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O OUTRO

Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido.

Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida.

Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava.

Por um momento, senti certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação.

Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos.

Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço.

Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação.

Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem.

Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça.

Em volta, pessoas caminhavam rápidas, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano.

Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual.

Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre.

Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro.

Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam.

Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade.

Mas ainda o vejo ali, deitado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo e fedorento.

As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos.

A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro.

Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira.

Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer.

Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla.

Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo.

Afasto-me e temo encontrá-lo novamente.

Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti.

Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

Fonte da ilustração: http://moradorderua.zip.net

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