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segunda-feira, setembro 27, 2021

O lado bizarro da alegria

O poeta tinge de cores fortes o que produz a mente, o escritor descreve o que seu sentimento aviva, enternece, destrói. Usa da palavra como adaga, faca afiada que lhe corta de modo cirúrgico a dor mais profunda, que o dilacera e o fragmenta. Não é possível falar de modo prosaico das cores primaveris, dos sorrisos das crianças que se enfeitam entre jardins e esquinas, dos jovens que se encontram, quando a máscara serve de anteparo à dor, à morte, ao medo. Não é possível a mesmice da alegria das borboletas, quando uma sombra obscura tolda o horizonte, por mais otimistas sejamos, por mais que tentemos ser felizes e descolados da realidade.
Mas eis que está aí, ante nossos olhos e corações e ao termos empatia, sentimos tão forte a dor, que nos encolhe e desaparece qualquer beleza primaveril. Dizem que o poeta é melancólico? Que o escritor é pessimista? Mas o que é a natureza, se não a humanidade que a compõe? O vírus faz parte da natureza. Os vermes e bactérias também. O mundo subterrâneo e destrutivo desencadeador de terremotos e tsunamis, também. Ou não são os raios, as tempestades, alagamentos e nevascas, elementos estruturais da natureza?
Dói presenciar nos pezinhos distraídos de crianças faveladas, afundando na lama das enchentes, com a barriga vazia e o olhar perdido dos que não têm futuro. E as patinhas dos animais queimados nas florestas, perfazendo estatísticas de fauna dizimada, transformados em cinza e dor? E a flora, se exaurindo na fornalha, dando cor ao deserto de morte injustificada? Não fazem parte da natureza?
Benditos poetas, escritores, cantores e artistas que cantam e revelam a natureza, sem os matizes da ufania abstrata e cínica que somente enxerga um lado. O lado bizarro da alegria, quando há tanta dor!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/cervo-floresta-incêndio-1398064/

sexta-feira, outubro 23, 2020

A bailarina

Rodopia, brinca, vive

Leve, suave, brisa que envolve

Fugaz, matizes diversos, entoa

Música que dança na pontas dos pés.


Vive, brinca, rodopia

Sonha com brilho, ribalta, luzes

Desperta olhares, gigante no foco

Diverte-se assim, brinca conosco.


Brinca, vive, rodopia

Descarta dor, metamorfoseia em sonho

Beleza, alma solta, brisa, frescor de sol.


Brinca, rodopia, vive

Disfarça a realidade, finge ser poeta, anjo, meretriz

A bailarina é atriz.

quarta-feira, agosto 02, 2017

UM GOLPE NO OUVIDO

Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver.

Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coitado que se agregara `aquele pessoal que nem se interessava com a sua presença no barraco.

Melhor seria voltar para casa, pra cidade do outro lado do canal e viver a vida que não pedira a Deus. Mas não pedira aquele caos também. Não quisera participar do tráfico e hoje não era nada, mas a qualquer momento, poderia ser mais um presunto espalhado pela cidade.

Tinha que fugir, desaparecer do mapa, esquecer a mochila, esquecer as latinhas, o material pra vender e tomar outro rumo. Já pensara nisso um milhão de vezes, mas não bastava o pensamento. Precisava de ação, mas não tinha coragem. Precisava de uma coisa forte, não uma simples maconha que só o deixava ausente. Queria um crack, uma cocaína, qualquer merda que funcionasse a cabeça, que o libertasse do medo e enfrentasse o mundo.

Outros lhe vinham à mente, principalmente, o Zarão, um x-nove de primeira, aquele que podia levá-lo a ruína. Ele ia juntar as coisas: ver a mochila, as suas roupas, aquele retrato da família e acusá-lo. Não descansaria enquanto não o pegasse e fizesse justiça conforme as leis do bando.

Não, ele não queria ser torturado, trucidado, morrer feito um infeliz pedindo por clemência.

Ele que já fora um poeta, um cara que curtia compor e cantar na comunidade. Ele que sabia distinguir uma boa letra de um agrupamento de frases sem sentido, sem lirismo, sem sentimento, sem beleza.

Ele que chorava, às vezes, ao ouvir determinada melodia, ele que já fora até humano. Mas agora, precisava juntar as latinhas, vender o que podia para ganhar algum e por o pé na estrada.

Por um momento, sentiu-se atropelado por um pensamento estranho, como um golpe no ouvido. E se o Guto não tivesse morrido? E se o presumível assassino estivesse por aí, procurando-o porque ele mexeu nas coisas, investigou o cenário, certificou-se de que havia furos de balas nos carros e que a gasolina se misturava a todos os óleos que faziam parte da oficina.

Mas por que o matariam se o Guto não houvesse morrido? Por que o procurariam se não fez nada, a não ser deixar marcas pelo piso escorregadio e a maldita mochila esfarrapada, nada mais. Por que o acusariam se não poderia responder por nada?

A cabeça dóia, os cabelos grudavam pelo suor e seus olhos pareciam injetados de sangue, como se todas as drogas que usasse fizessem efeito ao mesmo tempo.

Precisava fazer alguma coisa, antes que alguém chegasse e o crucificasse ali, naquela árvore, em plena sombra numa tarde de verão.

Procurou os documentos no bolso e viu um nome que não era seu: Gustavo da Silva. Não deviam estar ali, nos seus bolsos os documentos do Guto, quem os colocara, o que estava acontecendo? Por que não o deixavam em paz?

E seus documentos, e seu nome e sobrenome que haviam desaparecido. Também ele se esquecera, também ele não sabia de quem se tratava e a cabeça doía muito quando tentava lembrar.

Foi aí que o carro da polícia parou ao seu lado. Eles se aproximaram rápidos, levantaram-no do chão e o algemaram.

O que pensam eles? O que querem dele? Não foi ele quem matou o Guto. Ele é que era o dono da boca. Apenas trabalhava na oficina, era um simples borracheiro.

Disse-lhes ainda que era cantor, que tinha sentimentos, que não estava nessa de crimes, de tráfico de drogas.

Eles sorriram e o empurraram para o camburão e o pior: insistiram em chamá-lo de Gustavo da Silva, vulgo Zarão.

quinta-feira, outubro 27, 2016

A lanterna

O poeta transmudou a expressão "porque hoje é sábado" em inúmeros sentidos.

Como uma lanterna iluminando fraca sob uma mão trêmula, na busca desesperada de algo perdido ou na iminência de acontecer.

É assim, iluminando palavras ou desfocando sentidos e certezas, que se constrói o grande mosaico da manipulação.

Quem sabe, somos lanternas pálidas para iluminar os focos imprecisos de nossos argumentos, quando nos inteiramos apenas de um lado da informação, do conteúdo ou da sinopse que julgamos como verdades absolutas.

Quantas vezes alimentamos a luz desfocada para centralizarmos na fogueira!

Uma afirmação modesta pode ser rica de conteúdo se iluminada no contexto certo.

Nos sábados, as luzes se encontram, se estabelecem e se recriam.

Nos sábados, o mundo para e as vozes emudecem.

Nos sábados a alegria é dever e a tristeza apenas fuga melancólica dos amantes.

Mas a vida real, por vezes perversa e obscura, nos leva a refletir apenas como lanternas frágeis à possibilidade do brilho.

O filósofo grego Diógenes procurava um homem que vivesse segundo a sua essência, com uma lanterna na mão.

Hoje os homens buscam lanternas que lhes deem sentido, seja em que grau de claridade os contemplem. No entanto, a verdade compartilhada segue apenas um flash, obstruindo os fatos comprovados.

Que venham os sábados e as segundas e que os homens busquem a si próprios para desvendar com profundidade suas verdades. Que a quimera seja apenas o símbolo de suas buscas. Jamais a certeza das respostas.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/lâmpada-de-querosene-luz-lâmpada-1453994/

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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