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quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

terça-feira, março 15, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XX

HOJE TERÇA-FEIRA 15/03/2016 PROSSEGUE NOSSO FOLHETIM RASGADO, COM MAIS REVELAÇÕES. QUEM SERÁ O HOMEM QUE ÚRSULA VÊ NA JANELA DE SEU APARTAMENTO? ESTA E OUTRAS RESPOSTAS ESTÃO NO 20º CAPÍTULO A SEGUIR.

Capítulo 20

Imagine, Dulcina, que não entendia o que acontecia naquele cenário clean, preparado ao gosto antisséptico de meu irmão. Ele tinha o controle de tudo, de quem conhece todos os segredos, de quem possui todas as chaves, todas as respostas.

Ele olhou-nos a mim e a Susana como se fôssemos seres de outro planeta. Eu, porque estava velha e acabada, ela porque era uma estranha no ninho, embora, com o passar do tempo, percebemos que não era tão estranha assim.

O teatro foi planejado com muita competência. Imagine que Roberta Célia estava lá, sentada a minha frente, e ele sabe que a odeio. Além disso, teve a desfaçatez de dizer que sempre sonhou que nos tornássemos amigas, algum dia! Eu tive vontade de virar aquela mesa com vasos e lírios e tudo o mais que tinha em cima. Não fiz nada, me controlei como pude. Para ele, o que menos interessava naquele momento era o falecido, que jazia no salão enorme somente guarnecido por empregados regiamente pagos com a fortuna que ajudou a construir, tenha certeza.

Era apenas o fio condutor de toda a trama, o protagonista da urdidura magistralmente arquitetada. Inclusive, fez um discurso emocionado sobre a convivência de cada um dos presentes com Brian. Por fim, ele desferiu o último golpe, manipulando cuidadosamente os fios, sem qualquer constrangimento. Foi neste momento, que se dirigiu à Susana: inclusive você, Susana. Por isso está aqui e tem o direito de saber quem é.

Não houve vivente que não se voltasse imediatamente para ela, como se estivesse envolvida numa trapaça indefensável. Falavam entre si, tecendo comentários, indagando-se uns aos outros do que se tratava. Eu percebi que até os funcionários mais chegados, que vieram com Carlos do exterior, manifestavam-se. Parecia que uma catástrofe se abatia entre nós. Até a maldita da Roberta Célia perguntou alguma coisa ao advogado. Este mantinha-se quieto, com certo ar de desdém, como se também ele tivesse sua própria opinião sobre o caso.

Ao ver Susana vermelha, sem saber o que dizer, perguntei-lhe de imediato, curiosa e intrigada com a situação. Na verdade, estava tão indecisa quanto ela. Vi os olhos frios de Roberta Célia me alfinetando com uma fúria desconhecida. Carmem silenciara após uma reprimenda ao namorado.

– Como assim? Eu nunca o vi, antes.

Carlos foi convincente. – Você viu, sim. Você conviveu com ele, em mais de uma oportunidade, tanto no hospital, quanto... bem, no apartamento, você não chegou a visitá-lo, pelo que eu saiba.

– No hospital?

– Quer que eu refresque a sua memória, Susana? – Roberta Célia perguntou, irônica.

Não contive a raiva: – o que esta megera tem a ver com isso?

– Quando seu pai estava internado naquela clínica, Brian também havia se hospitalizado, na mesma época. Ele voltou para casa dentro de uma semana, mas seu pai, sinto muito – meu irmão encerrou num hiato. Susana gritou, arrebatada, antes de se afastar rapidamente da sala.

– Agora entendo onde vocês querem chegar. Foi tudo arranjado.

– Susana, minha querida, volte aqui. Espere, eu vou com você.

Carlos aproximou-se e segurou-me o braço.

– Deixe-a minha irmã. Não temos nada com a dor dela. Ela se consome aos poucos. É seu fado, seu destino.

– O que vocês querem com ela, seus miseráveis? Que palhaçada é esta? Quem é este Brian que depois de morto quer nos destruir a todos?

–Vá até a sala, minha irmã. Olhe o homem que está lá. Veja com seus próprios olhos e depois me diga, se não o conhece.

Desvencilhei o braço com raiva. Chamei por Susana, mas ela descia as escadas tão rapidamente, que não consegui alcançá-la.

Aproximei-me do caixão, ante o olhar disperso dos funcionários que velavam o corpo. Não consegui refrear o espanto. Minha voz elevou-se sonora e atormentada.

– Meus Deus! É o velho! O velho assassino! O que ele está fazendo aqui?

Carlos já estava ao meu lado, pousando delicado a mão sobre meu ombro.

– Ele nunca foi assassino. Brian era um doce de criatura. Era um anjo.

– Eu sei, ele matou a esposa e a emparedou.

– Não seja boba. A doença de Brian o deixava alucinado. Tudo que ele via ou lia, tal como filmes ou romances, ele creditava a si próprio. Brian nunca foi casado, nem teve filhos.

– Mas e Gustavo? Ele falava de Gustavo, o filho. Ele tinha remorsos.

– Era uma das histórias que havia lido e adotado como suas. Era um homem bom minha irmã e você esteve tão próxima a ele.

–E por que você não me contou?

– Não tive coragem de lhe pedir nada. Afinal, você me culpava por não ter comparecido ao enterro de seu filho, não era justo que eu pedisse qualquer coisa pelo Brian.

– Mas você esteve ali, com ele?

– Nunca. Apenas pagava profissionais para cuidarem dele, até o fim. Agora, você já sabe, porque o conhecia.

– Por que ali, meu Deus, defronte a minha ao meu apartamento?

– Há coisas que não se explicam minha irmã, como nos folhetins baratos. Ou melhor, tem uma explicação sim, se lhe interessa. Brian morava naquele bairro, aliás, eu o conheci, numa das poucas visitas que lhe fiz. Então, nada mais digno do que encontrar um lugar próximo onde ele sempre viveu.

– E Susana, por que você a humilhou desta maneira?

– Não, você esta enganada. Apenas eu queria que todos soubessem que convidei as pessoas que conviveram com Brian de alguma maneira, mesmo que à distância, como você.

– Que coisa absurda, irracional. E ainda traz aquela zinha para nos azucrinar. Sabe que ela esta fazendo chantagem com Susana?

– Não me envolvo nestes assuntos, minha irmã. Mas voltemos, a reunião está no final e não quero perturbar ainda mais o Brian com esta conversa sem sentido. Vamos?

–Vou pra minha casa. Vou atrás da minha amiga, não vou deixá-la sozinha neste momento difícil. Vocês armaram uma arapuca, pois que se prendam sozinhos nela.

–Você é uma ingrata, Úrsula.

–E você é um palerma. Infelizmente, não passa disso!

quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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