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quinta-feira, março 21, 2019

Todos eram puros e inocentes no passado? Nem tanto!

Acho notável que as pessoas tenham boas lembranças e sintam saudade dos tempos de infância, entretanto, há coisas que não entendo. Não entendo quando afirmam com veemência que naquela época, tudo era maravilhoso, a ponto de haver uma uniformidade nos costumes, cujos cidadãos eram pessoas extremamente afáveis, solidárias e felizes. As crianças eram educadas, disciplinadas e prestativas, os pais severos, conciliadores e gentis, os professores profissionais exigentes e respeitados na sala de aula e o mundo girava sob The The Sound Of Music, da Noviça Rebelde. Segundo estes relatos, os meninos entravam na igreja compenetrados, arrumando o cabelo e fazendo silêncio para ouvirem as orações, enquanto as meninas, por sua vez, se deparavam caladas, em frente aos santos, rezando para que suas provas não fossem muito difíceis ou para serem pessoas melhores. Os vizinhos sentavam nas calçadas, tomavam chimarrão ao anoitecer e jogavam conversa fora. Todos eram amigos, e nos natais, compartilhavam a alegria e o amor, que se estendia entre todo o bairro. Nas escolas, o hino nacional era cantado diariamente e os professores rezavam antes de iniciar a aula. O mundo era feliz e puro. Todos viviam numa redoma de propaganda de margarina. O pai jamais voltava cansado do trabalho e a mãe sempre apresentava um manjar para esperá-lo, sem qualquer queixa dos filhos tão corretos e obedientes.

No entanto, me pergunto, se este mundo idealizado existiu mesmo ou somente ocorreu na mente dos saudosistas, que com estas imagens oníricas produzam uma saída para suas angústias, como ponto de partida para a esperança. Sim, porque todos queremos um mundo melhor. E todos, em geral, vivemos cenas parecidas, com famílias na calçada conversando, crianças brincando na rua até o anoitecer, os professores emblemáticos em suas disciplinas e os pais atentos e severos nos momentos adequados. Estas cenas agradáveis ficaram em nossas mentes e as selecionamos para identificar um passado que nos foi grato. Mas vejam bem. Eu não vivi neste mundo, pelo menos tão bordado de azul e cor de rosa, como se o arco-íris pousasse sobre nossas cabeças a cada entardecer. Não. Havia situações semelhantes às idealizadas do passado, mas como tudo na vida, havia também o outro lado. Por exemplo, na escola em que fiz o curso primário, a Escola São Luiz, nós apenas ouvíamos e cantávamos os hinos em dias cívicos, principalmente nos dias da semana da Pátria, e mesmo assim, apenas uma turma era escolhida, não todo colégio. Durante a semana da Pátria, uma turma devia hastear a bandeira e cantar o hino, assim sucessivamente, para que todas as daquele turno, participassem nos dias subsequentes. Jamais entoamos o hino diariamente e nunca desfilamos no dia da Independência. Já no Colégio São Francisco, só participei do desfile da Semana da Pátria, uma única vez, porque não desfilamos nos demais três anos que faziam parte do tempo de ginásio. Isso, que estávamos em plena ditadura. Por outro lado, as crianças não eram tão obedientes, disciplinadas e educadas como se anuncia por aí. Lembro, que certa vez, alguns alunos se prepararam para dar um susto no professor de inglês, do qual não gostavam muito e punham apelidos, às vezes, nem tão edificantes. Eles colocaram a lixeira sobre a porta e quando o professor abriu, a mesma caiu quase em sua cabeça, assustando-o e sujando todo o piso da sala. Ele disfarçou para não se sentir humilhado e disse uma piada qualquer. Aí, me pergunto, onde ficou a disciplina? E a coragem do professor em enfrentar àquela situação? Pode ter sido uma reação peculiar, talvez outro no lugar dele, agisse de modo diferente. Mas, quanto ao fato em si, ocorria de forma quase rotineira nas escolas. Havia bullyng e os professores não sabiam lidar com as situações. Um outro aluno colocou um preservativo na cadeira do professor, e quando o mesmo chegou, ficou confuso, sem saber como agir. Ele devia ter aproveitado para falar sobre o controle da natalidade, talvez, mas como a maioria, não tinha a tranquilidade nem o conhecimento para discutir a questão. Sorriu e não sentou o tempo todo na cadeira, porque não conseguiu tomar uma atitude para retirar o objeto. Não o critico, era a concepção de educação e conhecimento da época. Neste tema de educação sexual, ocorriam absurdos em virtude dessas incoerências do período no qual tudo era proibido (pelo menos para o povo comum). Na minha sala de aula, um professor fez um questionário para saber se estávamos interessados neste assunto. Os doces e inocentes alunos assinalaram em peso, que queriam educação sexual, que tinham muitas perguntas a fazer. O professor se acovardou e finalizou que responderia individualmente, se alguém precisasse. Claro que isso nunca aconteceu.

Por outro lado, embora não soubéssemos praticamente nada dos problemas das pessoas próximas, vizinhos ou amigos, os adultos descobriam e comentavam muitas vezes, casos escabrosos sobre as famílias. Está aí Nelson Rodrigues para provar. O homem é sempre igual em qualquer sociedade e quanto mais restrito o seu acesso à educação e às fontes informativas sobre as relações sociais, menos humanizado se torna, e embora escondido, utilizava-se das mazelas para conseguir os objetivos mais obscuros, tanto quanto agora. Sabíamos de maridos que traíam as mulheres e tudo era ocultado. Mulheres que se sujeitavam aos desmandos dos maridos e até às ofensas morais e maus-tratos físicos, porque eram completamente dependentes, como donas de casa, incapazes de sobreviver e ter a sua profissão. Havia casos de estupros, de padres pedófilos, de pastores corruptos, de médiuns charlatães e estes casos eram comentados à boca pequena, embora todos soubessem e raramente viessem a público. O mundo é o mesmo de antigamente, as pessoas são as mesmas, a humanidade servia ao senhor dinheiro, fazia guerras e o homem se locupletava no poder, no autoritarismo, assentado num falso desejo democrático. Claro que havia o povo honesto, como existe hoje. Claro que havia a inocência, porque desconhecíamos quase tudo, inclusive na questão da sexualidade, embora eu acredite que nós não éramos inocentes, éramos ignorantes tentando descobrir alguma coisa. Claro que havia as brincadeiras, o futebol de rua, a bola de gude, mas havia também as armadilhas na areia para que o outro caísse, havia o roubo no jogo de cartas, havia o chamado catecismo de pornografia, que alguns guris sempre carregavam consigo, havia o bando de meninos que se juntavam para enfrentar o valentão e havia os valentões que batiam nos mais fracos, por pura vaidade e afirmação de macheza. Para as meninas, a ilusão de brincar de casinha, de fazer questionários sobre meninos, de sonhar com um príncipe encantado, mas também a fofoca na sala de aula, a delação dos meninos que desobedeciam certas regras, as conversas escondidas nos cantos das escadarias da escola, o comentário mais apimentado sobre uma guria que parecia mais moderna para a época. Havia o cigarro proibido, já na adolescência, havia o levantar a saia de pregas, deixando-a mais curta, acima dos joelhos, havia os namoros mais avançados. Inclusive, havia os abortos, os casamentos apressados para provar que a menina era virgem embora estivesse grávida, havia a mentira. Nem todo mundo era tão santo como se propaga nos textos saudosistas.

Sem dúvida, que tenho saudades daqueles tempos de verão, dos jogos de bola, dos amigos. Mas sei, que éramos humanos e que nenhuma força autoritária ou disciplinar do mundo, nos impediria de desobedecer pequenas regras. Não é um regime reacionário, um governo fascista que trará de volta ¨os bons tempos¨, pois mesmo que conseguisse, eles voltariam imersos em suas controvérsias e ninguém jamais poderia mudar o que não tem conserto. O mundo é dualista e saber dosar é a melhor solução, sem imposições, sem ordens de cima para baixo, sem falsos moralismos. Basta haver respeito e liberdade de ação e pensamento. E principalmente, saber que a educação é o único eixo que pode nortear nossas atitudes.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/feliz-fam%C3%ADlia-desenhos-animados-1082921/

terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

sábado, julho 29, 2017

A esquina iluminada

Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação.

A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo.

Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos.

Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show improvisado.

Entrou e encostou-se no balcão, acomodando-me entre meia dúzia de homens que se acotovelavam, bebendo e conversando em brados, misturando as vozes com a música que uma cantora se esforçava em dividir com o som e as imagens do futebol na TV. Algumas mesas faziam um círculo com pessoas entusiasmadas que aplaudiam, semelhante a uma plateia de teatro de arena. É provável que fossem amigos ou parentes da cantora magrela, que produzia uma perfomance estranha, vestida de couro em preto, da cabeça aos pés, olhos fundos, salientados por traços escuros, contrastando com uma franja lilás.

Fabrício nem percebera que o atendente perguntara pela décima vez, talvez, o que pretendia beber.

— Cigarros. Pode ser desse azul, aí. – Apontou para o mostrador na parede.

— Só isso?

— Só isso não… – O outro afastou-se para servir o cliente mais à direita, mas insistiu que nem queria cigarros, mas sim uma cerveja.

Fabrício percebeu que o atendente transferira o seu pedido ao garçom magro e de cabeça pelada, que se espalhava entre as mesas. Irritado por ter sido preterido, indagou por que não lhe atendera. Justifiquei a sua indignação, dizendo que teria de esperar que o outro, que estava no lado oposto do bar, viesse até ali e lhe trouxesse uma cerveja.

Alguns homens que estavam ao seu lado voltaram-se para ele, mas logo o esqueceram. Também o caixa fingia não ouvir. O mundo parecia eliminá-lo do cenário.

Antes que o garçom se aproximasse com a cerveja, voltou ao assunto, pedindo esclarecimentos ao homem:

— Não seria melhor teres me atendido? Tiraste o outro da atividade dele.

Ele coçou a cabeça irritado, enquanto o garçom sorriu por um minuto e logo se afastou em direção ao grupo que pedia outras bebidas. Ficou encarando o balconista com raiva estudada.

O vendedor respondeu, sem voltar-se para ele, como se o seu foco fosse alguma coisa abstrata. Enxugava as mãos num guardanapo cinza, que devia ter sido branco e assentava os cotovelos no balcão. Os braços eram fortes, com veias salientes e estranhas tatuagens.

— Olha aqui, meu amigo. Não to aqui pra dar trela. Tu já foi atendido, desencana.

Fabrício percebeu o jeito displicente, o cabelo empapado em gordura, o bigode grisalho mal afeitado. Talvez por isso, decidira levar a discussão adiante. Respondeu que ele estava ali para dar trela sim, usando as suas palavras. Afinal ser atencioso e eficiente devia ser uma regra de boa convivência, pois o bar era um ambiente público, no qual o cliente deveria ter prioridade absoluta.

O outro respondeu já na outra extremidade do balcão, atendendo na caixa:

— Meu amigo, não tenho tempo pra discutir isso tudo que tu falou aí, do teu manual. – Terminou a frase rindo com ironia, piscando para o freguês a quem dava o troco, que também sorria.

Um ódio se insurgiu nos sentimentos de Fabrício e por um instante, imaginou o pai na figura daquele homem, extrapolando as suas funções e dando lições de moral. Foi neste momento, que gritou:

— Para coçar o saco, enquanto oferece um salgado, tu não te importas! Nem ao menos, pegas um garfo, um guardanapo de papel. Estás sempre pendurado neste pano de pratos sujo em cima do balcão. Eu poderia chamar a vigilância sanitária e fechar esta espelunca.

— Tu é da fiscalização? Se não é, vaza! Não me enche o saco!

— Sim, como todo cidadão.

Um dos que estavam ao seu lado, um homem franzino e de pescoço comprido, se pronunciou agressivo, mandando-o calar a boca. Não pensou duas vezes e o acusou de ser um alienado.

— Não te mete, seu garnizé. Se tu és daqueles indivíduos que aceitam tudo sem reclamar, o problema é teu.

— Tu tá criando caso, só isso. Já foi atendido, não foi? Então fecha a matraca, que a gente quer assistir o jogo – disparou com fúria solidária ao companheiro, um outro de corpo avantajado e camisa regatas.

Fabrício sentia náusea do suor que brilhava na axila peluda. Afastou-se um pouco dos braços enlaçados do balcão e resmungou "um bando de idiotas!".

Pegou a cerveja que lhe foi empurrada da caixa e e dirigiu-se a uma mesa próxima ao palco improvisado, no qual a cantora, neste momento encerrava a apresentação.

Em seguida, o rapaz de cabeça pelada limpou a mesa e antes que se afastasse, ele agradeceu e ficou em silêncio.

Bebeu o primeiro gole e a bebida escorria amarga. Entornou um copo atrás do outro até acabar o conteúdo. Havia uma necessidade de terminar e pedir outra cerveja. Desta vez, o garçom foi rápido. Continuou no mesmo processo, embora agora, sentisse uma certa euforia na bebida. Olhava enviesado para os habitués, que a esta altura, o haviam esquecido , fascinados que estavam pelo futebol.

Os ruídos se aceleravam, além do som da TV, como se fosse um final de festa, sem a música, apenas os ruídos remanescentes.

Ao terminar, Fabrício levantou-se da mesa, empurrando-a e riscando os seus pés de metal no piso.

Ato contínuo, aproximou-se da caixa, onde estava o pivô da discussão, agora tranquilo, apenas assistindo o jogo. Chegou bem perto para chamar-lhe a atenção, gritando para que todos ouvissem:

— Um dia, tu vais aprender a tratar bem as pessoas.

O atendente voltou-se surpreso e muito assustado, porque Fabrício apontou uma arma em sua direção.

Os demais se afastaram correndo do balcão, produzindo uma clareira no centro do bar.

Apenas ele e o balconista se enfrentavam.

Algumas mulheres gritavam em pânico.

O rapaz da cabeça pelada escondia-se num nicho de uma porta que certamente existira no passado, atrás de uma cortina ensebada.

Fabrício percebera que o homem da caixa estremecia e falava com uma voz gutural, esforçando-se em me pedir cuidado.

— Calma com este troço aí, amigo, isso não é brinquedo.

Não lhe deu ouvidos, ao contrário, engatilhou com a mão firme e respondeu com fúria:

— Não me chama de amigo, seu palhaço. Eu não sou teu amigo!

O outro fez um anteparo com as mãos espalmadas em sua direção, apavorado.

— Está bem, mas por favor, vai embora. Que pensa que tu vai fazer, pelo amor de Deus!

Ele começou a rir, sempre apontando a arma para ele.

— Agora estás te cagando de medo, seu covarde! Cuidado, vais te borrar nas calças – e voltou-se para a plateia silenciosa – vejam pessoal, o valentão está se borrando de medo!

Virou-se num segundo para o balconista e o viu abaixar-se atrás do balcão, com os olhos arregalados, suplicando por sua vida.

Não podia atendê-lo, significava muito a sua liberdade, por isso, o atingiu.

Um estampido somente. Um breve instante e uma risca de sangue pela boca, o pulmão perfurado. Rápido, fulminante, certeiro. A morte atrás do balcão. Mais um idiota intolerante fora eliminado.

O garçom de cabelo muito curto trazia outra cerveja e comentava alguma coisa, mas não o ouvia. Ficou parado, pensativo, tentando adivinhar o que estava fazendo ali. Entretanto, segurou a garrafa com parcimônia, agradeceu e deixei-a sobre o balcão de pedra.

Quando voltou a vê-lo, ele já estava do outro lado, servindo as mesas restantes.

Olhou para o caixa que parecia esforçar-se em manter-se alheio. De vez enquanto, arriscava por debaixo dos olhos para os fregueses e acenava a cabeça, entediado com as conversas e as beberagens. Quando respondia alguma pergunta, nunca encarava as pessoas e quase sempre entregava as tarefas ao garçom, mesmo que este estivesse perdido entre outras mesas.

Examinou o seu olhar miúdo, um tanto ausente. Devia ser o dono daquela espelunca, pois demonstrava muito zelo pelas contas.

O atendimento deveria ser mais amistoso e pessoal, pensou. Entretanto, não reagiu, não tomou qualquer atitude que expressasse o seu descontentamento.

Se tivesse uma arma naquele momento, teria atirado naquele imbecil ou talvez apenas avistasse pela janela a esquina toda iluminada e decidisse seguir em frente.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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