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segunda-feira, dezembro 04, 2017

O gato cinza

Quando o gato cinza pulou no colo de Sandra Mara, ela alisou o seu dorso delicamente. Em seguida, porém, empurrou-o para o chão e puxou a bacia para o centro da sala. Espiou se a chaleira estava fervendo e começou a encher a bacia, uma bacia grande, quase uma banheira, pensou.

O gato ronronava em sua volta, lambia-lhe os pés, encostava o rabo em suas pernas. Sandra Mara não se incomodava com aqueles afagos inoportunos, mas naquele momento, não eram bem-vindos, por isso o empurrou novamente com o pé. Ele deu um gemido e pulou para uma prateleira na parede oposta à do fogão.

Ela retirou a chaleira do fogo e começou a encher a bacia. Abriu novamente a torneira, desta vez para encher uma jarra e não a chaleira. Depois esfriou um pouco a água da bacia com a da jarra. Colocou delicadamente os dedos provando a quentura e tirou-os de imediato. Ainda estava muito quente. Retomou a tarefa de esfriar a água, observada pelo gato sobre a prateleira. Experimentou mais uma vez, agora enfiando toda a mão. Estava ótima. Desfez-se das roupas completamente e nua entrou na bacia, sentando-se pouco à vontade, pelo tamanho da mesma.

Um dos filhos entrou na cozinha perguntando-lhe alguma coisa. Ela respondeu tranquilamente no processo de ensaboar-se sem se preocupar com quem entrava.

Novamente a porta se abria e surgia uma criança, e mais uma, daqui a pouco a cozinha estava cheia. Sandra Mara respondeu a todos o que pediam, e desta vez, achou que já estava demais aquele público. Mandou-os embora.

O gato espiava a cena, desta vez, pendurado no bandô engordurado da cortina.

Sandra Mara voltou a ensaboar-se com cuidado, jogava água nos seios, na barriga e enfiava a mão no fundo da bacia, higienizando as partes íntimas. A água respingava no piso de ladrilhos gastos, quase inexistentes. Ficou naquele ritual por tanto tempo, que quase pegou no sono. Quando se deu conta, já escurecia e a cozinha estava na penumbra. Levantou-se, ligou o interruptor e passou a enxugar-se calmamente, caminhando pela cozinha, de um lado para o outro. Estava quase pronta para vestir a roupa doada pela campanha.

As crianças entraram outras vezes, dois meninos e uma menina, mas ela não se preocupou com isso. Podia chegar até um adulto, uma vizinha próxima que não a importunaria. Estava acostumada em tomar banho na cozinha, naquela bacia que mais parecia uma banheira, afinal, não tinha chuveiro e não podia se acostumar com estes luxos.

O gato cinza desta vez pulou para o chão e passou a rondar-lhe os pés e quando ela sentou numa cadeira, ainda nua, ele tentou pular em seu colo. Correu-o irritada. Tudo estaria bem, se não fosse aquele gato enxerido.

sexta-feira, maio 26, 2017

A ARMADILHA

Era magro, alto, estapafúrdio. Cabelos loiros, nariz adunco, olhar disperso. Vestia-se com primor. De nome Eugênio, julgava-se o espírito inspirador. Mais velho do que nós, esnobava qualquer gesto que imitasse seus artifícios. Esperto, namorador, conquistador das meninas do bairro.

Nós, os da turma de baixo, não passávamos de crianças e devíamos como tal sermos tratados. Às vezes, aos sábados, em pé de conquista, passava como quem flutua, olhando ao longe, pesquisando os desafios e a melhor maneira de vencê-los. Era meu vizinho, mas somente se relacionava com os de sua idade. Nós, entre os 10 e 12 anos nos preocupávamos com o destino do Agente 86, das peripécias do Major Nelson da Jeannie, dos pequeninos de Terra dos Gigantes, das vilanias do Dr. Smith dos Perdidos no Espaço ou das brincadeiras de luta livre que faziam parte de nosso cotidiano.

Eu sempre fui observador e no meio de toda a barafunda de aventuras, arriscava-me em analisar as atitudes dos que me cercavam: Seu Alencar da fruteira, Dona Judite da mercearia, Seu Joaquim da padaria, as vizinhas solteironas que rebuscavam-se em salamaleques na cata de fofocas, nas atitudes arrogantes de Eugênio.

Talvez porque gostasse de escrever, inventar histórias onde este universo do cotidiano povoasse a minha mente imaginosa.

Vez que outra, Eugênio se lançava em descobertas mirabolantes: de uma feita, inventou que a lua sumiria brevemente do firmamento, em função de um transtorno espacial, providenciado pelas irradiações das usinas elétricas.

E olhe, que naquela época nem se falava em ecologia ou preservação do meio ambiente. Inventava absurdos como ninguém para deixar-nos maravilhados pelas descobertas incríveis que fazia. Baseava as suas descobertas nas informações de radio-amador do pai, noticias que jamais acompanharíamos pelo radio ou pela tevê.

Noutra oportunidade, informou-nos que havia captado uma descoberta assombrosa, mas que não tínhamos idade para a revelação: éramos pequenos, bobos e imaturos. Deixou-nos dias na expectativa.

Falava de sombras que se agigantavam à noite, tudo muito vago, e que tomariam conta do espaço, escurecendo posteriormente o dia. Havia, segundo ele, um motivo extra

terreno, além de um procedimento que impediria tal ocorrência, mas que somente ele tinha acesso e que jamais nos contaria. Eu tinha muitas dúvidas, afinal, era muito saber, muita pesquisa, para quem havia repetido várias vezes de ano, que só pensava em namorar e tirar vantagens.

Um dia, disse-lhe que eu também tinha uma descoberta fenomenal, de acordo com os meus parcos conhecimentos e que para expô-la completamente, deveria exercer na prática os seus efeitos. Ele riu na minha cara, desautorizou qualquer conhecimento na frente de meus amigos e afastou qualquer hipótese de praticar uma experiência. Então, disse-lhe que mais dia, menos dia, ele seria o protagonista da experiência. Não desconfiaria como, nem quando, mas a solução do problema viria através de suas mãos, ou pés, quem sabe. Deixei no ar a questão: qual a força que faz com que um homem de 70 kg despenque no chão, sem que para isso, exerça qualquer esforço. Naturalmente que ele respondeu que era a força da gravidade, ao que os colegas juntamente concordaram. Eu disse que ele poderia estar certo, mas a segunda parte da experiência, seria feita por ele, num momento em que ele jamais esperasse.

Então planejei tudo silenciosamente. Atravessei a calçada no entardecer de um sábado, um daqueles dias em que Eugênio passava em frente da casa todo engomadinho, visando a caça do fim de semana. Como era região de praia, a areia era solta, não havia pavimento, ideal para executar a minha tarefa.

Sentei-me o chão, já preparado com uma pequena enxada, que tirara das ferramentas de meu pai e um balde de água. Cavei um buraco bem fundo, com uma circunferência pequena, constituindo uns 50cm, no formato redondo. Acomodei as paredes, fazendo uma perfeita cratera, bem alinhada. Derramei generosamente a água. Fabriquei uma tampa com hastes de taquara, previamente cortados. Depois, estiquei o papel de embrulho, perfazendo toda a extensão da circunferência, espalhando a terra por cima, de maneira uniforme, até encobrir totalmente o papel. Assobiei para os amigos que jogavam pelada do outro lado da rua e sentei-me encostado no muro de casa, à espera do acontecimento.

Os guris correram, ouviram o meu relato breve, cheio de suspense. Teríamos em seguida, a solução da experiência: a força que atrai o homem para o solo, tendo ainda com uma questão reserva: poderia haver um dispositivo que precipitasse tal acontecimento?

Os meninos estimulados queriam saber o que eu havia feito, que tipo de coisa estava planejando? Queriam respostas, interessados em que estavam no desfecho.

Alguns, contrariados, queriam voltar ao jogo, embora quisessem saber o resultado.

Eu pedia que esperassem, que tivessem calma, o momento chegaria e não tardaria muito.

Estava certo.

Em seguida, surgiu no alto de seu eterno esnobismo, Eugênio, desta vez de calça branca, camisa de seda vermelha, envolto numa atmosfera de satisfação própria e orgulho.

Caminhava austero, cabeça pro alto, nariz adunco, levantado, meio sorriso de sabedoria e esperteza. Passos certos, seguros, precisos. Nem nos olhou, preocupado em que estava em sua própria figura. Nós estávamos de olhos, bocas e ouvidos grudados em sua silhueta. Meu coração disparava desenfreado. Minha boca estremecia, meus olhos se agigantavam na pupila.

De repente, o extraordinário, o impossível aconteceu.

Eugênio enfiou vigorosamente o pé no buraco, falseando o corpo, desequilibrando e caindo ao chão, sujando de lama as calças, enfiando a cara na areia.

Caímos na gargalhada em uníssono, rindo sem parar, enquanto ele esbravejava, acusando-nos de ter feito a armadilha.

Entre risos, eu o desafiava, argumentando que ele protagonizara a solução do problema. Um homem despenca no chão, quando a força da gravidade o impele, principalmente se existe um dispositivo técnico para isso. Ou apenas, a incerteza do destino, completei.

Ele nos olhou amuado, afastou-se jurando vingança, gritando impropérios, ameaçando queixar-se aos nosso pais.

Nunca mais ouvimos as suas descobertas fantásticas, ou nos deparamos com o seu jeito soberbo de nos tratar.

Dali para frente, deixamos de lado a figura de Eugênio, embora eu ainda o cultivasse em meus escritos, cada vez com nuances mais exacerbadas.

sábado, setembro 17, 2016

CANDIDATO INFLAMADO

Bateram à porta com insistência. Instintivamente, me afastei, sondando outras possibilidades, que não fosse àquela, aterradora, de me deparar com o desconhecido, de me defrontar com a expectativa do outro, que via de regra não é a minha.

Uma visita inesperada, fora de hora, sem qualquer aviso; o pedido de dinheiro por um ser humano alterado na própria concepção de humanidade, onde olhos vermelhos se fundem em olheiras doídas, demonstrando mais humildade do que possui, obedecendo ao ritual produzido pelos desejos involuntários do vício, via de regra, aliado ao ato de roubar.

Talvez um pedido de comida, este sempre melhor aceito, embora menos frequente, quase sempre acompanhado da possibilidade de arrecadação extra, financeira. Ou a venda indecente de revistas religiosas e todo o vocabulário próprio, cujas expressões gastas e repletas de castigos já não atingem a alma de quem apenas aspira seguir a própria fé, ou não. Quando muito, atingem a consideração ao zelo dos vendedores, quando não extrapolam o bom senso e a paciência do comprador.

Uma outra investida em nossa porta, pode ser a entrega da revista ou do jornal, estes com auspiciosos desejos de desvendar o mundo, ou o que dizem dele, desde que não se aceite na sua integridade os conceitos e mensagens subliminares ou pelo menos, se escolha o veículo menos parcial da mídia.

Hoje em dia, a mídia tradicional já nem tem mensagens subliminares, ela entrega de vez a informação manipuladora da ideologia elitista.

Também ocorre a entrega de encartes, publicidade de lojas, de supermercados, de revendedoras de gás e água ou mesmo a visita do carteiro, com a mercadoria esperada e as contas inevitáveis de todo o mês ou avisos de débitos.

Além de todas estas injunções cruéis em nossa vida cotidiana, atualmente há a distribuição sistemática de panfletos.

Panfletos? Sim, panfletos políticos, santinhos, com a figura impudente e maquiada do candidato, via de regra, aquele cujas promessas nunca são avaliadas, quanto mais comprovada a sua eficiência.

São eles que nos chegam a todo o momento, abarrotando a nossa caixa de correspondência, quando não a virtual. Esta, elimina-se rapidamente, mas aquela, material, física e acompanhada da presença humana, é bem mais complicada de eliminar.

Não basta rasgar o papel, consumi-lo no fogo ou arremessá-lo na lata de lixo. É preciso desvendar a porta, abrir a caixa do correio e averiguar entre centenas de papéis inúteis, a maior das inutilidades que é o tal de santinho.

Estão sujando as ruas, conspurcando as calçadas, distribuindo papeis que logo serão atirados em qualquer canto por transeuntes enfarados, entediados e descuidados dos anseios políticos dos futuros candidatos.

Isso, que nem falei nos carros de som e as músicas infames que misturam o nome do candidato a ritimos populares.

Naturalmente, temos os nossos preferidos e é salutar que isto ocorra. Comungam com nossas ideias, ideologias ou conhecimentos da situação política da cidade, do estado e do país. E se não temos, merecemos por certo esta enxurrada de papéis disformes, com caras engessadas em sorrisos falsos e expectativas forçadas.

Mas, tudo o que foi relatado não configura o pior que pode acontecer à tranquilidade de um vivente.

O extremo da crueldade e falta de sorte, acontece quando o candidato se apresenta em nossa porta, via de regra acompanhado de um partidário servil, que acena a cabeça mil vezes concordando com o amigo.

Nestas alturas, o candidato apresenta a pretensa finalidade de resgatar um conhecimento efêmero, (quem sabe um colega do ginásio ou um amigo do irmão do mecânico que certa vez consertou o carro de nossa tia já falecida...), mas que para ele possui a eternidade do universo (pelo menos, agora).

Como refutar suas convicções, ouvir suas promessas, sem transparecer a cara de paisagem.

Afinal, para ele, não interessa a minha opinião contrária ao seu partido que apóia a política entreguista e traiçoeira. Para estes, não há saída melhor.

Não convém argumentar, nem demonstrar qualquer tendência à esquerda. Misturam tudo, como se churrasco levasse pimenta e molho inglês. Fazemos cara de paisagem agora e não votamos ou eles serão a própria paisagem sem vida, mural ruço e mofado, numa câmara cheia de traças e teias de aranha, nos próximos quatro anos.

Que abramos as portas para novos ares, mais adequados a nossas esperanças.

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