Mostrando postagens com marcador ritual. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador ritual. Mostrar todas as postagens

terça-feira, julho 19, 2022

O SEGREDO

Quando avistou a mãe no velho espelho do quarto, pensou que chegara a hora. Olhar enviesado, taciturno. Precisava de coragem, isso sim. Coragem que nunca tivera na vida. Era um fraco, diziam seus irmãos, truculentos e pouco amistosos. A própria mãe se preocupava com aquela passividade que sempre o caracterizara.

Mas, enfim, era chegada a hora. Como contar porém, que à noite, não ia para a casa de amigos, mas apenas circular por vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que havia ouvido de centenas de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e até autores de autoajuda. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a se sentir alguém. Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir. Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, a liberdade vigiada e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, ícones de seus desejos escondidos, produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, o vazio que se instalava no peito, refletia o suor gelado através das roupas grossas de lã, sob a camiseta de algodão, frio de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, inclusive seus irmãos truculentos e fortes, e talvez por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado que o atraía. Olhos passeavam nas sombras agitadas, rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cedera a sua sina.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua brilha desenhando imagens absurdas na praça. Seres que se contorcem no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuram outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos contorcidos pelo inverno, escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, uns aos outros, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seu cofres sem dono. Ladrões de si mesmos, seus destinos curtos, desafiados no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no estourar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir. Que o fazia viver.

Pensou em tudo isso e calou-se, quando a mãe perguntou: – Você é gay?


Ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/banco-de-parque-sentado-assento-338429/omourya

sábado, agosto 19, 2017

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia.

Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se na paisagem velha conhecida.

Luisa esqueceu-os por um momento e ficou também observando as montanhas. Sentia um certo frio, apesar de ser apenas o início do outono, por isso tentava agasalhar-se, vestindo um casaco fino de lã, com uns botões que se fechavam até o pescoço. Deixou-se ficar assim, tentando envolver-se na paisagem bucólica, mas teve um sobressalto, quando um menino loiro correu na direção do fundo do vagão, com a intenção de pegar alguma coisa que lhe havia escapado, fruto de alguma brincadeira.

Luisa tentou descobrir do que se tratava, mas não conseguia ver nada, pois o brinquedo devia ter escorregado para debaixo dos últimos bancos. O barulho chamou a atenção da senhora de lenço azul, pois olhara para trás por alguns minutos. Logo se voltara para o marido e comentara alguma coisa. Os demais pareciam muito envolvidos com seus pensamentos e problemas ou não se interessavam pelo acontecido. Os pais do menino, no entanto um casal que estava na primeira fileira, aos quais Luisa nem percebera, chamaram o menino com severidade. Ele, entretanto, estava agachado entre os últimos bancos, na tentativa de pegar o brinquedo, mas com o balanço do trem, a coisa desembestara para cada vez mais longe, percorrendo cantinhos estranhos e de difícil acesso. O menino não desistia e por isso, escorregou para debaixo do banco, esticando-se e tentando colher o objeto. Luisa, então, levantou-se e sacou uma foto pelo celular. Guardaria aquela cena consigo: um menino romeno procurando o seu brinquedo. O pai levantou-se e encaminhou-se para os fundos, exigindo que ele saísse daquele lugar. Neste momento, Luisa percebeu tratar-se de um cubo mágico. Ele levantou-se com a calça do agasalho empoeirada, mas orgulhoso por ter resgatado o pequeno jogo. Quando passou por Luisa, atrás do pai, sorriu, ao que ela retribuiu. Neste momento, Luisa sentiu uma espécie de conforto, como se a vida se tornasse mais leve, a partir daquela ação do menino.

Luisa ficou observando-os com a sensação de que estava num mundo distante, provavelmente o passado. Era uma jornalista e como tal, tinha ao hábito de observar as pessoas, ouvir as conversas, tal como costumam fazer os escritores. Entretanto, com o passar das horas, tudo aquilo se apagava e ela sentia-se cansada. Esperava chegar cedo à Bucareste, mas sabia que o trem demoraria pelo menos, umas duas horas.

Quando o trem parara na estação de Bucovina, o distrito romeno de Suciava, já da plataforma ela pressentiu o cenário pastoril da região. Sentiu uma estranha vontade de descer ali, misturar-se com aquelas pessoas e descobrir o que faziam. Sabe agora, que deveria ter seguido em frente e alcançar aquelas duas horas que faltava para Bucareste, mas fez tudo ao contrário. Desceu na estação de Bucovina, o que aumentou o tempo de chegada à capital, pois para chegar até lá, era necessário esperar o próximo trem, o que demoraria muito mais do que imaginava. Mas assim, seguiu seu tino jornalístico.

Luisa desceu do trem e espalhou-se entre alguns romenos que pareciam dirigir-se a algum evento muito importante. Na pequena vila, vinham a pé e a maioria era conhecida, e pelo que Luisa conseguia entender, eram conhecidos de muito tempo, desde outras gerações, sendo a maioria vizinhos muito próximos.

Muitas mulheres com lenços na cabeça, vestidas com casacões e alguns homens de gorro de lã e jaquetas pesadas, outros vestidos com menos acessórios, mas bem agasalhados. O frio parecia ser mais intenso devido à região de montanhas. Isto, porém não os impedia de empreenderem conversas bem altas, com muita risada e comentários, que deviam ser relacionados a fatos locais. Por certo, faziam mais sucesso que qualquer publicação em redes sociais.

Luisa percebeu que os vários grupos se dirigiam à igreja ortodoxa, por isso decidiu segui-los um pouco de longe.

Quando todos entraram, ela se estabeleceu ao fundo da igreja e esperou o início do ritual religioso.

Após uma serie de orações e bençãos inerentes à liturgia, Luisa percebeu que o tema principal da cerimônia era a celebração dos vivos e dos mortos, os parentes dos que participavam da cerimônia. Eles recordavam os seus mortos e manifestavam muito mais do que um sofrimento contido, uma espécie de alegria, relembrando frases, expressões ou desejos dos falecidos.

A surpresa para Luisa, entretanto, não parava por aí, porque eles se afastaram da igreja logo após terminar o culto e dirigiram-se para um pequeno cemitério, ali perto, onde conversavam muito e riam e contavam fatos relacionados com os parentes que ali estavam sepultados. Em seguida, estendiam toalhas sobre os túmulos, abriam cestas e serviam sanduíches organizando um piquenique naquele cenário. Todos lembravam os parentes com ternura, algum sofrimento misturado à alegria, mas principalmente a necessidade de trazer à tona a personalidade do indivíduo, como se ainda estivesse entre eles. Conversavam alto e brindavam à vida.

Luisa conversou com um e outro, mais por mímica do que pela fala, pois não falavam inglês, embora como o seu idioma seja latino, arriscava uma frase ou outra e até mesmo algumas expressões conhecidas.

Agora, sentada próxima à janela, observando a paisagem próxima a Bucareste, lembrava dessas imagens e sentia-se recompensada, como se houvesse encontrado pessoas em plenitude de vida, devido à integridade de pensamento, manifestando a liberdade de ser apenas. Sem máscaras.

Ela gostaria tanto de andar pela bela Bucareste, dirigir a bicicleta às margens do rio, passar pelo pomposo prédio do Parlamento e chegar ao Carol Park, desfrutando a harmonia e o sossego das árvores. Sabia, no entanto, que o povo e suas tradições lhe haviam proporcionado uma vertente que indicava alguma coisa no horizonte, que sabia um dia poder alcançar. E ela nem tinha conhecido o castelo e o túmulo de Vlad, pensou sorrindo.

sábado, janeiro 09, 2016

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.

Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.

Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.

O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.

Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.

Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.

Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.

Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.

sábado, outubro 24, 2015

A casa caiada de branco

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também.

A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos.

Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações.

Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio.

Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta.

A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas.

Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada.

Começaram os cânticos. Minha mãe apertava a minha mão, com força. A vizinha se apresentara, participando ativamente dos procedimentos religiosos.

Eu me afastei uns passos, saindo lentamente do círculo que rezava e cantava e aproximei-me de uma porta que dava para um corredor imenso, de ladrilhos em preto e branco. Havia cruzes, desenhos estranhos de giz, no piso. Eu os apagava rapidamente, com os pés. Pulava sobre eles, ultrapassando-os, como se jogasse amarelinha, até chegar a última peça da casa e levei um susto, ao ver um homem numa cadeira de rodas, que acenava negativamente a cabeça. Nas pernas, um cobertor leve, na cabeça poucos cabelos enfeitavam a careca, os olhos fundos.

Fiquei paralisado, na última porta, com aquele olhar incisivo, censurando a minha atitude. Ele falou alguma coisa inaudível, acho que pediu água. Sem entender muito bem, aproximei-me do filtro de cerâmica, abri a torneira, enchei o copo que entornou sobre as mãos.

Aproximei-me e entreguei, indagando com o olhar. Ele segurou o copo com as mãos trêmulas, levou-o à boca e pediu que eu sentasse, ali perto, no banco que estava ao seu lado. Fiquei quieto, acomodado no canto. Não ousava aproximar-me, mas temia afastar-me. Sabia que havia alguma coisa que eu precisava saber, que não poderia deixar passar, como uma oportunidade de convivência insuperável.

Então, ele falou. Voz trêmula, lábios umedecidos pela água, que escorria no canto da boca, como um visgo de lesma.

– É a morte. Não me deixe aqui sozinho. Esta é a verdadeira morte.

Tive náusea da boca visguenta. Mas foi só por um momento. Sorri, tentando ser amável. Peguei-lhe o copo da mão, coloquei-o sobre a mesa e perguntei se não queria mais água. Não me respondeu. Ficou ali, parado, me olhando, querendo dizer coisas que não conseguia explicar. Ou talvez, quisesse apenas ouvir-me.

As cantorias da casa ficavam mais intensas. Senti-me atraído por elas. Um cheiro de incenso inundava o ambiente, enchendo o corredor de fumaça. Tambores anunciavam um ritual mais dramático. Meu coração batia forte.

Afastei-me um pouco, voltei-me para ele, a cabeça pendia. Devia dormir.

Na porta, ainda apaguei mais alguns símbolos. Corri corredor à fora, na tentativa de não perder nem uma cena.

Ao chegar na sala, ainda na penumbra, observei as pessoas sacolejando o corpo, acompanhando o ritmo. A vizinha girava sem parar no meio do grupo.

Aproximei-me de minha mãe que perguntava onde eu havia andado.

Não respondei. Arregalei mais os olhos, agora, hipnotizado. A vizinha continuava girando, sem parar, gritando frases desconexas, pedindo bebidas, fumando charuto e de repente, num grito abafado, quase sussurro, desaba no chão. Imediatamente tapam-lhe o rosto com um pano preto e um risco de pólvora é aceso ao seu redor, enquanto os atabaques funcionam com fúria e as pessoas cantam incessantemente, quase gritos.

Em casa, ouvi os gritos de minha mãe, não preocupada com o que presenciara, nem com a vizinha, nem com o ritual, mas com o meu próprio, que organizara.

A boneca de minha irmã incendiava, enquanto cantava canções tão parecidas com aquela que ouvira naquela tarde.

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS