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segunda-feira, outubro 24, 2016

SOBRE O FILME "UM MESTRE EM MINHA VIDA"

Um mestre em minha vida é um filme de 2011, com 83 minutos de duração, baseado na peça teatral de Athol Fugard chamada “Master Harold and the boys”.

Tanto o filme quanto o livro receberam o mesmo título, no Brasil.

Vamos falar um pouquinho sobre o autor da peça, um renomado dramaturgo sul-africano, que vivenciou todos os horrores do apartheid e incluiu este tema em muitas de suas peças, inclusive nesta, acenando para a gama de sentimentos que revela o ser humano desnudo em suas percepções da vida.

Ao contrário do que se possa deduzir em situações conflitantes, extraordinárias e limites, o homem age de modo natural, capaz de amar e odiar, em que pese às circunstâncias desfavoráveis.

Através de um discurso inconformado e eivado de lutas de resistência ao apartheid, Athol Fugard tenta refletir as transformações das relações pessoais através do contexto político-social. Afinal, o homem é produto do seu meio e age em conformidade com seus sentimentos arraigados e obsessivos, internalizados desde a tenra idade. No entanto, através da emoção e do sentimento, ele pode romper esta conjuntura adversa.

Tanto na peça, quanto no filme, a história mostra as relações inter-raciais durante a época do apartheid, na África do Sul, neste caso, nos anos 50.

Os personagens principais são Hally (Freddie Highmore), um adolescente que cresceu na companhia afetuosa de Sam (Ving Rhames) e willie (Patrick Mofokeng), dois garçons negros que trabalham na Casa de Chá de sua mãe, na cidade de Port Elizabeth.

Os dois empregados da Casa de Chá experimentam a realidade hostil do sistema de segregação racial, em cuja estrutura a sociedade criara bancos de praça exclusivos para homens brancos, enquanto que as casas dos negros deveriam ser construídas em bairros distantes.

Entretanto, os dois personagens negros convivem com esta situação tirando o proveito através de suas tendências artísticas pela dança, capazes de cultivar uma abertura particular neste espaço marginalizado, onde podiam conviver em paz.

Esta relação sadia impressiona o adolescente, de tal forma que os momentos em que Sam e Hally estavam juntos foi de extrema satisfação e conhecimento interior.

O mundo é hostil, mas eles sabiam desanuviar as dificuldades, contribuindo para um relacionamento saudável e próspero.

Entretanto, embora Hally, o adolescente e Sam, o garçom, sejam muito amigos e confidentes, a educação discriminatória de Hally o conduz a retomar o preconceito arraigado, motivado por um acontecimento fútil, sendo capaz de ofender e subjugar o amigo da maneira mais cruel e desumana.

Deste modo, ocorre o conflito da peça e do filme, pois todo o afeto compartilhado é destruído em segundos, dando margem a uma série de confrontos, revelando ao público as nuances psicológicas dos personagens.

Se por um lado, o adolescente Hally está convencido de que é forte, autoritário e seguro, por outro se sente atordoado, amedrontado e cheio de remorsos pelos sentimentos obtusos que experimenta.

Sam ao contrário, é firme e parcimonioso em seus sentimentos, dotado de paciência e experiência que o lapidaram como um homem confiante e seguro, mas tanto quanto o amigo adolescente, sente-se abandonado e triste, com dificuldade em retomar a amizade fragilizada.

Os diálogos de Sam, Hally e Willie (que aos poucos mostra uma personalidade inesperada, no decorrer da trama) são bem construídos, passando ao espectador uma verdade, que o faz experimentar as mesmas dores.

Não se tira os olhos, nem o pensamento, nem o coração da tela. Tudo é tão perfeito e verdadeiro, que as palavras fluem tal como a chuva torrencial que cai lá fora, vista pelas vidraças embaçadas da Casa de Chá (aqui, uma metáfora, entre a realidade glamorosa dos brancos e o cotidiano “apagado” e sem encanto dos negros).

A atmosfera triste da chuva, por sua vez, destaca a amargura dos personagens.

Na verdade, o sofrimento de Hally se justifica pela intolerância racista do pai, que ao mesmo tempo em que expõe Sam e Willie a humilhações, através de piadas de mau gosto, também o envergonha por ser um homem desajustado e fraco, consumido pelo álcool.

Hally sente-se dividido entre a inabilidade em lidar com os sentimentos em relação ao pai, a concordância submissa da mãe e o encontro com o novo mundo, cheio de vida e alegria ao lado dos amigos que o viram crescer.

Novamente, ao final, a chuva mostra os dois mundos que se dividem, a chuva lá fora, fria e densa, atrapalhando o percurso de Hally na bicicleta.

Talvez esta corrida na chuva signifique além do sofrimento e do remorso de perder o amigo, um batismo para uma nova vida, lavado pela água que lhe encharca a roupa e empoça as ruas.

Na Casa de Chá, através das vidraças embaçadas, o ruído forte da chuva faz coro para a dança de Sam e Willie.

Serão dois mundos que se separam ou que se completam dali para a frente?

Uma estrada paralela que se afasta ou uma encruzilhada que os une?

É um filme emocionante, repleto de descobertas e perspectivas a serem refletidas.

terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

sábado, setembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 1

Santa, a matriarca de uma família rica e respeitada, muito religiosa e benfeitora da comunidade prepara-se para uma ocasião especial, que é o seu aniversário de sessenta anos celebrado por uma missa. Aos poucos a fotografia de sua vida revela que a harmonia da família é apenas um flash da câmera e aos poucos, todos vão mostrando o seu discurso, em cujo tema a hipocrisia humana é flagrada.

Assim começa o nosso folhetim dramático.

A seguir o 1º capítulo (as publicações dos capítulos são feitas aos sábados e terças-feiras)

Fonte da ilustração: MichaelGaida. Do site www.pixbay.com

Nem sempre se tem a convicção de que a vida revela uma atmosfera de conforto ao espírito, mas para Santa, tudo parecia suave e doce, a ponto de transportá-la aos melhores momentos de sua infância.

Enquanto se dirigia para a igreja, lembrava da mãe, sempre zelosa com o vestuário e de seu cuidado obsessivo com o comportamento. Nada lhe escapava: um gesto sorrateiro, um olhar gracioso para o irmão, uma implicância com o véu. A vida andava numa trajetória densa e comportada. De acordo com seus princípios.

Era uma primavera, como a de hoje. Havia aquele friozinho insistente, produzido pelo vento que enrolava papéis na esquina. Talvez o único rodamoinho que se permitisse.

A mãe descera do carro, segurando o vestido, acomodando-o como podia, para manter-se em pé, sem que o mesmo lhe subisse à cabeça. Nesta tarefa quase inglória, conduzia as duas crianças. Não confiava na babá.

Um pouco mais atrás, taciturno, com as mãos coladas aos bolsos, surgia o pai, devagar, com uma aparência não tão comportada e mais acostumada a lugares profanos. A missa não parecia ser o melhor programa, mas ele a acompanhava.

Santa percebia o quanto o pai se aborrecia com aqueles rituais. A mãe, ao contrário, sentia-se renovada e feliz. Era mais do que um dever de cristã: uma alegria genuína.

Ao entrar na igreja, ela separara os irmãos, com a ajuda da babá. Um iria para a esquerda, ao lado dos meninos, e Santa seguia a sua turma que a aguardava próxima ao altar. Era a primeira comunhão, uma solenidade tão esperada.

O irmão se colocara na posição entre dois colegas menores, ajudado pela professora de catecismo. Antes mesmo de qualquer observação da professora, o menino voltou-se para trás, à procura da mãe e gritou com a voz aguda, atingindo o ápice, no leve burburinho: — Mamãe, a minha vela tá torta!

Houve uma risada geral das crianças próximas. A professora o advertiu que ficasse quieto, esclarecendo que aquela envergadura era produzida devido ao calor da mão, mas ele insistiu na reclamação.

Santa olhou para o irmão e escondeu o riso, com a mão em concha. A mãe, apesar da impossibilidade de conseguir outra vela, aproximou-se do menino, reprendendo-o, fazendo-o calar-se com dificuldade.

Quando os ânimos se acalmaram, ela se afastou rapidamente, já que a cerimônia não demoraria a iniciar.

Mãe, pai e babá sentaram-se um pouco atrás, confiantes em que poderiam orientá-los, tanto a um, quanto ao outro, apesar da distância física entre os irmãos e a própria distância entre os bancos.

Santa esvoaçava o véu e o vestido, assumindo uma postura digna, quase santificada, segurando o rosário entre as mãos enluvadas. Santa, que naquela época, era chamada de Santinha pelos pais, olhou de vesgueio, com cuidado, volteando levemente o pescoço. Pôde ver a mãe toda animada, mas o que mais a impressionou foi certificar-se de que havia uma lágrima salgando a face inexpressiva do pai. Uma emoção talvez atingisse aquele coração dissimulado, revelando a alma que evitava mostrar-se.

Santa ou Santinha virou a cabeça feliz. Fitou a cruz e agradeceu emocionada o singular encontro espiritual do pai. Nem se deu conta de que o irmão era chamado à atenção pelo diálogo inesperado com um colega, talvez até contando piadas.

Agora, após tanto tempo, estava ela naquele carro, sentindo a sensação primitiva da primeira comunhão, dos primeiros gestos de afeição à religião, pela sensação quase explícita de se encontrar com Jesus. Estava ela, se encaminhando à rica catedral, não como a criança que explorava um mundo novo, mas a mulher de 60 anos, Dona Santa, que havia enfrentado tantos percalços na vida, mas que se abastecia plenamente dos frutos religiosos, para se manter uma mulher digna.

Além de tudo, era uma benfeitora, participante da Igreja como ministra da comunhão, querida na comunidade e que agora se preparava para enfrentar um dos dias mais felizes de sua vida: a festa de seu aniversário.

Desceu do carro ao lado do marido. Ela estava exuberante, no vestido esvoaçante, que lembrava um pouco aquele da primeira comunhão, descontando as proporções exageradas de massa corporal que adquirira. Mas era assim: um vestido leve, que lhe descia até a canela, num tom verde- água, pernas emolduradas por um sapato de salto preto, que acompanhava a bolsa da mesma cor. As pernas também já não eram as mesmas, os sapatos mal cabiam nos pés, tão inchadas se encontravam. O passo, entretanto era firme tal como o daquela época.

O olhar, embora guarnecido por pequenas bolsas, atenuadas pela maquiagem, ainda apresentava o mesmo brilho e a mesma curiosidade que a abastecia nos momentos de plena euforia.

Quem a observasse ao sair do carro, e havia uma centena de curiosos próximos à catedral, perceberia um penteado simples, no cabelo doirado, preso num coque suave, com contornos quase infantis, que lhe caíam nos olhos pequenas mechas douradas, como uma franja mal comportada. Seus olhos azuis acinzentados davam uma cumplicidade de magia e festa, produzindo uma delicadeza cúmplice com o acontecimento. Era uma mulher jovial e ainda muito bonita.

O marido, ao contrário, apesar da estatura esguia, sua constituição física era um tanto desarmoniosa: os braços imensos para o corpo franzino, as pernas finas, cujas calças balançam ao mínimo movimento, um nariz alongado e olhos sumidos, quase fechados sob sobrancelhas extremamente cerradas. Tinha, porém uma coisa que o salvava: o sorriso largo e amigável. Não se podia dizer o mesmo da voz, que via de regra, balançava os tons mais diminutos, tornando-os estridentes e intoleráveis. Falava aos gritos, e costumava ser prolixo. Entretanto, era um bom homem, não tão chegado às coisas do céu, mas criara uma família com seu temperamento comportado de industrial pequeno, mas bem sucedido.

Os dois se aproximaram da igreja. Por um momento, Santa soltou o seu braço, parou e recuou alguns passos, como se não se atrevesse a entrar naquela igreja da qual participara inúmeras vezes. E o fizera nas situações mais diversas, desde as dedicadas às ajudas comunitárias até em planejamentos onde passava noites a fio, para resolver determinadas pendengas na comunidade. Outras vezes, ficara apenas rezando para que os seus projetos se coadunassem com os do Senhor e a coisa andasse, talvez não como desejasse, mas de acordo com a vontade do Altíssimo.

Entretanto, não estava pronta ainda. Suas pernas tremiam e suas mãos se apegavam ao peito, como se protegessem de alguma coisa desconhecida e inexorável, que fosse arremessá-la para longe e tirá-la do caminho proposto.

terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

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