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sexta-feira, março 17, 2017

Não me perguntes

Não me perguntes porque o mundo gira, porque o tempo passa, porque os ventos sopram e o calor não se atenua.

Não me perguntes porque ficamos mais velhos, porque as crianças se deseducam e os pais se desobrigam em seus princípios.

Não me perguntes porque as coisas se substituem e o homem não vence as batalhas cotidianas e tudo se aproxima do caos.

Não me perguntes quem se corrompe ou é corrompido, quem se deixa corromper ou corrompe.

Não me perguntes se os rios secam e as indústrias expelem produtos nocivos. Não me perguntes quem polui ou quem colabora com o mau aproveitamento da natureza.

Não me perguntes quanto volume possui cada gota de chuva que se espalha no parabrisa do carro. Nem se posso juntá-las com as mãos. Pois o que sei, é que não posso medir jamais. Os hidrogênios, oxigênios e metais pesados não podem ser medidos mecanicamente, assim como não se pode avaliar nada sem comparar com nossas próprias ações, porque somos deste mundo caótico, cheio de falhas e perversões.

Somos portanto cada célula que o constitui e jamais teremos distância suficiente para qualquer avaliação. Fazemos parte do estrume. Fazemos parte das labaredas que lambem as margens das estradas, nas queimadas de baganas e falta de luz. Luz na mente, na alma, no raciocínio.

Fazemos parte dos trocados jogados no amanhecer das noites de baladas inseguras e autoridades desfocadas.

Fazemos parte dos coturnos que esmagam cabeças, quando vaticinamos mudanças ditatoriais.

Fazemos parte das madrugadas sedentas de viagens agridoce e amargas, nas vielas sombrias de casas noturnas ou nas salas enluaradas das grandes festas, regadas a vôos de comprimidos, agulhas e pó.

Fazemos parte do avanço descontrolado nas estradas, ilustrando as estatísticas de sangue ou dor, aviltando os humanos em virtude do motor potente ou da impotência dos saberes.

Fazemos parte do desdém dos votantes, inaugurando facções reacionárias, retrógradas e preconceituosas.

Fazemos parte do pensamento hegemônico da mídia, que distingue classes como quem partilha o bife, execrando os nervos e a gordura, porque o que nos é contado com oratória bem falante do narrador, é o que acreditamos.

Fazemos parte dos cartéis de idiossincrasias onde o brasileiro gosta de samba, carnaval e futebol e funk. Gostamos de tudo isso, mas de muito mais.

Entretanto, vamos pelo senso comum. E a vala é sempre a mesma.

Então, não me perguntes o que está errado. Não julgues o mal, o corrupto, o mentiroso, o ladrão, porque está em nós, no nosso mundo caótico, do qual fazemos parte.

Quem sabe, quando escolhermos as fontes e as compararmos, para acreditar em algum fato, quando pensarmos na biografia de nossos candidatos, na hora do voto, quando não incorrermos nos desvios do cidadão comum, do dia a dia, quando observarmos as leis do trânsito, do estacionamento, das vias públicas e de tantas escolhas de nossa vida, quem sabe aí, possamos até perguntar a verdadeira razão de viver ou de humanidade.

quinta-feira, junho 16, 2016

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog.


Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava.

Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência.

Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado.

Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas.

Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica.

Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca.

Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto.

Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo.

Um pesadelo resgatava um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados.

Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, que talvez seja muito mais real do que imaginamos.

E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos como único, verdadeiro e concreto.

Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente.

Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha.

E vejo-as passear pelo piso, fazendo tiro-ao-alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevam a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço.

Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa.

Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas.

Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores, enquanto suas patas saltam livres e prosseguem a sua jornada.

Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, e tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento.

Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos.

Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança à rede implacável, me prende na gosma e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina.

Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

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