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domingo, maio 07, 2017

Um pouco sobre A BARCA E A BIBLIOTECA: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão

A história trata dos vários olhares do homem em consonância com o seu cotidiano, alicerçado nos valores que concebe para a sua vida.

É a trajetória de um homem (César), que aos poucos vai conhecendo a verdadeira história de seu pai e o quanto ela ainda o influencia nos dias atuais, forçado de certa forma, a recorrer ao passado e reconhecer nele um caminho novo, de liberdade e orgulho, que não identificava antes. Uma história que vai modificar e completar a sua. Com o conhecimento destas vivências, cresce como ser humano.

Tudo começa nos anos sessenta, cuja curiosidade infantil o impulsiona a conhecer determinados documentos estranhos que parecem comprometer o seu pai, e que tanto o angustiavam pelo forte conteúdo político que continham.

Ao mesmo tempo vivia a sua vida de menino, confrontando a fantasia de aventurar-se na barca á beira do cais, sempre impedido pela mão forte do pai, ao mesmo tempo, que por outros caminhos, imergia no mundo sagrado da biblioteca, batizado que fora nas letras, podendo singrar os mares tal como os navegadores antigos, sem que houvesse qualquer intervenção.

Aqui ocorre a metáfora da barca que não ousara entrar, mas que se materializava no ambiente dos livros.

Em meio a tudo isso, há a luta política do pai, como voluntário no Movimento da Legalidade, quando Brizola instalava a rádio nos porões do Palácio.

Em decorrência destas atitudes, fora perseguido, taxado de comunista e torturado, a partir da derrocada da liberdade pelo advento da ditadura.

Na fase adulta, César é envolvido no mistério dos documentos secretos do pai, onde se misturam personagens que gravitam em torno deste mesmo mistério.

Esta trama ocorre no cenário de uma biblioteca, chegando ao ápice, a partir de um crime. Ele descobre finalmente o grande legado que o pai lhe deixara: a liberdade de escolha calcada na sabedoria da tolerância.

Nesta atmosfera misturam-se sentimentos muito fortes, mas bem distantes dos relacionamentos idealizados de sua infância.

Este livro está à venda no site da Editora Metamorfose http://www.editorametamorfose.com.br/livro.php?pid=960 , na Livraria Vanguarda (Rio Grande e Pelotas) e pelo telefone: (53)999013508 e pelo site da Amazon.com.br

sábado, novembro 12, 2016

O IDIOTA DE DOSTOIÉVSKI

Em 11 de novembro de 1821 nasceu o escritor russo Fyodor Dostoievsky, uma das mais importantes referências literárias na história.
Um dos seus mais relevantes romances, que revelam muito de sua visão da sociedade da época e de sua incapacidade de compreensão do individualismo que chegava com a modernidade, é o Idiota, um romance que traduz a realidade do escritor.

O protagonista, um príncipe chamado Liév Nickoláeivitch Míchkin sofria de epilepsia, uma doença considerada na época em que o livro foi publicado, 1869, como uma desordem psiquiátrica.

Ele foi internado num sanatório na Suiça por vários anos para tratar da doença e retornaria a Petersburgo, para receber uma herança deixada por um parente de seu seu pai. Ali ele pretendia retomar a sua vida.

A trama se desenvolve a partir da sua inadaptação à sociedade corrupta, incompatível com a sua integridade, lealdade  e senso de justiça.
 

Trata-se de uma narrativa densa, que envolve uma gama de personagens e situações que se desencadeiam nos vários entrechos que se cruzam, enfocando a personalidade austera, virtuosa e íntegra de Míchkin, que se opunha às demandas sociais manifestadas na esperteza, individualidade e injustiça.
 

Por outro lado, a obra apresenta uma narrativa tensa, por tratar-se de um romance de cunho psicológico, cujo pano de fundo é a doença e tudo que a cerca, transmitindo uma dramaticidade que influi nos personagens, tanto no protagonista, considerado um idiota, em virtude de suas convulsões e transitórios “apagamentos”, bem como em relação aos demais que demonstram o preconceito relacionado à enfermidade.

Este preconceito se dá através de atitudes grosseiras, levando Michkin ao isolamento.

Dentro deste universo, onde as atitudes ficam reféns dos preconceitos e descaminhos próprios de personalidades deformadas, a construção do ritmo da trama acontece sob permanente tensão.

Neste cenário, o autor delineia a perspectiva social, que segundo sua ótica literária e sua ideologia, a questão básica é a construção de um personagem perfeito.

Na construção do protagonista, observa-se características fundamentais de Jesus Cristo e atitudes e sentimentos muito próximos a Dom Quixote.

Na verdade, há elementos quixotescos, embora não propriamente cômicos, mas certamente o aspecto utópico, muito explorado no romance de Cervantes.

Pode-se afirmar que idiotice, neste caso refere-se à utopia, que é a ausência de lugar, ou seja, um lugar que não existe, que é apenas um sonho, uma fantasia. O ideal. O protagonista não é de lugar nenhum e a sociedade não consegue compreendê-lo.
   

Já a referência a Jesus Cristo revela-se no seu caráter social, onde o outro tem um peso igual ao seu na medida da justiça, do amor, da verdade e da honestidade. Ele ama o seu semelhante, tal como Cristo, e pretende distribuir o seu modo de sentir e ver a vida, na sociedade em que vive.

Entretanto, este despreendimento causa um estranhamento, um desconforto para a comunidade que não absorveu os seus conceitos, ao contrário, manifesta-se de forma oposta à que ele pensa.

É criteriosa no seu convívio, porque não lhe interessa a coletividade, nem o bem comum, mas sim a individualidade, o direito de cada um, não os seus deveres. Muito menos, os conceitos éticos, virtuosos ou morais.
 

A única condição de sobrevivência era o bom senso de preservar a sua vida e de se reunir em sociedade.

Míschkin é um homem sensato, além de seu caráter virtuoso.

Ele representa não somente um ideal humano, mas um ideal russo, que se contrapõe à cultura europeia. Para ele, a Europa estava se afundando num materialismo enquanto que a Rússia ainda propagava o espírito como fonte para uma vida melhor.

É um problema importante, inclusive sob o ponto de vista da efetividade do direito.

Quanto mais bom senso, as pessoas tiverem, menos lei. Não são necessárias leis para estruturarem regras para a sociedade, quando esta caminha no rumo certo, quando esta obedece a regras definidas e solidárias, cujo bom senso é utilizado.

Dostoévisk propôs, no fundo, esta questao da Rússia tradicional. Educar para deveres e não apenas exigir os direitos, como o grupo de Petersburgo agia. 

Neste enfoque, há uma noção clara de coletividade, tal como Míchkin se expressava. 

Nesta questão de direito, percebe-se que pelo fato de Míschkin ser um príncipe, o cruzamento das relações ligadas ao poder se estabelecem.

Durante toda a trama há questões juridicas, como a reivindicação de sua fortuna. Isso é relevante, porque ele nao enfrenta a questão simplesmente do ponto de vista matemático, ele se pergunta sobre a responsabilidade que tem sobre o outro, ou seja, uma questão paradigmática.

Trata-se de uma atitude surpreendente até para os dias atuais, porque o indivíduo que se envolve em pendengas jurídicas, preocupa-se com o seu direito, não com o seu dever, ou o direito do outro.

Ele, ao contrário, é alguém que se ocupa das outras pessoas, que se envolve emotivamente e possui uma postura ética que a modernidade nao entende.

No final do livro, retorna para a Suíça, o isolamento originário. Entretanto, o personagem em confronto com a sociedade corrompida pelos valores, não encontra um lugar neste meio.
 

Por fim, através dos confrontos de Míchkin e seus relacionamentos, percebe-se que o individualismo perpassa o texto. Apesar da construção excessivamente idealista do personagem, não ocorre uma interatividade que confirme o caráter bondoso do personagem através de mudanças nos demais.

Ele não toma atitudes que os ajude a serem pessoas melhores e que os qualifique a vivenciar uma mudança de paradigma naquela sociedade obtusa e obsoleta com a qual não se identificava. Ao contrário, ele tem uma impossibilidade prática para agir, pois não angaria apoio no grupo e embora, propondo soluções, ainda teme ser mal compreendido em seus ideiais e acaba não realizando nada.

Para comprovar a regra, ele tem uma ação efetiva com uma personagem, a qual a ajuda, recompondo a sua imagem social.

Por outro lado, sua ação se estabelece a partir da ajuda das crianças, talvez aí esteja a grande lição do autor, pois estas ainda não estão imbuídas de individualismo, não perderam a esponteneidade, ao ponto de compreender suas aspirações.
 

Por fim, pode-se afirmar que o romance expressa uma dramaticidade intensa, mostrando um homem inadaptado no grupo em que vive, porque está fora dos padrões estabelecidos.

O autor pretende além de traçar um perfil psicológico, mostrar a sociedade corrupta da época, a modernidade que chegava na Europa, através da industrialização, tornando as pessoas cada vez mais individualistas, integradas a uma cultura materialista que ele abominava.

Por outro lado, queria conservar e enaltecer a força espiritual da Rússia. Segundo ele, o sentimento patriarcal e ortodoxo era o caminho para a realização pessoal de seu País.
 

O idiota, de Dostoiévski é um excelente romance que vale à pena ler ou reler pelo seu conteúdo social e psicológico, através da construção humanística de seus personagens.

No Brasil, temos a tradução diretamente da língua russa, por Paulo Bezerra, do russo, 3.ª ed., Editora 34, 2010. 

quinta-feira, novembro 10, 2016

Como se desenvolve a criação

Quando escrevo, procuro difundir ao máximo as ideias pertinentes à história que está sendo construída.

Entretanto, os caminhos se diversificam e aos poucos, percebo que se algum preceito ou ponto de vista está na tentativa de ser disseminado, não passa desta etapa, porque a história segue um rumo quase determinado pelo crescimento ou não dos personagens.

Nada de extraordinário, apenas uma reflexão no fazer literatura, que, via de regra, pensamos ter as rédeas do texto nas mãos, mas o conteúdo foge de acordo com a imaginação e criatividade.

Na verdade, aí é que se dá a literatura, uma forma diferente de ver o mundo, de representar a realidade e não apenas mostrá-la com precisão jornalística.

Às vezes, torna-se necessário a desconstrução do texto para produzirmos o tão falado estranhamento, que pode trazer ao leitor a reflexão do tema que tratamos.

No entanto, a coisa deve surgir com naturalidade, sem acomodar muito a história a ponto de torná-la artificial.

É preciso saber unir a história que queremos contar com o desejo de chegar ao coração e à mente do leitor, sem vilipendiar nossos sentimentos e concepções de vida.

sexta-feira, março 11, 2016

A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez.

A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua cidade. Talvez pelo clima, ou pela liberdade das férias, traziam consigo uma vivacidade e delicadeza que ela desconhecia.

Mas foi por pouco tempo. Logo voltou à vidinha medíocre de balconista de farmácia. Sabia de cor todos os medicamentos, pelo menos, os mais usados ou mais vendidos. Costumava dar conselhos, indicava alguns, informava os benefícios, investia no cuidado com os presumíveis compradores. Era assim o seu jeito, calma, despretensiosa, desinteressada, quase amiga.

Depois conheceu Fábio. Foi no ano em que faria vestibular. Pretendia cursar letras, nem sabia bem o porquê, talvez porque gostasse de ler. Isso, faz até hoje. Gosta de esparramar-se na cama, enfiar os óculos na ponta do nariz e ler horas a fio os romances mais melosos que encontra. Neles se transporta, viaja a países em que o coração é protagonista. E sente-se ali, envolvida no cenário, como se fizesse parte da trama. Vive e vibra com os personagens. Isso se intensificou desde que casou. Passou a ler com mais frequência. Uma das atividades das quais Fábio não dá a mínima importância. Ainda bem. Nestes momentos, se sente livre, dona de si, tranquila.

Quando casou, desistiu do vestibular, desistiu do curso de letras, desistiu da faculdade. Casou. Era o sonho. O sonho de toda uma geração, talvez não da sua, mas a de sua mãe, ou sua avó. Faz tempo que ocorreu o movimento feminista. Mas ela nunca concordou com aqueles extremos. Homem é homem, tem as coisas de homem. As dificuldades de homem, os desejos de homem, as necessidades de homem. Homem luta, homem provém, homem vence. Mulher é diferente. Mulher é suave, doce, caseira, vive para a família. Mulher observa, aplaude, é plateia. Mulher agradece, obedece. Mulher é romântica. Mulher ama.

Ela pensa muito nisto e talvez por isso tenha vivido uma vida tão coerente com sua realidade. A realidade de uma dona de casa.

Bem que de vez em quando, surge aquela faísca que lhe atinge os olhos de gata cinza e dá uma sacudida na alma. Um estremecer nas pernas. Um tremor no coração. E se fosse tudo diferente? Se a vida existisse além da cozinha, além dos cuidados da casa, dos filhos, do marido. Se ultrapassasse aquela janela de vidro, opaca pelo sereno da manhã e atingisse os trilhos que passam ali, tão perto, quase ao lado? Uns trilhos que se perdem e se encontram, embora paralelos, com outros, formando novos caminhos? Uns trilhos que a conduzissem a outros extremos, outras saídas, que permitissem ações de conquistas e aventuras? E se seu nome não fosse Maria Helena? E seu marido não fosse Fábio Costa? E se não tivesse marido? E se tivesse um amante?

Agora estremece as mãos, que esfriam rápidas e as bochechas fervilham, vermelhas. Por momentos, morde as bochechas por dentro, fazendo um gesto de desgosto ou displicência, não sabe.

Sente forte remorso. Lembra do marido, tão solícito, trabalhando duro para manter uma vida digna. Lembra dos filhos correndo pelo shopping, em busca dos brinquedos, dos lanches, dos jogos, enquanto ela passeia pelas lojas de departamentos, procurando blusas para compor o visual para um passeio que não fará.

Se pudesse voltar a praia, caminhar descalça pela areia, sentindo a espuma bordar-lhe os dedos. Ah, seria bom aquela brisa, aquele ar mais puro impregnando-lhe as narinas, aquele sol flamejante envolvendo seu corpo inteiro. Ela vestida num maiô preto, os cabelos clareados e lisos da chapinha estirados nas costas bronzeadas. O olhar cinza quase furta-cor, na claridade inconfundível da atmosfera de verão.

Ah, seria tão bom sentir estas sensações e não se perder entre as paredes do apartamento, esperando que as coisas aconteçam de acordo com o tempo dos outros. O tempo do marido, dos filhos, o tempo das horas.

Mas já foi um bom tempo. Um tempo em que Fábio voltava mais rápido pra casa. Costumava elogiar seus quitutes, seu bem cuidado com a casa, os bordados das toalhas, a mesa do jantar enfeitada. Tudo brilhava como seus olhos. Às vezes, ele a beijava. Beijava devagarinho, encostando os seus lábios finos nos seus carnudos, a sua língua envolvia-lhe como um pássaro oferecendo comida. Uma comida que a saciava, que a deixava louca, que a consumia. Mas aos poucos, os carinhos e os elogios foram rareando. Como tudo na vida. Já seu corpo não o despertava. Seu olhar pouco expressava algum sentimento ou sensação e sua voz, ah, sua voz, fugia pra longe. Pra outros prados que não ali. Muitas vezes distante. Muitas vezes, perdido em divagações, em mundos que só ele conhecia. Coisas de homem. As gotas enchiam o pote. Rareavam espaços. Por certo, transbordariam, procurariam outros veios produzindo caminhos diversos, formando novos espaços, onde ela não cabia. Outro mundo surgia que não o seu. E a violência, aos poucos foi tomando conta do que outrora era carinho e atenção. Foi ficando omissão e dor. Um dor que se alastrava tão forte que o melhor era ficar quieta, calma, serena, como sempre fora. Assim, a dor passava. Como a mãe recomendava: te encobre no cobertor, o frio passa e acaba a dor. Se não tiver frio, não tem dor. Mas fica quieta. Te acalma. Mesmo assim, a dor continuava latente, cada vez mais forte, atingindo a profundidade do osso, sugerindo morte.

Um dia, o olho roxo. Outro, hematoma no braço. Ele cada vez mais violento.

Às vezes, ela tinha pena dele. Era um homem bom, mas tinha lá seus problemas, por certo não aguentava mais a situação. Devia estar pressionado pelo trabalho, pela vida, pelas finanças. Afinal, ele provia. Ele custeava tudo aquilo, a sua vida, o seu prazer, o seu próprio trabalho.

Mas a dor física não é o suficiente. Só doeu de fato, quando ele a desconsiderou como pessoa, como ser humano, como mulher. Quando ele disse que ela era um trapo, uma inútil, uma vadia. Quando a deixou com tantas dúvidas sobre si mesma, que o pote entornou, de vez. A gota derramou. Mágoa. Foi quando usou a única arma que tinha. Não era sedução, nem beleza, nem cultura. A única arma que a defenderia. A casa, a comida, os filhos. Ele se rendeu e morreu de dor.

sexta-feira, setembro 04, 2015

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.

Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.

Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.

Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.

Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.

– O que eu pedi? – questionou, indignada.

– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?

Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?

Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens. Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.

Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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