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sexta-feira, maio 14, 2021

Não posso calar

Como falar dos dias tranquilos e ensolarados do outono, das tarde agradáveis e noites frias. Como falar das folhas amarelando pátios, calçadas e ruas? Como falar das aves que se apropriam dos espaços agora um tanto vazios e se mostram encantadas e encantando na sua beleza natural e avidez de liberdade e alimento? Como falar do vento que cria e recria dunas, que as destrói e reconstrói, que as troca de lugar e potencializa caminhos, às vezes mais arenosos, às vezes mais úmidos pela água do mar. Como falar das pequenas flores que se erguem submissas ao vento, calmas entre as depressões ali mesmo nos cômoros quase ondulantes? Como falar das ondas do mar, que se ajustam ao entardecer conservando vagas platinadas, quase translúcidas num avantajado azul? Como falar das gaivotas que riscam o céu, tão próximo ao mar que quase o tocamos, esticando o braço, esperando o pousar entre o céu e a mão nas garras molhadas e o bico salgado da pesca habitual. Como falar da lua que surge lenta e cordial, aparecendo de improviso neste céu quase tocado, compartilhando os raios fugidios do sol. Como falar da natureza que nos agracia com os sabores, perfumes, visões, imagens, cores e beleza? Como não falar dos homens e mulheres, cujas lágrimas se esvaem em súplicas, medos, dores e desesperança? Como não falar dos corpos que se amontoam numa guerra cujos generais salvaguardados em seus vis propósitos genocidas, se fartam e se empanturram em desejos de morte? Como não falar do número devastador de vidas perdidas diariamente numa pandemia cujo elemento principal é o negacionismo, o confronto com a ciência e o interesse perdulário das religiões? Como calar neste outono sinistro, onde parte da natureza se decompõe como traste sem serventia? Como se a vida nada mais importasse? Como calar ante o genocídio de um governo criminoso? Como calar e consentir na insanidade, sem se sentir culpado pelo silêncio? Como calar ante a dor de milhares de pessoas que não tiveram a chance de sobreviver, nem ao menos de procurarem ajuda? Como calar ante a dor da miséria, das crianças que morrem de fome, de ilusão, de sonhos? Dos adultos desnorteados ante a impotência? Como calar? Não. Não posso calar. A ferida é cruel e fere como fogo.
A ferida se alastra pelo País. A ferida vai muito além de nossa realidade. A ferida é. Está. Permanece. E não há quem a cure. Por mais que a natureza se esforce todo o dia renascer em sua beleza, há uma parte da natureza que agoniza e morre. Morre com ela o silêncio. Morre com ela, a beleza. Morre com ela o renascer, o reviver, o recriar, porque a morte é absoluta. Então, como falar na natureza e calar nesta parte que se consome e se destrói diariamente. Não. Não posso calar.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/outdoor-grama-verão-campo-3202494/

quarta-feira, maio 12, 2021

Mãe no jardim

Às vezes, lembro a velha janela de veneziana e postigos verdes. Observava os rodamoinhos, folhas que giravam numa agitação festiva e alguns sacos plásticos efetuavam rápidos vôos para mergulharem em seguida na calçada ou no meio do rua. O vento fustigava a janela. A tarde era melancólica.
Minha mãe passeava entre as dálias, diversas begônias, umas com folhas riscadas de vermelho, outras com um verde mais intenso, algumas com pendões de flores azuladas, além de uma roseira de rosas pequeninas que ela insistia que se grudassem ao muro. Brigava com as formigas que rendavam as folhas, lutava no pequeno jardim, no qual canteiros simbolizavam o seu afeto e dedicação pelas plantas.

Havia arbustos maiores, a tal da Eva e do Adão, com folhas imensas, bem desenhadas e muito verdes. E as hortênsias? As hortênsias eram o seu xodó, sempre floriam na hora certa e mudavam a cor conforme a distância entre elas. Se havia hortênsias rosas próximas a azuis, elas trocavam de cor. As rosas mais azuladas e talvez as azuis um tanto brancas, não sei. Havia o jasmim, este já no corredor, ao lado da casa. Tinha um perfume poderoso e era cultivado com muito cuidado. E os brincos-de-princesa, flores vistosas, em forma de um pequeno vaso, com pétalas roxas e vermelhas. Não tenho certeza. Havia os dias de calma.
Os dias em que a janela permanecia aberta e dali, se apreciava o jardim, a rua, a calçada, os meninos brincando. Havia dias de pouca brisa, mas que investigava a sala, as cortinas de voal (voil) que lambiam o peitoril da janela e desenhavam pela casa pequenas sombras que se espraiavam pelas paredes.
Às vezes, havia uma vela, bem ali, perto do peitoral da janela, acendida para algum santo, talvez para comemorar alguma dádiva, não sei. O vento leve, mas assobiava no corredor, vez que outra. Ele vinha e ia e a chama se deitava, oscilando de modo a quase apagar-se, mas resistia e coloria de vermelho a proximidade da cortina, quando o vento amainava. Ficava forte, como a fé que ora se deslocava pra lá, ou pra cá. Ora se enfraquecia, ora se fortalecia e iluminava o ambiente, como a vela. A vela apropriada.
Por vezes, a via por ali. Ou por todos os lugares, ocupando todos os espaços. Ficava entre as flores, a luz da chama iluminando, resistindo aos ventos fortes, oscilando entre a fé e a alegria, buscando. E sua busca não cedia, não esmorecia, tal como a vela no velho castiçal de bronze. Ãs vezes fraca, titubeante, às vezes forte e iluminada.
Ainda a vejo ali, atravessando os pequenos canteiros, aproximando-se da sala e puxando as cortinas com cuidado, fechando os postigos, as venezianas e lacrando a janela verde, porque o vento agora surgia forte e poderoso. Hora de respeitar a natureza.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/anêmona-azul-flor-pétalas-verão-2396299/

sexta-feira, julho 12, 2019

O ipê pensante

Sentei-me sob a sombra de um ipê de minha rua. Um ipê roxo, altaneiro, elegante, agora com poucas folhas e ramagens. Um ipê que sofre o processo do inverno e como tal, se recolhe à seiva mantenedora, abrigando-se e perdendo aos poucos as flores, as folhas e alguns ramos. Espera resignado a primavera. Por certo, observa o sol alongado no céu, enfraquecido e distante.

À noite, espera a lua que às vezes, se some, esquecida entre nuvens e neblinas, trazendo mais escuridão.

O que pensará o ipê de minha rua, se todas as coisas são assim, se sempre foram as mesmas, as temperaturas frias, os ventos que oscilam seus galhos, as noites cada vez mais longas. Talvez alguns pássaros comentem: esta noite não acaba mais. Talvez ele ouça sussurros, arrepios de frio, penas ao vento, brisas inesperadas vindas sabe lá de onde, provavelmente do mar. Talvez ele espere os dias maiores, as manhãs aconchegantes, o sol mais forte, as brotos surgindo, as flores antecipando a primavera e os ventos fortes trazendo os pólens. Outros pássaros, outros sons, outros sussurros, outras vozes.

Mas tudo não é a mesma coisa? As noites, os dias não se sucedem iguais? Se o ipê de minha rua pensasse, se é que não pensa, por certo diria: não! Nem tudo é igual, nem tudo soma, nem tudo evolui, nem todos os sons são claros e vibrantes, nem todas as sombras são as mesmas das árvores, nem o vento sibila do mesmo jeito.

Há algo diferente, algo que o ipê não sabe. Nem o homem comum, o transeunte, o atarefado do dia a dia. Talvez os cientistas saibam, talvez os pensadores, os filósofos, os educadores, os que pensam a vida e o País saibam. Aquela sombra do ipê, aquele dia ensolarado, aquele frio intenso nunca mais será o mesmo, porque a lâmina que decepa cabeças pensantes atua precisa e tal como o ipê, seus pares nunca mais serão os mesmos.

quinta-feira, abril 19, 2018

Faz tempo

Faz tempo que não se vai à janela, nem se observa a rua, nem se reflete na vida.

Faz tempo que não se pula amarelinha, nem se ensaia passos de dança, nem se sorri.

Faz tempo que o mundo anda cinza, que o medo acolhe as portas, que o riso encolheu.

Faz tempo que o ódio é mais inspirador que o amor.

Faz tempo que a divisão é o elemento maior.

Faz tempo que se rompeu o elo.

Faz tempo que se anda em atropelo, sem olhar para o mar ou rever amigos.

Faz tempo que se anda sozinho, que se olha uma tela e não se absorve nada.

Faz tempo que o mundo anda para trás.

Faz tempo que a vanguarda deixou de ser protagonista dando lugar ao retrocesso.

Faz tempo.

Fonte: Bess Hamiti in: https://pixabay.com/pt/users/Bess-Hamiti-909086/

terça-feira, dezembro 12, 2017

Um natal ecumênico

Nos dias que antecedem o Natal, percebemos que apesar da correria natural pela proximidade da data, ocorrem, por vezes, acontecimentos inesperados e muitas vezes inexplicáveis.

Numa data distante, num Natal que se vai no tempo, ficaram as lembranças como registros que vira e mexe, nos ocupam a mente.

Lembro de meus pais atarefados, cada um na sua atividade, além da demanda natalina. No jantar, eu e minha irmã conversávamos animados sobre os brinquedos, o tema que mais nos interessava. Ela já tinha escolhido o seu, uma boneca de louça, olhos azuis que abriam e fechavam e comentava isso com a maior eloquência, como se fosse o ápice da modernidade. Já havia, inclusive, escolhido o nome: Maximira Carlota. Eu a ficava ouvindo e me perguntando que nome era aquele. Mais tarde descobrira que era a protagonista de uma radionovela, uma personagem que chorava o tempo inteiro, vivendo a mocinha ingênua e sofredora. Eu sonhava com um caminhão com carroceria ou uma locomotiva. Meu pai falava do trabalho, da possibilidade de no final da semana, mais perto do Natal, ele poder ir à noite, para fazermos as últimas compras. Minha mãe, certamente aumentava a lista que costumava levar para não esquecer nenhum item.

O que ela não sabia, é que grandes surpresas estavam por vir. Tudo começava pela característica ímpar de nossa rua, que era considerada uma rua ecumênica, pelo elevado número de instituições religiosas em poucos metros quadrados.

Por outro lado, era uma rua arborizada sem qualquer preocupação paisagística ou compatível com a infraestrutura urbana, desde salsos-chorão que se derramavam na calçada, uma velha figueira se irmanava com os pássaros da vizinhança e que se distinguia na última esquina, até plátanos que desenhavam as calçadas nos meses de outono. Ah, havia também um pinheiro imenso plantado por um morador alguns anos atrás, que se esgueirava entre os fios de luz, procurando o sol e a energia que demandava seu crescimento.

Quanto ao aspecto religioso, o ecumenismo de nossa rua se sustentava a partir da convivência de pessoas com religiões diferentes, mas que se irmanavam especialmente naqueles dias vindouros ao Natal.

Meu pai era católico praticante, minha mãe, nem tanto. Entretanto, a missa do Galo era sagrada, embora sempre saísse da igreja criticando o sermão do padre que segundo ela, repetia o mesmo mantra, chamando à atenção das pessoas que somente compareciam à missa, no dia do Natal. Mas, em meio a esses desacordos, ela sempre ficava emocionada pelos cânticos, pelas mensagens, pelos abraços e pela alegria que inspirava a todos. Afinal, não era tempo de ter rancores, mas de perdão. A igreja ficava no final da rua, próxima à grande figueira e ao colégio ao lado.

Ao lado de nossa casa, havia um centro espírita, no qual a médium era uma mulher um tanto enigmática, para nós crianças e até curiosa pelo desconhecimento que tínhamos de seu ritual, apenas ouvíamos os pontos que se elevavam à noite, ainda que fosse uma pessoa agradável e muito amiga dos vizinhos. Tinha grande apreço por minha mãe, que embora não compartilhasse de sua crença, passava algum tempo conversando e talvez confidenciando seus sonhos e esperanças. vUm pouco mais adiante, no meio da quadra seguinte, ficava a Igreja Batista, cujo pastor implicava com o jogo de futebol que desfrutávamos em frente ao templo, do qual ele temia que algum crente desprevinido recebesse uma bolada. Entretanto, participava ativamente das reuiões do bairro e principalmente sobre a rua, compartilhando com os demais as medidas de melhorias reinvindicadas pelo pequeno grupo populacional.

Mas naquela época, próxima ao Natal, alguém teve a ideia de reunir o pessoal da rua e quem quisesse participar do bairro. Tratava-se de dona Jandira uma velha enfermeira, que morava sozinha e que segundo ela fora objeto de um sonho muito estranho e do qual, precisava compartilhar conosco. Elaborou pequenos convites e levou-os a todas as casas da rua, aproveitando o nome das pessoas que faziam parte da lista que mensalmente recebiam a imagem de Nossa Senhora de Fátima, em sua capelinha de madeira. Foi bem fácil, até porque, líder que era para organizar adultos e crianças, juntara um bom grupo para levar os convites e marcar a hora do evento.

De tardezinha, os vizinhos aproveitavam o tempo em suas cadeiras de praia, tomando chimarrão e jogando conversa fora, enquanto os meninos abaixavam-se entre uma jogada e outra de bola de gude, pintados pelas sombras dos plátanos, que lhes desenhava as camisas e os braços em movimento. As meninas andavam com os carrinhos de boneca e conversavam animadas entre um calçada e outra, como se passeassem num parque.

No dia marcado, Dona Jandira reuniu a maioria dos moradores. Alguns vinham direto do trabalho, outros se enfeitavam após o banho e as mulheres que eram somente donas de casa, já estavam prontas para o evento. Minha mãe se arrumara rapidamente após voltar da fábrica de tecelagem, preparara um chá, alguns biscoitos porque a reunião desta vez, seria em nossa casa.

Dona Jandira colocara as cartas na mesa. O tema era o Natal e estava na hora de fazermos, segundo ela, uma festa natalina que marcasse de forma brilhante a nossa rua e mais do que isso, a nossa convivência de vizinhos e amigos. Isto era na verdade o que o seu sonho a incumbira: organizar grupos religiosos tão diferentes. A discussão foi se desenvolvendo em vieses diversos, uns interessados em elaborar um presépio vivo, outros em fazer uma árvore gigante e organizar um coral, afinal tinhamos uma professora de música no bairro, outros que deveríamos recolher alimentos e brinquedos para as famílias carentes. Alguns não gostariam de participar em nada, porque não tinham tempo ou estariam viajando. Todos os temas foram levantados, estudados e muito discutidos.

Meus pais pareciam felizes com a discussão. Os amigos reunidos, as pessoas discutindo uma maneira de representar o nascimento de Jesus, o que poderia haver de mais religioso e digno do que aquele desejo?

Eu observava a cena com os olhares de criança, cheios de curiosidade e ao mesmo tempo tendo uma nova visão que se afiançava na minha educação religiosa. Aos poucos, o assunto debatido tomava uma eloquencia poderosa, quase etérea e um bem estar parecia tomar conta do grupo. Eu estava feliz e todos pareciam assim ungidos da alegria que entrara por alguma porta e se intalara entre nós.

Hoje, passado tantos anos, eu acredito que naquele momento ocorreu para o nosso bairro uma manifestação verdadeira do Natal. Não importa o que aconteceu depois, talvez tenha sido somente o complemento das atividades do dia de Natal. Mas o que ficara para sempre, é que o Natal estava em nossos corações, em nossos sonhos, em nossas discussões sobre Jesus, Maria e José e como os representaríamos em nossa humanidade tão frágil.

quarta-feira, agosto 23, 2017

Cinema de rua e sonhos de primavera

Uma noite de primavera. A brisa leve sussurrava em nossas testas suadas. Meu pai vestia paletó azul, meio gasto.

O olhar se perdia ao longe, como se aguardasse o galardão de ouro. O longe que se perdia, na verdade era a tela de parede caiada. Ele parecia mais ansioso do que eu. Sua boca entreaberta sorria.

De repente, fitou-me e ficou sério. Eu é que deveria estar feliz e ter muitas expectativas naquele momento. Seria uma noite e tanto: uma noite só de homens. As mulheres ficaram em casa.

Daqui a pouco, chegaríamos na rua onde seria projetado o filme.

As pessoas se aglomeravam entre vendedores de algodão-doce e pipoca, enquanto atravessávamos ruas de paralelepípedos e trilhos. O caminho habitual agora atingia um ar festivo e uma euforia se rendia a nossas mentes curiosas. Aos poucos, o cenário quase onírico se formava.

Na calçada, paramos sob uma árvore, já apinhada de meninos à espera do espetáculo. Para meu pai, eram apenas meninos de rua, sem disciplina. Ele era assim: um homem que almejava o melhor para nós, a seu modo.

De repente, a música ecoou silenciando o burburinho. Nada havia, porém, que sugerisse uma imagem. Apenas o desejo incontrolável dos espectadores.

Meu pai punha as mãos nos bolsos e olhava o relógio, desconfiado. Dizia alguma coisa, tentando conservar o meu entusiasmo.

O pacote de pipoca acabara. Minha decepção só não fora maior porque, desta vez, irrompera uma imagem na tela, que parecia ocupar toda a plateia que se acotovelava nas paredes das casas.

Num alto-falante, alguém informava que a fita era uma obra-prima da sétima arte, dirigida ao seleto público.

No fundo, me encantei mais pelo espetáculo do cinema, pela preparação da festa, do que pela história.

No final da sessão, houve prêmios para o público e meu pai ganhara uma lata de biscoitos Aymoré.

Ele recebera o prêmio, próximo à tela, ainda iluminada. Eu observava o seu perfil azulado, como um personagem que se deslocava da tela para alcançar a realidade. Ali percebi que a magia do cinema, mesmo de rua, me encantava e me transportava a um mundo novo.

Voltamos em seguida para casa, com a lata de biscoitos na mão e muitos sonhos na cabeça.

domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa.

Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma?

Uma pequena inveja assolou minha alma, por um momento. Pudesse eu desfrutar daqueles momentos de derrame da vida, mesmo que o resultado fosse uma poça de baba na boca, uns olhos apertados no sol, o corpo doído na calçada suja.

Nem sei se pela inveja ou por piedade, ou mesmo medo de que fosse vilipendiado, roubado, ou mesmo assassinado, que o chamei. Afinal, não se tratava de um mendigo, haja vista as roupas que usava. Um paletó cinza, camisa preta, calça de um cinza mais claro e sapatos sociais. Não havia dúvida que foi o que me levou a tentar acordá-lo. Se fosse um mendigo miserável ou um craqueiro indesejável, eu como de resto, seguindo o senso comum das pessoas de bem, me afastaria rapidamente, provavelmente atravessando para o outro lado da rua e desaparecendo nas calçadas seguintes.

Então me aproximei devagar, dobrei o corpo para que me ouvisse e o chamei algumas vezes. Ele abriu os olhos, apertou-os com força em virtude da luz intensa, fechou-os rapidamente, virou o corpo em direção à parede e esticou as pernas, encolhendo-as novamente, deixando-se ficar na posição fetal. Dava a sensação que não queria conversa.

Insisti: companheiro, não pode ficar aí. É perigoso. Tens documentos, carteira?

Ele não respondeu. Resmungou alguma coisa sem sentido e encolheu-se ainda mais, escondendo a cabeça com as mãos.

Ia desistir do meu intento. Que se amolasse. Que roubassem o seu dinheiro, seus documentos, que o agredissem. O dia passaria rápido, e naquela rua vazia, numa tarde de domingo ensolarado, a solidão era propícia aos vândalos.

Voltei-me, abandonando a ideia de ajudá-lo, quando de repente, num salto, ele se levantou, como se imbuído de uma estranha energia. Então, insisti.

– Companheiro, é melhor ir pra outro lugar. Ficar aí, sozinho, deitado na calçada, não é bom. Alguém pode te assaltar.

Ele não me respondeu. Olhou-me atentamente, como se quisesse descobrir qual era a minha verdadeira intenção. Uma suspeita implícita.

Perguntei, intrigado.

– Escuta, cara, não tens nenhum amigo?

Ele foi taxativo. Olhos arregalados, uma certeza única: meu amigo é Jesus.

Talvez pretendesse dizer-me que não tinha amigos e que não confiava em ninguém. Achei melhor dar por encerrada a minha missão.

– Está bem, só insisto que não fiques aí deitado. Daqui a pouco, pode passar algum policial e vai implicar contigo – e conclui com um “até logo”, entredentes.

Ele voltou a deitar-se, agora sob a marquise do prédio ao lado. Pelo menos, estava na sombra do edifício. Afastei-me alguns metros e ele sussurrou, levantando a cabeça na minha direção.

– Não tenho documentos, não tenho dinheiro, não tenho nada.

Decidi não dar atenção. Estava cansado destas ladainhas. Pessoas que se mostravam incapazes de voltarem para as suas cidades porque perderam tudo, ou que pediam dinheiro porque haviam sido roubadas, ou porque precisavam de um medicamento com urgência. As histórias soçobravam em minha mente e aqueles textos amarfanhados se repetiam da mesma forma como os flanelinhas inventavam maneiras de agradar os presumíveis clientes.

Ele disse aquelas palavras, azulou os olhos aguados e deixou-se ficar na mesma postura, sem iniciativa. Era um convite ao desinteresse. Segui então o meu caminho e enquanto me afastava, lembrava de momentos em que passei sérias dificuldades. Situações absurdas em que fui envolvido sem qualquer lógica que justificasse os sacrifícios passados. Mas, eu era responsável, um homem que sempre trabalhou em toda a sua vida. Não podia ficar me comparando com um homem que fica na passividade permissiva do pedido, da esmola, da auto piedade. Mas volta e meia, surgia a tal da culpa cristã que me acompanhava.

Aos poucos, o mormaço me deixava cada vez mais cansado. O suor escorria pela testa e uma sensação estranha de frio me atingia, como se uma febre terçã se estabelecesse em meu organismo, tornando-me frágil e incapacitado para seguir adiante. Por sorte, havia o banco da pequena praça de esportes, no qual me sentei, estirando as pernas. Tinha a sensação que também as pernas esfriavam e se distanciavam do resto do corpo, como se não mais fizessem parte dele, antecipando-se à grama que ora cercava-me os pés.

Reflexos de histórias passadas, de situações vividas, vinham à tona e se misturavam com a realidade do dia de mormaço. Eram noites quentes que se revezavam com o frio que acompanhavam a rigidez de meu corpo, num desafio entre a vida e a morte. Mas podia ver, ao longe, como numa tela mesclada com vários filmes, mulheres que se aproximavam em danças orgíacas, oferecendo bebidas e sorrindo numa sensualidade mórbida, onde a boca vermelha se aguçava num sangue, que ora escorria derradeiro, como se as mordidas do amor, também fossem as da morte. Ao mesmo tempo em que homens se insinuavam e lambiam suas coxas e seus ventres enquanto prostitutas se aproximavam, misturando taças de champanhe com sugestões sexuais. Talvez meu corpo latejasse de frio e tesão. Talvez o frio que sinta agora seja o medo de aceitar a sexualidade estendida na bandeja, da incapacidade de amar e me relacionar, da infinidade de desejos preteridos e outros engajados em buscas que não eram minhas.

Talvez tenha medo de ajudar aquele rapaz e descobrir em suas vestes, os resquícios das noites dionisíacas, nas quais meu corpo se incendiava e temia descobrir verdades tão ocultas e bem colocadas no rol das intimidades bem aceitas. Talvez tema resgatar esta faculdade de amar, de viver de forma libertina e liberada, de enfrentar a verdade do desapego de meus conceitos, de encontrar nele, aquele que pretendi ser e não fui.

Talvez devesse voltar até a marquise e enfrentar o mormaço do domingo, quem sabe passaria este frio que me enrijece a língua e me impede de falar, como num pesadelo no qual, nos esforçamos em abrir e fechar a boca e o som nunca sai. Quisera ter a coragem de voltar, de encontrá-lo novamente e desafiar o medo que corrói minhas vísceras. Mas se voltar, não será tarde demais? Já passou tanto tempo. Já não existem as noites límpidas, a brisa suave abrigando a testa, o sorriso sincero e a vontade de viver. A vida foi passando assim pálida, assim deslocada da realidade, apenas compartilhando momentos roubados, obscenos, perdidos, alinhados a noites de fúria e medo. Para se tornar plácida, tranquila, morna, insossa, culminando neste mormaço de domingo.

fonte da ilustração: InfoKeywordsCommentsGeo CIMG5050 (2)ee.jpgBy endiku

sábado, julho 25, 2015

PRESO NA IGREJA

Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera.

Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os  que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de quem crê, servem-se destes momentos para dar uma parada em sua vida cotidiana e mergulharem em seu próprio eu.

Talvez tudo não passe de absolutas divagações. Quem pode traduzir os sentimentos, a ideologia ou mensurar a fé ou falta da mesma nos outros? Ou em nós mesmos. Com que instrumentos podemos transformar em estatísticas estes aspectos tão humanos, que são os da dúvida, do medo de duvidar, da confusão de pensamentos, da ciência como autora indômita de nossas resoluções ou aliada a nossas crenças? Não passa de um exercício de adivinhação.

De qualquer forma, estive na igreja, naquele fim de noite com o mesmo objetivo de milhares de pessoas, exercitar a fé, não talvez aquela fé formal moldada pela religião, mas uma fé personalizada, quase única (não deve servir de modelo), mas que em muitas vezes, me traz um acalento à alma que não encontro em outras relações, a não ser via de regra, pela escrita. Esta me faz sonhar, devanear, envolver-me além das fronteiras do pensamento racional e consequentemente me libertar de mim mesmo. Alçar vôos extremos que me permitem alcançar uma amplidão de sentimentos, que me faz rezar, rezar da maneira mais pura, talvez, um reza interior, incitada pela liberação do eu nos meandros do pensamento mais elaborado. A alma fica solta, despudorada, sem subterfúgios nem máscaras, nas regiões descampadas, nas quais o senso comum e a padronização das virtudes e desejos se desfaçam num rol de coisas inúteis, sem valor. Entre a fronteira da ilusão e da liberdade, aí se encontra o meu mundo ou o mundo dos que escrevem e assumem o seu estar, desimpedidos das fronteiras sociais, estas que realmente impedem o pensamento e a reflexão.

Mas, estava lá, num dos últimos bancos, ainda na penumbra, que por minha surpresa, avançava ainda mais, ficando quase em plena escuridão, somente evitada pelas poucas velas acesas no altar. Ajoelhei-me, fiz minhas orações, larguei dissimulado o papel da novena na mesinha, próxima à parede de vidro que separava o hall de entrada do ambiente interno do templo e voltei-me para o banco, desta vez, sentando-me e observando um número reduzido de pessoas que se agrupavam próximas ao altar.
 

Não demorou muito e começaram algumas orações, com as pessoas se ajoelhando em torno do altar. Em sequência, houve inúmeras canções religiosas, todas de uma melodia contrita, invocando o Espírito Santo, os anjos e demais santos da Igreja. Não quis afastar-me assim, repentino, porque havia começado o que me parecia um culto não muito usual, embora fosse da igreja católica. Imaginei uma missa de louvor, mas não havia nenhum dos rituais que confirmassem esta minha convicção. Pela minha ignorância, não percebia que era uma espécie de benção às pessoas que ali estavam, recheada de testemunhos, chegando ao clímax da chamada língua dos anjos.

Então, resolvi quebrar as regras da boa educação e afastar-me, já que não tinha me preparado para participar do ritual, mesmo porque havia outros compromissos e nem deixara nenhum recado em casa. As pessoas me esperavam e eu, nem trouxera o celular. Levantei-me no maior sigilo, esgueirando-me por entre os bancos, evitando fazer qualquer ruído e dirigi-me praticamente na escuridão (porque nos fundos da igreja, a penumbra já era escuridão absoluta) em direção à porta, tateando entre uma mesa no caminho, a parede envidraçada, que separava o hall, o mural de informações, e finalmente uma das portas laterais. Respirei, aliviado. Ali estava minha salvação. A porta. A liberdade, não que estivesse me sentindo mal naquele ambiente tão bem sintonizado com a bondade, a contrição do pensamento, a invocação a Deus. Ao contrário, estava guarnecido por um sentimento de paz e serenidade. Mas um outro lado, o do dia-a-dia, das tarefas por fazer, da rua que me esperava para afastar-me em direção à minha casa, o cumprimento de compromissos, o fato de não poder participar na íntegra do acontecimento e a razão maior, de que o tempo limitado não me deixava saídas, a não ser aquela real, austera, maciça. A porta lateral imensa, pesada, bordada em alto relevo me parecia fechada. Aproximei-me um pouco mais, encontrei a maçaneta que brilhava na penumbra resultante da fronteira entre a parede envidraçada e o hall de entrada.

De lá, ouvia os brados sonoros do padre. Fazia um discurso, que de certa forma apontava pessoas, pessoas que como eu não participavam da missa e eventualmente surgiam nestes momentos de ligação com o infinito, revelando que estavam sedentas de fé e religião. Sentia na pele que o discurso era pra mim. Delírios de quem se encontra num aperto. Mas ele prosseguia, como “aquele senhor ali, quer aproximar-se, receber a benção e apagar de vez a sua vida pregressa?” Claro que não se referia a mim, pois eu continuava preso entre o hall e a porta envidraçada. Girei com força a maçaneta. Já não sentia frio, nem me importava a neblina que se transformava em chuva lá fora. Meu coração palpitava agitado, não mais tranquilo, não mais sereno, não mais em paz. Um suor frio escorria-me pela testa atingindo a gola do blusão de lã, passando pelo colarinho da camisa. A porta não se abria de jeito nenhum. Então, afastei-me, titubeando entre as paredes, tentando atingir a outra porta lateral, pois qualquer uma das duas, fatalmente alcançaria a porta principal, de onde partiria para a rua, em definitivo. Fiz a mesma função anterior e nada. A porta até balançava com meu esforço.

Ouvi passos cujos ruídos aumentavam e estremeci. Alguém percebera o meu interesse em fugir e talvez pensasse que eu não passava de um ladrão forçando a porta. Mas era a porta que dava para a principal, ou seja, para a rua! Voltei-me devagar e espiei para descobrir o meu vigilante. Os passos diminuíam, bem como o discurso do padre.

Agora as orações eram quase em silêncio, cada um falando consigo mesmo, baixinho, cada vez mais baixinho. Encostei-me na parede próxima à porta e observei a pessoa que caminhava em rodeios. Era uma senhora obesa, que devia estar esticando as pernas inchadas e doloridas e nem de interessava pelo meu caso. Estiquei o braço para a maçaneta que cada vez me parecia mais imensa. Inesperadamente, esta porta lateral da esquerda abriu-se com uma suavidade que me encheu de alegria e esperança o coração. Mas, a odisséia prosseguia, porque havia a porta principal e desta, eu não tive a menor dúvida. Havia ferrolhos tão fortes, que eu jamais abriria.

Voltei desolado para o meu lugar, principalmente porque imaginava minha família me procurando, pois não demoraria dez minutos e já se passavam duas horas.

Em dado momento, as pessoas começaram a ser convidadas para a benção. A maioria situava-se bem próxima do altar, diferente de mim e de dois ou três, talvez não tão engajados, que se dispersavam em bancos afastados. Aos poucos, numa canção suave, as pessoas se dirigiam. Uma vela acesa, segura por um dos ajudantes e o sacerdote punha as mãos sobre a cabeça do indivíduo, abençoando-o.

Não era minha intenção participar do evento, da forma que se me dispusera, nem havia pensado em tal hipótese, muito menos sabia que ocorreria àquela hora, naquele dia. Arquitetei milhares tentativas em sair pela sacristia, imaginei saídas mirabolantes, rezar na frente de um santo qualquer do altar e evadir pela porta mais próxima. Ou, aproximar-me sorrateiramente do grupo, fazer algumas orações e aos poucos acessar os arredores da sacristia, talvez em marcha-ré, pé ante pé. Avaliei em cálculos os metros que faltavam e o tempo que levaria para chegar até lá. Quem sabe, aproveitaria o testemunho mais enlevado, o sermão mais enfático ou uma dose de absoluta mansidão, onde os sentidos se tornassem vulneráveis apenas aos sentimentos mais profundos de fé. Sairia assim, cauteloso e seguro de minha precisão.

Claro que nada disso funcionou, até porque, eu não tinha certeza de que após a sacristia, haveria uma porta aberta também. Por isso, aderi ao evento e num último convite, como o homem provavelmente alienado da religião, da fé e dos sentimentos bons, fui chamado para a benção. Obedeci. Lá estava claro, à luz das velas e de algumas artificiais estrategicamente acesas. Não era este o meu primeiro objetivo, mas me senti recompensado, até pelo tempo que considerara perdido. Até pela aflição que passara. As pessoas saiam sorridentes e comovidas. Eu ainda pensava, o que vou explicar em casa? Que fiquei preso na igreja? Quem vai acreditar?

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