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terça-feira, agosto 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 19º CAPÍTULO

Capítulo 19

Rosa depõe na polícia e confessa que tentara matar Ana porque achava que ela sabia que Paulo usara o carro do médico na noite do crime.

Para o delegado Borba, não há mais dúvidas de que o rapaz é o verdadeiro assassino de Taís, já que foi comprovado de que ele estava no local do crime e Rosa praticamente o acusou, na tentativa de defendê-lo.

Parece enfim, que todas as peças se encaixam e que o verdadeiro culpado é mesmo o mecânico. Afinal, ele era namorado de Taís, tinha muitos ciúmes e segundo a própria Rosa, certa vez, ele a tinha ameaçado de morte, após uma briga calorosa. Com o passar do tempo, no entanto, as coisas haviam se acalmado e cada um do seu lado, foi tocando a própria vida.

O problema, segundo Rosa, é que ele a havia encontrado algumas vezes e Taís, leviana que era, estava novamente tendo um caso com o antigo namorado.

Ela era muito ligada ao o grupo de Ana, onde conseguia as drogas que utilizava, embora a menina mais jovem fosse a mais arisca e não se envolvesse tanto com os demais. Não gostava da presença de Taís e seus encontros se davam apenas com os amigos mais chegados, que constituía um grupo de quatro pessoas.

Eram Miguel, o mais velho que devia ter uns 21 anos, Henrique, o ruivo, quase adolescente, Carlos, o filho do prefeito, que segundo os comentários era o que organizava os luais à beira do rio, com muita droga e verdadeiras orgias sexuais, festas estas em que Taís muitas vezes, participava, além de uma garota de programa que vinha de vez em quando da Capital para incrementar as festas. Todos na cidade sabiam, mas como eram de famílias importantes, faziam vistas grossas. Apenas Ana era uma desgarrada no mundo. Vivia praticamente sozinha, morando com um tio bêbado que nem sabia de sua existência.

No dia seguinte, quando Paulo chegou na rodoviária, a polícia já o esperava. Preso, ele só fazia negar o crime e chorar como uma criança.

Enfim, tudo estava resolvido. O crime da jovem Taís solucionado. Agora Júlio finalmente decidiria se permaneceria na cidade por mais algum tempo. Talvez retomasse as terras onde seus pais moravam, nos quais não havia mais nenhuma residência e o mato selvagem já tomava conta de tudo. Quem sabe construiria uma casa e moraria em definitivo na cidade. Escreveria a sua biografia ou não. Quem sabe criaria outras histórias de ficção ou descreveria casos que já passaram por suas mãos. Eram alternativas que poderia utilizar. Estava cheio de planos e isso era bom. Sentia-se feliz em estar de volta à ativa, o que liberava uma certa euforia em sua mente, dando-lhe vontade de fazer coisas novas, de tomar outros rumos.

Porém, as coisas estavam tão claras e se encaixavam tão adequadamente nos rumos do caso, que lhe despertavam algumas dúvidas.

Primeiramente, o pai sofrido, odiando o médico que enganara a sua filha, uma moça humilde de cidade pequena que fora iludida por um jovem esperto da cidade, que lhe oferecera mundos e fundos, apenas com a finalidade de seduzi-la. Isso era tão clichê que parecia coisa de novela de rádio dos anos 60.

Aos poucos, porém, foi se descobrindo que a menina tão recatada e simples, não passava de uma jovem que participava de festinhas regadas a drogas e muito sexo. Pelo menos, foi o que foi parar no depoimento do delegado e até agora ninguém decidiu desmentir, nem mesmo o pai, que se mantém em silêncio.

Em seguida, o contato foi com o médico, o suposto assassino, que havia namorado a moça e que decidira matá-la para não atrapalhar seus negócios com a família da noiva na capital.

Agora já era uma história meio dramalhão de tv, porém com uma história mais plausível, apesar de simplória demais. O povo daquela cidade tinha muita imaginação.

Com o interrogatório, percebeu-se que era um jovem assustado com a situação e que a moça que se dizia assediada, era ao contrário, quem o perseguia. Segundo ele, não lhe faria mal algum, mas a odiava, a ponto de não querer qualquer aproximação com ela. Tudo era possível, a partir dessa constatação.

A seguir, surgiu Ana, a menina que observava tudo, que ouvira o grito e presenciara alguma coisa surgir nas águas correntes do rio. Chamara ajuda dos amigos e descobrira que havia sido uma tragédia. Também vira o carro do médico pelas redondezas e por isso, o acusara e a história fora parar nas ruas até chegar às autoridades competentes. Azar para o médico Ricardo Silveira, que não tinha um álibi para não ser incriminado.

Mais tarde, foi a vez de Rosa, a mulher que tentava proteger o rapaz que mora em seu apartamento alugado, que para os habitantes da cidade, não passa de seu amante.

Um caso estranho de se entender. Tanto o quis proteger, que acabou acusando-o, pensando que Ana soubesse que ele estava com o carro do médico, na noite do crime, ali, pelas proximidades. Sendo assim, quem estava no carro que Ana vira, quem morria de ciúmes pela antiga namorada e que seria capaz de matá-la, era o mecânico.

Tudo então parecia ter chegado a um termo, à medida de que se descobrira quem era o assassino. O tal de Paulo.Na verdade, pouco se conhecia dele e o pouco que falava era para negar que a tivesse matado. Dizia-se inocente, mas todas as provas estavam contra ele, inclusive o depoimento de Rosa.

Júlio, insatisfeito com o desfecho da situação, dirigiu-se ao delegado Borba, tentando um encontro com Paulo, na prisão. A princípio, foi-lhe negado. Não havia motivo para interrogatório. A polícia já estava ciente de tudo e tinha feito a sua investigação completa. Mas, com certa habilidade, Júlio convenceu o delegado a fazer uma única visita, nada oficial, para que pudesse conversar com o homem.

Depois de algumas recusas, ocorreu finalmente a concessão ao pedido.

Paulo era um homem de estatura baixa, atarracada, com braços que aparentavam força e energia. Segundo os comentários, costumava exercer o trabalho exaustivo na oficina com esmero e muita disposição.

Tinha uma fisionomia apagada, um olhar parvo e desligado. A boca ficava entreaberta e suas mãos estavam sempre se contorcendo, como se precisasse aquecê-las ininterruptamente.

Júlio aproximou-se e sentou-se à mesa, a sua frente. Estavam sozinhos na sala, embora houvesse uma janela de vidro para a peça ao lado, de onde era possível observá-los.

O delegado Borba parecia enfadado. Aproveitou a conversa para retirar-se e fumar um cigarro à beira da calçada, observando os transeuntes.

Nenhum dos dois policiais que restavam interessou-se pela conversa e, ocupados em seus objetivos pessoais, nem passavam por ali. Para eles, o caso estava resolvido. Era só frescura de detetive particular, com mania de protagonista de filme policial. Nem se preocupavam com os demais casos de assassinatos por aplicação em dose errada de insulina, pois estavam arquivados e não havia mais nada a fazer.

Júlio tomou um copo de água e serviu outro para Paulo. Este aceitou e abaixou imediatamente a cabeça, pensativo. Vez que outra, levantava a cabeça e olhava enviesado para a vidraça, como se perguntasse a si mesmo o que estava fazendo ali. Júlio então, começou a interrogá-lo.

– Paulo, sei que a sua situação não é das melhores, mas há coisas que ainda não foram bem elucidadas. Me refiro a coisas que não ficaram bem claras, entende?

– Não, não entendo nada. Só sei que estão me acusando por um crime que não cometi. Eu sou inocente, delegado, não tenho nada a ver com isso.

– Olhe, me chame de detetive. Eu não sou delegado e nem trabalho aqui nesta delegacia.

— Mas então, por que está me interrogando? Eu não quero ficar aqui, quero que chame os policiais, quero ir pra minha cela.

— Espere, Paulo, se acalme. Eu sou um detetive particular contratado por Lucas, o pai de Taís e não estou aqui para julgar ninguém. Só quero a verdade. Eu não o acusei de nada, por enquanto.Talvez até com este interrogatório, eu o ajude. Você não acha que foi tudo muito rápido? A solução para o problema foi a sua acusação. Não estou dizendo que você é inocente, mas precisamos averiguar mais. Fazer mais investigações.

— Eu já lhe disse que sou inocente!

— Então, que tal conversarmos sobre isso. Você tem que ser absolutamente sincero comigo. Tem que me dizer a verdade, se quiser que eu o ajude.

— Mas o senhor não é meu advogado, eu nem tenho advogado. O senhor é contratado pelo farmacêutico, só quer me ferrar!

— Não é nada disso, Paulo. Eu quero a verdade. Mas não posso obrigá-lo. Se você não quiser se abrir comigo, não posso fazer nada. Você é quem decide, mas tenha certeza de uma coisa, não há muita chance para você. As coisas se ajustaram perfeitamente com a sua prisão.

Paulo o fita intrigado. Fica em silêncio alguns segundos, depois volta a abaixar a cabeça e resmunga: — O que o senhor quer de mim?

— Ótimo, Paulo. Fazer umas perguntas muito claras. Vamos começar do início. Me diga com sinceridade, qual é a sua relação com Rosa?

— Meu Deus, o que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Aparentemente, nada. No fundo, tem muito a ver. Nós podemos fazer o perfil de uma pessoa através da estrutura de sua personalidade e descobrir, inclusive se ela é capaz de cometer um crime ou não. Um relacionamento afetivo, o envolvimento familiar atribuem traços à personalidade de uma pessoa. Você me entende?

Ele não responde, mas concorda com um aceno de cabeça.

– Pois então, para isso, é preciso que se conheça bem a pessoa. E olhe, eu não sou psicólogo, nada disso. Mas anos de experiência e alguns estudos periféricos me possibilitaram a conhecer bem o ser humano - faz uma pausa para que ele absorva tudo o que dissera, enquanto o observa detidamente. Paulo não levanta os olhos. Para de contorcer as mãos e deixa-as sobre a mesa, fixando-as, como se pudesse rever nelas o seu trabalho, a sua atividade, agora truncada. As unhas enegrecidas revelam a atividade descuidada.

Júlio continua - por isso, eu volto a perguntar: você tinha uma relação mais intima com Rosa?

Paulo suspira e ainda sem levantar os olhos, exclama de uma maneira quase infantil: — Rosa é a minha mãezinha! Ela me ajuda, me protege, me alimenta, me dá casa pra eu morar.

– Como assim? Você trabalha, paga aluguel pra ela, não é isso?

– Sim, mas é outra coisa. Eu procurei a minha vida inteira por minha mãe, sempre me disseram que ela era daqui, desta cidade, mas nunca a encontrei. Rosa então me apoiou, me ajudou a sobreviver.

– Só isso?

– E você acha pouco? Ela foi a única pessoa que me olhou como gente, que não se afastou quando eu procurei – e prossegue, emocionado – a única pessoa que ouviu e me entendeu.

— Fora isso, profissionalmente falando, ela aluga um quarto para você.

– Sim.

– E qual é o apoio que ela lhe dá? – tenta colocá-lo em conflito.

– Eu já disse, ela cuida das minhas coisas, ela me protege, me deu abrigo quando precisei, é isso! Não basta pra você? Não basta pra todo mundo? Ninguém entende, não é? Ninguém entende quando alguém faz um bem pra gente! - fica agitado, agora mexendo as mãos, passando-as pelo cabelo e cobrindo o rosto, quase em desespero.

Júlio dá uma leve batidinha em seu braço e pede que se acalme. Sorri amistoso e percebe que pela primeira vez, Paulo o encara. Por fim, respira com sofreguidão, mas aos poucos volta ao normal. Júlio aguarda um pouco que se restabeleça para voltar à carga.

– Eu entendo mais do que você imagina, Paulo. Sei o quanto esta mulher o ajudou e o quanto você a preza. Não fique molestado pelo que eu disse, apenas ouça e tente também entender as minhas perguntas. Como lhe disse, é preciso analisar o perfil das pessoas. É preciso entender as suas atitudes com profundidade, caso contrário não chegamos a lugar nenhum.

Um pouco mais calmo, Paulo pousa as mãos sobre as pernas, que se agitam intermitentes. Júlio prossegue o interrogatório, como se fizesse uma análise terapêutica.

– Então me diga, de acordo com o que você me descreveu sobre o seu reconhecimento do valor de Rosa, sobre o carinho que tem por ela, você seria capaz de fazer qualquer coisa para defendê-la, para ajudá-la. Afinal, ela é a sua protetora, a sua amiga, a sua – faz uma pausa providencial – como voce diz, a sua mãezinha.

–Sim, eu faria tudo por ela e ela por mim. Ela tentou me defender. Ela sabe que eu não matei ninguém.Ela só disse aquilo porque ficou puta da cara com a menina, que andou espalhando que eu estava com o carro do doutor, Claro que ia sobrar pra mim, não ia? A corda rebenta sempre na parte mais fraca, não é assim que acontece, detetive?

— Nem sempre, Paulo. Ao menos que a verdade não apareça. É preciso que haja justiça. Mas me explique, se Rosa o ajuda tanto, por que você está aqui? – a cartada que esperava.

Paulo entretanto possui outra lógica e responde rápido, embora um pouco confuso: — Porque ninguém acredita em mim, precisam de um culpado.

Júlio decide ser mais incisivo e argumenta: — Nem Rosa acreditou em você. Ela desconfiou tanto, que como você usou o carro do médico, ela pensou que você teria matado a moça para por a culpa no rapaz.
— Isso é o que tentaram atribuir a ela. eu já expliquei, que ela ficou furiosa com a Ana. Ela só pensou em me ajudar, em me defender - e fica se repetindo várias vezes. Júlio o interrompe, enérgico.

— Esta bem, não fique nervoso. Como você disse, você seria capaz de fazer tudo por ela.

— Eu já disse. tudo!Tudo! Quer me enlouquecer?

— Até matar?

— Eu não matei ninguém, foi uma cilada que vocês armaram.

—Mas você mataria por Rosa, pela mulher que você ama!

— Mataria!

— Então você confessa que a ama, Paulo.

— Você esta me confundindo, eu não quero mais esta conversa!

Tenta levantar-se, mas Júlio o impede, segurando-o firmemente pelo braço. Pede que sente, insiste em dizer-lhe que quer ajudá-lo, que precisa enfrentar a situação. Afinal, se é inocente, não perde nada em responder as suas perguntas, ao contrário, poderá haver uma saída, até uma possibilidade de atenuação da pena. Aos poucos, Paulo parece entender a proposta e volta a sentar-se. Júlio prossegue.

— Está bem, não vamos mais falar em Rosa. Fique tranquilo. Se é um assunto que o deixa chateado, não quero aumentar ainda mais o seu sofrimento. Mas preciso saber algumas coisas em relação à Taís, afinal ela foi sua namorada. Quero que você me fale do grupo que ela participava, com o qual fazia as festinhas na ponte. Você conhece esse pessoal?

Ele responde imediatamente, como se o tema sugerisse pessoas que ele detestava e por isso, tinha prazer em denunciá-los.

— Sim, são gente muito baixa, todos drogados, metidos com traficantes, vagabundos. A Rosa tinha horror daquela gente.

— O que sabe deles?

— Todos são uns marginais, uns pederastas, só se salva o ruivo…

— Ruivo?

— É, o Henrique, ele está sempre com medo de tudo, ele só vai porque não consegue sair do círculo vicioso, como traficou drogas, tem medo, eles podem acabar com ele. O cara é um adolescente, tá na pior.

— E acha que neste caso, eles podem ter culpa no cartório?

— Não sei, só sei que naquele dia, eles estavam numa festa muito grande, uma verdadeira orgia, ninguém era de ninguém, rolava droga, cocaína, crack, tudo que você possa imaginar, além de muito sexo!

—Como sabe? Por acaso, você os estava espiando do carro do médico? Agora todos já sabem, por que você não me conta?

Contar o quê, detetive? Em que enrascada o senhor quer me meter?

— Pelo contrário, quero que você saia da enrascada em que se meteu. Quero que me diga, que você assistiu a festa que tanto reprova, que você viu Tais participar, que eles a obrigaram a alguma coisa, não foi isso? Por que você não conta?

— Eu não sei, não sei de nada.

— Mas você pode se livrar da prisão se a gente imputar alguma suspeita a eles, se você contar o que eles fizeram. Eles mataram Taís, eles a obrigaram a ingerir drogas pesadas, a beber muito, a fazer sexo, você viu tudo, você talvez tenha até se masturbado…

— Pare com isso! Pelo amor de Deus, pare com isso! - neste momento, Paulo parecia no auge do desespero. Entretanto, não conseguia livrar-se das imagens que Júlio realçava, como se acontecessem ali, naquele momento, na frente de sua retina. Suas mãos tremem, seu corpo todo treme, sua voz falha.

— Então é verdade, você se masturbou dentro do carro.

— Eu já tinha saído. Eu não faria uma coisa dessas, não sou um depravado. Vivo com minha mãezinha, a mulher que me ajuda, que me consola, que me leva a igreja, uma mulher que professa a fé, que não suporta o pecado!

— Mas você se masturbou, Paulo. Encontramos esperma no carro do médico e fizemos o exame de DNA e consta como seu! Você não pode negar, Paulo. Isso depôs contra você. Não sei se você sabia, mas isso comprovou que você estava lá, não foi só a palavra de Rosa, foi a prova cabal de sua presença! Depois disso, foi um passo para a acusação, ainda mais com o depoimento de Rosa. Para a polícia, você se masturbou vendo a moça e como ela o repeliu, você a matou. Mas nós sabemos que você só presenciou a cena, não é mesmo?

— Por favor, eu não sou um louco, eu não queria assistir aquela atrocidade.

— Então eles mataram Tais? Eles a empurraram? Quem foi? MIguel, Henrique, Carlos, o filho do prefeito, a garota de programa que vinha ilustrar o lual ou a própria Ana? Quem a matou? Ou foram todos juntos?

— Não, não, não foram eles! Não foi ninguém! Não foi nenhum deles. Estavam drogados demais para fazerem qualquer coisa, não se sustentavam nem nas pernas. Não foram eles, eu juro!

— Então a acusação recai sobre você. Você é o assassino! Você matou uma moça indefesa, que foi sua namorada, uma moça frágil que foi empurrada covardemente para o fundo do rio. Que mal ela fez a você, afinal? Deixou-o por outro? Que importava isso? Há centenas de moças que gostariam de namorar você, de se apaixonarem por você. Por que você fez este ato covarde, Paulo?

— Ela era leviana, fraca, andava com todo mundo, ela me jogou na lama.

— Por isso a matou!Você matou uma pessoa inocente, uma jovem cheia de vida, que deixou um pai em sofrimento absoluto. Que deixou uma cidade toda odiando você! Você é um assassino, Paulo!

— Não fui eu! Não fui eu! Foi Rosa! Rosa!

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

domingo, outubro 11, 2015

A PALESTRA

Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto.

O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra. Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de malabarista, temendo aumentar o ruído. Ajeitei-me na cadeira. Aquietei-me. Só por fora. Coração alertava, espaldando-se dentro do peito, batucando que nem índio em dia de festa. Estava pálido, acho que até os lábios embranqueceram. Era desafio grande ficar ali, atrasado, danoso, inoportuno.

O mestre recomeçou. Tentei prestar a atenção, mas os pensamentos se confundiam e se misturavam na minha mente, fazendo um entrelaçado de imagens que eu não conseguia sintonizar. Respirei fundo, imaginando o ar inspirado invadir o cérebro e limpar de vez as teias de aranha, há tempo engendradas, ocupando espaços indevidos. Expirei com força para fora, expelindo o negativo, numa nuvem preta, maciça, intensa. Foi um som tão forte e inesperado, até por mim, que o homem parou novamente, desta vez assustado, talvez pensando que eu estava passando mal. Pedi desculpas, expliquei que estava tentando relaxar, me concentrar para entender bem a palestra, mas o som saiu assim forte, assim intenso, assim inesperado que até eu me arrepiei. Parecia espírito do além.

O palestrante era baixinho, agora reparava bem. Foi bom falar, esvaziei um pouco a ansiedade. Tanto que pude observar as coisas, até o jeito dele. Nariz adunco, boca grande, lábios finos e olhos pequenos, salientes, caídos das órbitas sob uns óculos leves, na ponta do nariz. O cabelo, entradas enormes, clareiras imensas na floresta rala de pelos alinhados para trás. A voz era forte, gutural, enérgica. Falava em... em que mesmo? Ah, inserção de valores. Como assim? Natureza morta? Seria sobre arte, pintura, ecologia? Nada disso, o assunto versava sobre política, mas tudo é política. Até o ar que respiramos está atracado à política. A água, cada vez mais rara. E o tratado de Quioto?

Faltava-me ar, naquele momento. Pensar nisso me dava aflição. Até alergia. Pior, comecei a fungar. Fungar baixinho, pigarreando de leve, tentando conter o espirro. Parecia cacoete, mas sempre que alguma coisa me incomodava, vinha aquela cosquinha irritante na garganta, aquele arder nos olhos, uma tosse iniciante decidida a permanecer ou um monte de espirros magistrais, exagerados, exorbitantes. Respirei fundo novamente, mas desta vez, sem nenhuma técnica para não acordar a plateia. Mas alguma coisa me irritava, porque o nariz coçava, a tossesinha surgia no fundo da garganta, aparecendo desanimada no início. Eu, evitando o pior. Se me desse conta o que me fazia mal, cessava definitivamente a alergia. Mas eu ainda não sabia o que era. Olhei para alguns participantes que estavam mais próximos, eu na cadeira, no corredor do meio. Ao me lado, fileira de dois de um lado, e no outro, outras duas alas totalmente preenchidas. Um rapaz negro do meu lado, uma tarja na testa, segurando os cabelos. Olhar compenetrado, jeito estudado de intelectual, postura adequada, pernas esticadas, mãos nas coxas, como esperando a apoteose final, o confronto das ideias, o debate, a resposta definitiva. Ao seu lado, uma moça, cara de estudante, óculos pesados sobre o nariz arrebitado, boca entreaberta mastigando vez que outra um lápis com o qual devia fazer anotações. Cabelos castanhos, luzes, soltos sobre os ombros, mãos finas e pequenas, unhas pintadas de rosa. No chão uma mochila gorda, cheia de penduricalhos, inclusive um chaveiro com um ursinho na ponta.

Parei de examinar a plateia, porque ouvi um hã hã de censura, do senhor que estava ao meu lado, sentindo-se incomodado pela minha cabeça virada em sua direção, nariz quase colado no dele, o qual nem tinha percebido. Tinha um bigodão, desses de contornar lábios, quase se juntar na testa, olhar aguçado, perspicaz, interessado. No colo, um laptop, conectado à Internet. O reflexo não me deixava ver, mas eu jurava que era um chat em que participava, dissimulado, aparentemente anotando informações. Então resolvi perguntar: –quem é ele? – apontei para o palestrante.

O homem parecia ter sido atingido por um bombardeio no Líbano. Sacudiu o bigode, mexendo a boca, aflito. Olhou-me com censura. Foi falar alguma coisa. Mas espirrei. Espirrei uma, duas vezes, três, inúmeras vezes e um muco insistente corria-me do nariz à boca, misturando-se ao queixo e eu passando as costas da mão, desolado.

O orador interrompeu a palestra mais uma vez. Ia pedir para eu afastar-me, tentar melhorar lá fora, talvez depois voltar, mas não lhe dei o prazer de dizer-me tudo isso.

Levantei-me, fiz um gesto explicando a alergia, um aceno qualquer, nem precisava e ia afastar-me, empurrando a cadeira devagar. Nisso, o bigodudo afirmou: – é um candidato. Está fazendo campanha. Nós somos seus correligionários, entende?

Ele foi generoso e paciente. Talvez quisesse a minha aprovação. Mas agora, eu tinha entendido o motivo da minha alergia. Puxei a ponta da camisa e assoei o nariz, com náusea. E me fui.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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