramente. Hoje, ele ainda não veio deitar-se. Sempre dá uma olhadinha na janela para baixo, antes de ir para a cama. A lâmpada, só a da cabeceira. Passa a noite na penumbra, deve temer o escuro. Acho que no prédio dele, não tem gente muito decente, não. Aquela prostituta bate o ponto invariavelmente às 6 da manhã. Como é que deixam uma mulher da vida, morar num prédio familiar? Mas quem disse que é familiar? Hoje em dia, elas estão em qualquer lugar, até nas igrejas.

Houve um tempo em que fui religiosa, acho que foi antes do Luisinho morrer. Acabei abandonando os santos ou eles me abandonaram. Meu destino é passar as noites a olhar para fora, a investigar a vida dos outros, a perscrutar seus relacionamentos, suas atividades noturnas. Não são muito criativos. Aos poucos, todos fazem a mesma coisa: vão apagando as luzes dos apartamentos e tudo vai ficando às escuras. Mas daqui, eu vejo as ruas. Estas não dormem jamais.

Meu Deus, quem diria! Lá está ele, como de praxe. Está atrasado, meu amigo. Certamente, vai fazer a revista na tropa. Espia para baixo, examina as esquinas, as pessoas que passam apressadas ou não, os que ficam na calçada, conversando ou os que entram na farmácia. A visão dele é melhor do que a minha, porque fica quase na esquina e do outro lado da rua, é possível observar toda a região de comércio pesado. Os botequins, os bares, as livrarias. Estranho, ele não voltou para dentro. Que está havendo com este velho? E está falando novamente! À noite, ele se abstém destas caduquices. Mas o que pretende?

Quando Gustavo ainda era menino, tínhamos a impressão que ficaríamos eternamente juntos. Sabíamos que preparávamos o seu futuro, mas o seu destino já estava traçado. Nada que fizéssemos mudaria o que estava escrito. Não imaginávamos, porém que a mudança seria tão radical.

A quem ele se refere? Ao filho? Então não sabe que o futuro não pode ser decidido por ninguém, muito menos pelos pais. Provavelmente, fora um homem autoritário, um machista que mandava e desmandava na família, que pretendia escolher até a carreira do filho. Por esta razão, o rapaz desistiu de visitá-lo, de aproximar-se, de compartilhar seus desejos, seus sofrimentos e alegrias. Este velho nunca me pareceu coisa boa.

Se ao menos Sarita estivesse ao meu lado, teríamos uma vida para recordar e quem sabe, reviver o passado. Não fosse o ciúme mortal, a dose de veneno que engoli, dia a dia, e que aos poucos fui expelindo, enchendo o ar, entornando o copo até alcançar o ápice da explosão.Sempre fui um homem exaltado, de orgulho próprio, de forte auto-estima. Jamais admitiria uma transgressão. Por isso, fui aos poucos te enjaulando, emparedando, te prendendo como o joão- de-barro traído. Não devias ter feito isso, não devias ter me transformado no que sou hoje. Oh, Sarita, se pudesse, se Deus me permitisse, eu desfaria tudo, eu retornaria ao passado e jamais cometeria o mesmo ato.

O que ele quer dizer com isso? Será que é o que estou pensando?

Sei que meu filho me abandonou porque acabei com a sua vida. Agora estás lá, emparedada naquele mar de cimento e brita. Morreste em pé e para sempre ficarás, enquanto tuas carnes não desprenderem de teus ossos e desaparecerem como pó.

– Meu Deus! Assassino! Assassino!

Ai, tenho que calar-me, ele pode ouvir-me. Como pude expressar com voz alta. Você ouviu, Rita? Não pude conter a indignação. Eu sabia que o maldito tinha alguma coisa a esconder. Então ele enterrou a mulher na parede, em pé, cheia de cimento e brita. Ele é um monstro e pode querer matar-me também, se souber que sei de tudo.

Quisera poder voltar atrás, sair desta masmorra que se transformou a minha vida ou o que restou dela. Sei que você me perdoou Sarita, mas não tive escolha. O desespero era intenso, a dor que sentia era maior do que tudo.

Velho miserável. Agora chora. Depois de matar a mulher sufocada num saco de cimento! Queria por acaso que o filho concordasse com ato tão covarde? Pois que o deixe sozinho, abandonado e que apodreça naquele apartamento! É por isso que ainda não se deitou, consciência pesada. Por isso, está na janela, como eu. Só que meus motivos não foram produzidos por mim, mas pela vida, que me traiu. Ele, ao contrário, traiu o filho. Este velho deveria estar preso, o que faz neste edifício, ao lado de pessoas de bem?

Olhe, Rita, olhe. Saiu da janela, sem encarar-me. Teme, por certo, meu olhar de censura. Intimamente sabe, que qualquer pessoa pode acusá-lo. Basta olhá-lo, basta ouvir-lhe a voz, os pensamentos.

Eu sabia, Rita, que hoje seria uma noite diferente. O velho escureceu o quarto, completamente. Pela primeira vez, apagou a luz da cabeceira. Certamente, não quer distinguir um só objeto, nem a própria sombra. Ou talvez esteja me espiando, às escuras, analisando a minha sala, tentando descobrir a minha fisionomia para marcá-la e cometer o mesmo homicídio cruel. É um psicopata perigoso, preciso fazer alguma coisa. E se eu ligasse para a polícia? Não, não acreditariam que eu sei de tudo e como vou provar que consigo ler os seus lábios e até pensamentos? Tenho que pensar num plano, um plano que me leve a alguma descoberta. Quem sabe, uma investigação? Sim, se a jornalista me ajudasse. Ela tem a mídia nas mãos, podemos acusar o velho, colocar a foto no jornal e denunciar toda a sua história. Ele não pode ficar impune.

Fonte da ilustração:columbo.jpgBy Prawny

sábado, novembro 28, 2015

O destino do homem?

Na fábula, o sapo foi terrivelmente traído pelo nefasto escorpião, ao ser transportado pelo rio.

Ao ser ferroado, o sapo pergunta, na agonia da morte, por que o escorpião fez aquilo, se assim os dois morreriam afogados, visto que somente ele sabia nadar.

O escorpião, então responde que é esta é sua natureza.

Observando as pessoas e fatos, fico me perguntando, o que leva certas pessoas a trair, a enganar, mesmo quando são acarinhadas em suas relações.

E logo, me vem a resposta do escorpião da fábula: é de sua natureza.

Seria este o destino do homem, seria esta a sua natureza, a de trair, de mentir, de enganar despudoradamente, mesmo que não haja qualquer ganho?

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

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