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terça-feira, maio 02, 2023

Trajetórias

Para ir à escola, eu devia pegar três ruas, a Av. Pelotas, a João Manoel e seu seguimento, a Dr. Nascimento. No meio de tudo isso, ficava a Praça Saraiva, que era parte de minha rotina, a qual fazia questão de atravessar. Nela, os sentimentos sempre despertavam de algum modo, geralmente sensações conhecidas das manhãs outonais ou das longas tardes de inverno. Na verdade, gostava daquela sensação de frescor, mesmo em manhãs frias, dos assobios incessantes dos bem-te-vis, que se misturavam nas folhas dos imensos eucaliptos e de outros pássaros, dos quais desconhecia o nome, do sereno que ainda restava na grama, até às 7 e meia, mais ou menos, os caminhos de areia e saibro vermelho. Era um mundo especial, o meu mundo matutino na ida à escola.

O São Francisco ficava logo ali, indo pela Nascimento, mas me parecia tão longe! Antes, devia ir pela João Manoel até o canalete. Lembro das calçadas irregulares, do silêncio da rua que parecia não morar ninguém, do sol que despontava meio longe, através das árvores ralas que contornavam os canteiros. Depois, na Nascimento, já conhecia algumas casas que faziam parte de minha rotina. Uma casa pequena, com um jardim acanhado, à esquerda de minha trajetória, onde sempre encontrava um senhor que transitava por ali, ora em direção ao centro, ora ficava apenas parado, observando a paisagem. Não tinha certeza se já me conhecia, mas tinha essa impressão. No outro lado da rua, uma casa enorme, com jardins imensos e muitas árvores. Às vezes, imaginava-a como uma fortaleza, guardando uma imensa biblioteca, outras vezes, achava apenas que estava abandonada. Coisas de minha cabeça.

Prosseguia o caminho com a pasta pesada, devido aos livros de cada disciplina e respectivos cadernos, além de lápis, caneta, régua, transferidor (alguém ainda usa?), esquadro, borracha, bloco sem pauta, etc., além dos gibis, que vez que outra, trocava com colegas. Sempre que atravessava o Canalete, naquelas pequenas travessas, sentia o frio vindo da lagoa, que parecia desembocar bem ali, na esquina que passava. Na volta, era como se o caminho fosse outro. O sol era mais forte, as ruas mais cheias, os carros rápidos na direção das casas, levando filhos da escola, voltando do trabalho no intervalo do almoço. O meu íntimo não era tão festivo como as ruas, embora fosse tão intenso quanto.

quinta-feira, março 21, 2019

Todos eram puros e inocentes no passado? Nem tanto!

Acho notável que as pessoas tenham boas lembranças e sintam saudade dos tempos de infância, entretanto, há coisas que não entendo. Não entendo quando afirmam com veemência que naquela época, tudo era maravilhoso, a ponto de haver uma uniformidade nos costumes, cujos cidadãos eram pessoas extremamente afáveis, solidárias e felizes. As crianças eram educadas, disciplinadas e prestativas, os pais severos, conciliadores e gentis, os professores profissionais exigentes e respeitados na sala de aula e o mundo girava sob The The Sound Of Music, da Noviça Rebelde. Segundo estes relatos, os meninos entravam na igreja compenetrados, arrumando o cabelo e fazendo silêncio para ouvirem as orações, enquanto as meninas, por sua vez, se deparavam caladas, em frente aos santos, rezando para que suas provas não fossem muito difíceis ou para serem pessoas melhores. Os vizinhos sentavam nas calçadas, tomavam chimarrão ao anoitecer e jogavam conversa fora. Todos eram amigos, e nos natais, compartilhavam a alegria e o amor, que se estendia entre todo o bairro. Nas escolas, o hino nacional era cantado diariamente e os professores rezavam antes de iniciar a aula. O mundo era feliz e puro. Todos viviam numa redoma de propaganda de margarina. O pai jamais voltava cansado do trabalho e a mãe sempre apresentava um manjar para esperá-lo, sem qualquer queixa dos filhos tão corretos e obedientes.

No entanto, me pergunto, se este mundo idealizado existiu mesmo ou somente ocorreu na mente dos saudosistas, que com estas imagens oníricas produzam uma saída para suas angústias, como ponto de partida para a esperança. Sim, porque todos queremos um mundo melhor. E todos, em geral, vivemos cenas parecidas, com famílias na calçada conversando, crianças brincando na rua até o anoitecer, os professores emblemáticos em suas disciplinas e os pais atentos e severos nos momentos adequados. Estas cenas agradáveis ficaram em nossas mentes e as selecionamos para identificar um passado que nos foi grato. Mas vejam bem. Eu não vivi neste mundo, pelo menos tão bordado de azul e cor de rosa, como se o arco-íris pousasse sobre nossas cabeças a cada entardecer. Não. Havia situações semelhantes às idealizadas do passado, mas como tudo na vida, havia também o outro lado. Por exemplo, na escola em que fiz o curso primário, a Escola São Luiz, nós apenas ouvíamos e cantávamos os hinos em dias cívicos, principalmente nos dias da semana da Pátria, e mesmo assim, apenas uma turma era escolhida, não todo colégio. Durante a semana da Pátria, uma turma devia hastear a bandeira e cantar o hino, assim sucessivamente, para que todas as daquele turno, participassem nos dias subsequentes. Jamais entoamos o hino diariamente e nunca desfilamos no dia da Independência. Já no Colégio São Francisco, só participei do desfile da Semana da Pátria, uma única vez, porque não desfilamos nos demais três anos que faziam parte do tempo de ginásio. Isso, que estávamos em plena ditadura. Por outro lado, as crianças não eram tão obedientes, disciplinadas e educadas como se anuncia por aí. Lembro, que certa vez, alguns alunos se prepararam para dar um susto no professor de inglês, do qual não gostavam muito e punham apelidos, às vezes, nem tão edificantes. Eles colocaram a lixeira sobre a porta e quando o professor abriu, a mesma caiu quase em sua cabeça, assustando-o e sujando todo o piso da sala. Ele disfarçou para não se sentir humilhado e disse uma piada qualquer. Aí, me pergunto, onde ficou a disciplina? E a coragem do professor em enfrentar àquela situação? Pode ter sido uma reação peculiar, talvez outro no lugar dele, agisse de modo diferente. Mas, quanto ao fato em si, ocorria de forma quase rotineira nas escolas. Havia bullyng e os professores não sabiam lidar com as situações. Um outro aluno colocou um preservativo na cadeira do professor, e quando o mesmo chegou, ficou confuso, sem saber como agir. Ele devia ter aproveitado para falar sobre o controle da natalidade, talvez, mas como a maioria, não tinha a tranquilidade nem o conhecimento para discutir a questão. Sorriu e não sentou o tempo todo na cadeira, porque não conseguiu tomar uma atitude para retirar o objeto. Não o critico, era a concepção de educação e conhecimento da época. Neste tema de educação sexual, ocorriam absurdos em virtude dessas incoerências do período no qual tudo era proibido (pelo menos para o povo comum). Na minha sala de aula, um professor fez um questionário para saber se estávamos interessados neste assunto. Os doces e inocentes alunos assinalaram em peso, que queriam educação sexual, que tinham muitas perguntas a fazer. O professor se acovardou e finalizou que responderia individualmente, se alguém precisasse. Claro que isso nunca aconteceu.

Por outro lado, embora não soubéssemos praticamente nada dos problemas das pessoas próximas, vizinhos ou amigos, os adultos descobriam e comentavam muitas vezes, casos escabrosos sobre as famílias. Está aí Nelson Rodrigues para provar. O homem é sempre igual em qualquer sociedade e quanto mais restrito o seu acesso à educação e às fontes informativas sobre as relações sociais, menos humanizado se torna, e embora escondido, utilizava-se das mazelas para conseguir os objetivos mais obscuros, tanto quanto agora. Sabíamos de maridos que traíam as mulheres e tudo era ocultado. Mulheres que se sujeitavam aos desmandos dos maridos e até às ofensas morais e maus-tratos físicos, porque eram completamente dependentes, como donas de casa, incapazes de sobreviver e ter a sua profissão. Havia casos de estupros, de padres pedófilos, de pastores corruptos, de médiuns charlatães e estes casos eram comentados à boca pequena, embora todos soubessem e raramente viessem a público. O mundo é o mesmo de antigamente, as pessoas são as mesmas, a humanidade servia ao senhor dinheiro, fazia guerras e o homem se locupletava no poder, no autoritarismo, assentado num falso desejo democrático. Claro que havia o povo honesto, como existe hoje. Claro que havia a inocência, porque desconhecíamos quase tudo, inclusive na questão da sexualidade, embora eu acredite que nós não éramos inocentes, éramos ignorantes tentando descobrir alguma coisa. Claro que havia as brincadeiras, o futebol de rua, a bola de gude, mas havia também as armadilhas na areia para que o outro caísse, havia o roubo no jogo de cartas, havia o chamado catecismo de pornografia, que alguns guris sempre carregavam consigo, havia o bando de meninos que se juntavam para enfrentar o valentão e havia os valentões que batiam nos mais fracos, por pura vaidade e afirmação de macheza. Para as meninas, a ilusão de brincar de casinha, de fazer questionários sobre meninos, de sonhar com um príncipe encantado, mas também a fofoca na sala de aula, a delação dos meninos que desobedeciam certas regras, as conversas escondidas nos cantos das escadarias da escola, o comentário mais apimentado sobre uma guria que parecia mais moderna para a época. Havia o cigarro proibido, já na adolescência, havia o levantar a saia de pregas, deixando-a mais curta, acima dos joelhos, havia os namoros mais avançados. Inclusive, havia os abortos, os casamentos apressados para provar que a menina era virgem embora estivesse grávida, havia a mentira. Nem todo mundo era tão santo como se propaga nos textos saudosistas.

Sem dúvida, que tenho saudades daqueles tempos de verão, dos jogos de bola, dos amigos. Mas sei, que éramos humanos e que nenhuma força autoritária ou disciplinar do mundo, nos impediria de desobedecer pequenas regras. Não é um regime reacionário, um governo fascista que trará de volta ¨os bons tempos¨, pois mesmo que conseguisse, eles voltariam imersos em suas controvérsias e ninguém jamais poderia mudar o que não tem conserto. O mundo é dualista e saber dosar é a melhor solução, sem imposições, sem ordens de cima para baixo, sem falsos moralismos. Basta haver respeito e liberdade de ação e pensamento. E principalmente, saber que a educação é o único eixo que pode nortear nossas atitudes.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/feliz-fam%C3%ADlia-desenhos-animados-1082921/

segunda-feira, novembro 20, 2017

A bandeira e o eclipse

Minha mãe era muito zelosa com as atribuições da escola. Na primavera de 66, estávamos mais preocupados com o provável eclipse que ocorreria no Brasil, especialmente na região sul, do que outros eventos cotidianos, como por exemplo confecionar bandeiras brasileiras.

Eu já tinha tudo pronto em minha mente, usaria uma chapa de raios x para observar o céu, até que o sol desparecesse e a terra se alinhasse com a lua, escurecendo a cidade.

No balneário Cassino, no entanto, a situação seria ainda mais eufórica e esperada. Afinal, a Nasa lançaria 14 foguetes na praia com a intenção de investigar o fenômeno. Havia muita gente no Cassino, inclusive mais de 300 cientistas do exterior.

Minha mãe, entretanto estava disposta a cumprir a sua tarefa. Levou-me à loja Isaac Woolf e com a paciência das mulheres em escolher tons para os tecidos, permanecemos na loja mais de uma hora. Eram matizes que não acabavam mais. Tons que iam do verde escuro ao mais claro, azul que deveria compor um céu infinito e inatingível, o amarelo que se desmanchava entre o dourado e a gema de ovo, ou outro tom qualquer que somente ela sabia distinguir. Quando finalmente decidiu, a noite já dava sinais de vestir a cidade com sombras. Eu só pensava no eclipse do próximo dia. Ela com as bandeirolas que a professora a incubira para o passeio dos alunos até à praia, para assistir aos dois eventos e mostrar a nossa brasilidade e força nacionalista.

Em casa, com paciência redobrada e após muitos cálculos sobre as escalas, ela desenrolou os tecidos sobre a mesa e pediu que eu a ajudasse a organizar as peças, de acordo com as cores respectivas. Enquanto eu obedecia, ela investia nas figuras geométricas, associando as cores aos desenhos, desde o verde para o retângulo, o amarelo para o losango, além das estrelas representativas dos vários estados. Por fim, tentava transmitir a sua impressão sobre as bandeiras, prosseguindo enfática:

Sei o quanto o eclipse impressiona, sei do poder flamejante dos foguetes que voarão aos céus, que transformarão os olhos e mentes em memórias jamais esquecidas. Mas estas memórias devem ser acompanhadas pela nossa cidadania, a nossa percepção de nação e isso só acontece, se tivermos um símbolo, um emblema, que nos identifique como nação, que represente o nosso povo e nosso solo, enfim a natureza, além da paz que deve ser prepoderante entre os povos.

Já ouvindo a história que parecia não terminar, concordei que a professora tinha razão em querer confeccionar as 24 bandeiras para a nossa turma que saudariam o eclipse e os foguetes.

Ela retificou: mais do que saudar, vai mostrar a todos, a presença do Brasil neste evento e mais do que nunca o nosso símbolo maior será a representação absoluta.

Naquele momento, já me interessava em levar a bandeira, agitada e altiva, junto com os colegas de classe, convicto que fazia parte do grande evento. Só despertei de meus pensamentos, quando ouvi o barulho metálico da máquina de costura, aprumada em desvendar caminhos que levassem à perfeição.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Triste Brasil

Lendo uma das citações de Bertold Brecht, o dramaturgo alemão do século XX, cujos trabalhos artísticos e teóricos influenciaram o teatro contemporâneo, percebemos que seus pensamentos são tão universais e de nosso tempo, que parecem vaticinar o que viria acontecer no futuro.

Senão, vejamos suas palavras:

"Nada é impossível de mudar.Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar."

Observamos, portanto, que este pensamento se encaixa na situação que estamos vivendo, de arbitrariedade e golpe na democracia.

Pense bem, desconfie do "simplinho", do falso humilde que vota pela pátria, pela democracia, pelo amor a Deus e à família.

Sabemos que não vivemos num mundo de ficção, mas esta parece cada vez mais entranhada na visão humana, principalmente na dos políticos em sua descarada hipocrisia.

Hoje não é dia de compor silêncios, mas externar de algum modo a nossa indignação seja em que cenário façamos parte, no trabalho, na escola, na feira, na loja, no shopping ou dentro de nossa comunidade.

Ficar atento e mostrar a realidade, não aquela manipulada da mídia, mas a que salta aos olhos e nos fere o coração.

Entretanto, parece que tudo fica como está, no governo, nos três poderes da Nação.

Tudo se acomoda como numa carroça de abóboras e todos vão assimilando o desandar das coisas, como se fosse natural.

Onde estão os panelaços? Onde está a indignação contra a corrupção?

Parece que somente havia um único propósito, o golpe parlamentar e era isso que parte da população desejava. Como numa novela da Globo, o que vale, são os fins para os mocinhos das tramas, não interessam os meios.

Triste Brasil.

sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

sexta-feira, novembro 04, 2016

A redação, a Apollo 11 e o grêmio literário

Eu estava à cata de informações para uma redação, na imaturidade de meus 13 anos.

Os acessos eram difíceis, embora houvesse os jornais, a TV, as revistas e principalmente a imaginação.

Naquele julho de 69, a Apollo 11 era a primeira missão de sucesso, com Neil Armstrong pisando na lua e surgindo nas telas da TV, numa imagem entrecortada de chuviscos e emoção.

Eu elaborara a redação com cuidado, tentando ser o mais verídico possível, sem ser previsível.

Naturalmente não possuía esta percepção de previsibilidade, mas por pura intuição, eu tentava ser original, no esforço de transformar o texto num produto bem elaborado.

Enveredava sempre que podia, pela imaginação, transportando meu mundo interior fundamentado na fantasia do espaço para o papel, procurando decifrar a perspectiva que possuia no avanço espacial.

Aquela nave maravilhosa, desenhando no céu uma centelha de luz, trazendo a nós, terráqueos, uma visão tão próxima da lua, com a certeza de que os astronautas pisavam pela primeira vez no solo inatingível.

Desta forma, realizei a redação, se não a melhor, uma das melhores de minha carreira de estudante.

Certo dia, o diretor da escola, um frade austero, de olhar frio e perscrutador, adentrou a sala, invadindo a aula de português.

Nosso professor, Irmão PL. recebeu-o com cortesia.

Um meio sorriso nos lábios, uma ansiedade contida, um torcer de mãos sob a batina branca, talvez na mesma expectativa em que estávamos mergulhados.

Ele era alto, cabelo ralo, nariz adunco, mãos grandes e dedos peludos. Tinha um olhar tranquilo, mas havia neles uma interrogação, que me inquietava.

Talvez não exatamente por sua conduta, mas pela minha maneira peculiar de observar as pessoas e considerá-las um produto promissor para minhas histórias.

Eu fiquei circunspecto, sem muita expectativa, a não ser imaginar que o assnto que levara o diretor à sala de aula, seria algum tipo de norma reformulada ou talvez um feriado religioso, no qual participaríamos em alguma solenidade.

Eu, magro, mãos sobre a mesa, olhar atento, cabelo caído na testa, a la Beatles, observava o cenário já meio enfadado.

Meus colegas cochichavam, faziam mil esforços intelectuais para descobrir o motivo do diretor aparecer assim, de súbito.

De repente, ele manifestou-se através de uma fala burocrática, citando a turma que, segundo ele estava bem orientada na aula de língua portuguesa , deu os conselhos de praxe e por fim, citou o meu nome.

O meu nome? Perguntei-me atônito, a que se referia.

Claro que perguntei mentalmente, sem abrir a boca ou piscar os olhos.

Alguns segundos e o diretor pediu que eu me levantasse.

Obedeci, pernas trêmulas, joelhos batendo um no outro, coração aos pulos.

Não sabia o que pensar, o que dizer, o que imaginar.

Nem passava pela minha mente confusa, qualquer indagação que não fosse uma temerosa culpa por alguma conduta indevida.

Ele então, mandou que eu sentasse, o que fiz de imediato, deixando cair os braços sobre a carteira, mãos presas na caneta, desenhando quase involuntário no caderno, tentando fugir daquela atmosfera de incerteza.

Ele prosseguiu elogiando a redação que eu fizera, acrescentando que havia sido muito bem avaliada pelos professores e que, em virtude da qualidade do texto seria publicada no jornal da cidade.

Quando afastou-se, os colegas todos me olharam, juntamente com o professor, que parecia abalado, pois nada dissera a respeito. Nem me cumprimentara.

Houve mil brincadeiras e muitos apelidos, culminando por me chamarem de poeta.

Para eles, qualquer um que escrevesse razoavelmente era um poeta.

Ou talvez fizessem uma leitura pejorativa, realçando que a sensibilidade não era prerrogativa de meninos. Não sei. Coisas que talvez Freud explicasse. Afinal, era um tempo de uma ideologia tecnicista, na qual as artes e filosofias foram excluídas.

No intervalo, as brincadeira se sucediam, mas eu estava feliz, porque o meu texto fora analisado, elogiado e comprovado publicamente que tinha qualidade.

Com o passar do tempo, eu tinha ainda mais ânimo para escrever, não somente as redações obrigatórias da escola, como outras histórias, que criava em total liberdade de meus pensamentos e imaginação.

Neste período, elaborava contos ou imensos romances, pontuados de ação, aventura e emoção, abrangendo deste modo, os sentimentos que imaginava aos personagens e suas tramas.

Era uma dramaturgia intuitiva e repleta de clichês, mas que ampliava a minha imaginação e de certo modo, o conhecimento literário, além de ampliar o gosto pela leitura.

Nos sábados, em que se realizava o grêmio literário da escola, costumávamos assistir os trabalhos feitos pelos colegas, cujas diversas turmas se reuniam e havia muitas apresentações, com a participação dos professores de português e inclusive de outras disciplinas que confraternizavam com os seus alunos.

Geralmente, alguns pais convidados também faziam parte da plateia.

Enumeravam-se poesias, crônicas e contos, que apresentados em sala de aula, e considerados os melhores trabalhos, eram apresentados à comunidade escolar.

Em determinado momento, o professor que apresentava os alunos, chamou um dos meus colegas de turma.

Todos ficamos aguardando na expectativa da apresentação.

Era um menino de cara rechonchuda, vermelha e um sorriso imenso nos lábios, considerado o guri popular da turma.

Já aplaudido pelo grupos de alunos e pais, abriu uma página datilografada e antes que se pronunciasse a respeito do tema, o professor anunciou tratar-se de uma redação sobre a chegada do homem à lua, ou seja, a Apollo 11.

Meu coração revirou-se, em saltos.

Os colegas voltaram-se de imediato para mim, criticavam e afirmavam que se tratava de minha redação, o que implicava em eu estar lá, no palco, lendo-a.

Perguntavam afoitos, por que eu não dizia nada?

O menino começou a ler, voz clara e bem colocada. Não modificou nenhuma palavra, nenhum artigo, nenhuma pausa.

Meu coração sim, quase pausava.

Meus lábios tremiam, tensos, incapazes de pronunciar uma sílaba sequer, músculos paralisados, pernas cravadas no chão, como estacas inanimadas.

O professor de português, ao nosso lado, impassível. Não foi capaz de informar que aquele texto havia sido escrito por mim. Não fora capaz de defender-me.

Como eu, no meio daquele público de adultos e crianças, poderia sair gritando que a tal composição era minha, que havia sido inclusive publicada no diário da cidade e elogiada pelo diretor da escola?

Não teria coragem para tanto.

Ali, conheci a mão pesada do apadrinhamento, da covardia dos mestres, do interesse dos superiores.

Deixaram-me na lona, Davi perdido, sem enfrentar nenhuma fera ou qualquer gigante.

Perdido, acabrunhado e triste.

Ali, conhecera a duras penas, o significado de plágio. Mais do que o plágio, a predileção por um aluno em detrimento do outro.

Se ao menos, nomeassem o autor do texto, eu me conformaria, mas todos os créditos foram para ele. Todos os louros. Todos os aplausos.

Pra mim, sobrou o constrangimento de não ter me levantado contra aquela injustiça.

Sobrou a crítica dos colegas, por meu acanhamento.

Sobrou a autocrítica por minha fraqueza.

Felizmente, sobrou também a vontade de lutar, de mostrar ao mundo o meu fazer literário, sem o medo do fracasso, pois se ocorrer, será somente meu.

Mas como tudo é aprendizagem e sublimação, a mágoa se transformou em representação na narrativa literária e só existe para vestir um personagem.

terça-feira, novembro 01, 2016

O piquenique

Aquela noite seria longa, mas provavelmente eu tenha caído no sono em seguida. A manhã chegou tão rápida que me ocupei de minhas coisas de modo a não perder um detalhe, a não esquecer a bola de vôlei, o estilingue e os guides.

A mala era pequena, eu não tinha aquelas mochilas modernas, não, era uma mala esquisita de lona e papelão.

Quando levantei, às 6 horas mais ou menos, tudo estava pronto, ou quase pronto à mesa, pois a condução que nos levaria ao passeio sairia às 7:30 horas.

Minha mãe se desdobrava em fazer o lanche e mais do que isso, dar os habituais conselhos. Não pega muito sol, te cuida dos lugares perigosos, olha os precipícios, fica sempre atento e não te afasta do grupo, muito menos da professora. Ela será o teu guia.

Não precisava de tudo aquilo, mas era de praxe.

As horas passavam rápidas, mas a escola ficava apenas quatro quadras de minha casa. Nada que fosse atrasar-me.

Eu estava ansioso. Ouvia com uma mão na mala e outra na xícara, atento ao que meu coração dizia, avesso ao discurso de minha mãe. Aliás, a preocupação dela era exasperante para qualquer mortal, mas para mim, que ouvira aquele lero-lero desde a noite anterior ou talvez a semana toda, era demasiado.

Certamente, todas as mães fazem a mesma coisa, todas engrossam o caldo das lamentações, dos medos, dos avisos e finalmente dos abraços e beijos, numa disposição enfática para que tudo dê certo, que o piquenique seja maravilhoso e que os filhos voltem sãos e vivos.

Minha mãe, é claro, não fugia à regra.

Meu pai, a esta hora, já estava longe, a caminho do trabalho e minhas irmãs nem sonhavam em levantar-se, ocupadas em que estavam em seus sonhos de adolescente.

Já eram praticamente sete horas quando tudo estava pronto.

Minha mãe insistiu em levar-me até a escola, tinha recomendações a fazer à professora, informar-se sobre horários e prováveis eventos durante o percurso, paradas no meio do caminho, horário para almoçar, os infinitos perigos que poderiam rondar os despreparados meninos, principalmente o dela, e ter a certeza absoluta que tudo correria bem.

Fui implacável, entretanto. Afinal era um menino de 10 anos, ela que me deixasse sozinho que eu me acomodava do meu jeito.

Fiz de tudo, até promessas que agiria de acordo com o que ela tinha recomendado, que faria o lanche na hora certa, evitaria os precipícios e principalmente que obedeceria à professora.

Tanto insisti, que ela concordou, desanimada, talvez refletindo se devia aceitar o meu pedido.

Foi o suficiente para eu pegar a mala, ajustá-la em meu corpo mirrado e correr para a rua em direção à escola.

Ela não me deixou chegar ao portão.

Abraçou-me, beijou-me, encheu-me de recomendações, aquelas mesmas que havia insistido em carimbar em minha mente, que a estas alturas estava conturbada pela ansiedade.

Depois dos abraços, afastei-me devagar. Ainda ouvi a sua voz desejando uma boa viagem e a sugestão que eu sentasse mais ou menos na metade do ônibus, porque era mais seguro. Na frente, sabe Deus, o que pode acontecer. Em caso de acidente, o primeiro que é atingido... parou aí. Acho que temeu prosseguir a frase e que o vaticínio involuntário acontecesse.

Então, sorriu e me acenou do portão.

Fui quase correndo em direção à escola. Estava feliz. Meu coração dizia que seria um piquenique daqueles!

Era o meu dia de liberdade, de ação, de vida e nenhum daqueles avisos ainda martelavam na minha cabeça.

Entretanto, chegando próximo à escola, para ser exato, faltando uma quadra, o ônibus repleto de alunos começou a mover-se, fazendo uma curva e dobrando em seguida na direção contrária ao meu movimento.

Meu coração bateu assustado.

Corri feito louco, tentando ocupar o lugar que era meu, o dia que se apresentava a mim, a vida que se desenrolava naquele veículo.

Ainda ouvia a cantoria das crianças, quando o ônibus dobrou na esquina.

Cheguei na escola desesperado e sem que dissesse nada, ouvi o porteiro anunciar que o ônibus esperara 20 minutos. O horário correto era às 7:00 e não às 7:30 como havia pensado.

Na verdade, pensei em tudo. Tive todas as recomendações do mundo. Só errei a hora da saída do ônibus.

À tarde, o veículo passou na esquina de casa, abarrotado de crianças ainda com toda a energia, cantando. Eu chorei.

domingo, outubro 23, 2016

Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

Meu pai largou a maleta de ferramentas sobre a mesa, falou rapidamente com minha mãe e convidou-me a sair. Como sabia de nosso destino, segui-o rapidamente. Parecia um pouco irritado, conhecia aquele vinco entre os olhos, como se analisasse detidamente algum documento.

Subi na velha Jawa, uma motocicleta dos anos 50, enquanto ele dava a partida no pedal. Seguimos rápidos pela rua Dr. Nascimento e chegamos à escola.

Já na portaria, encontramos o Seu Miguel, que nos cumprimentou e foi rapidamente chamar o Irmão Sagres, o orientador da turma. Quando chegou, após os cumprimentos, ele não parecia interessado no assunto de meu pai. Batia uma bola de vôlei, no chão, desatento. Meu pai insistiu no problema, afinal, ele viajaria com a família por duas semanas, era um assunto urgente e não haveria como eu permanecer na cidade.

Irmão Sagres acabou informando que não era problema dele, que devia falar com o Diretor.

Mas afinal, perguntara meu pai irritado, o senhor não é o regente da turma?

Nada parecia importunar a atitude do professor, ao contrário, a falta de educação se acentuava em despachar o meu pai, informando que tinha mais o que fazer.

Meu pai então dirigiu-se ao gabinete do diretor, me deixando ali, pelo pátio da escola.

O professor afastou-se, talvez aliviado por não precisar decidir qualquer coisa sobre a nossa viagem. Ou talvez, porque estivesse interessado em outras coisas mais agradáveis.

Enquanto meu pai resolvia os problemas com o diretor, comecei a passear pela escola, subindo rapidamente uma escada que dava nos compartimentos dos irmãos.

Seu Miguel, que tinha olhos para tudo, me impediu, obrigando-me a descer. Tentei explicar que tinha muita curiosidade pela biblioteca que ficava no mesmo corredor, bem ao lado do anfiteatro, mas ele fez ouvidos de mercador e me indicou a escada para que descesse.

Então, fiz a ronda pelas várias salas de aula, que a estas alturas estavam vazias, pelo adiantado da hora.

Como era inverno, já anoitecia e as luzes eram acesas.

Na penumbra, vi passar uma pessoa dentro de uma sala, com a atitude meio estranha de cerrar e abrir ao mesmo tempo, as cortinas.

Aproximei-me da porta e vi Irmão Cassiano, o nosso antigo professor de religião, andando pela sala e puxando com força as cortinas, quase desprendendo-as dos bandôs.

Intrigava-me aquela atividade de fechar as cortinas e ao mesmo tempo, abri-las com a mesma energia.

Aproximei-me, cumprimentei-o, mas ele nem percebeu a minha presença.

Continuava em seu trabalho com uma determinação incrível. Perguntei se não precisava de ajuda.

De súbito, ele parou e aproximou-se de mim. Senti um certo temor, como se ele fosse empregar a mesma força, empurrando-me porta afora, ou dando-me um safanão.

Mas ele não disse nada. Só sorriu.

Observei que seus óculos arredondados estavam tortos e seus olhos miúdos e azuis se ressaltavam quase por cima da armação. Os cabelos brancos, penteados para o lado, caiam-lhe na testa, desavisados.

Em seguida, ele afastou-se em direção à porta em passos miúdos e voltou-se para mim antes de sair. Então, perguntou:

— Fez os temas de hoje?

Eu pretendia responder-lhe que não tinha mais aula com ele, mas apenas assenti com a cabeça.

Foi aí que ele insistiu:

— Tem uns meninos que estão interessados em aulas sobre sexualidade, mas a grande maioria dos alunos está interessado nas nossas aulas de religião, como devem ser dadas. Por isso, para aqueles, darei explicações individuais, caso seja estritamente necessário. Você não é um daqueles, não?

Eu, como toda a turma do ano passado, era um daqueles sim. Também colocara como item principal no questionário, o tema sobre sexo. Mas respondi que não. Ele suspirou, aliviado:

— Ainda bem. Não falta tempo para estes meninos aprenderem estas coisas. A vida se encarregará de ensiná-los no momento certo, quando tiverem maturidade para isto.

Ele se afastou sem dizer mais nada. Fiquei ensimesmado, pensando que alguma coisa acontecera na mente do professor. Ele parecia desorientado.

Em seguida, ouvi os ruídos de cortinas sendo abertas e fechadas. Ele continuava na sua tarefa metódica de abrir e fechar o mundo. Tal como fizera com o questionário. Só, que lá, se preocupara apenas em fechar. E o conhecimento que desejávamos, cada vez ficava mais distante. Talvez já naquela época, a insanidade já se alastrava em sua mente, enquanto a sexualidade exacerbava em nossos físicos e espíritos. No entanto, nosso conhecimento se dava sem nenhuma informação científica, o que aprendíamos entre nós, era via de regra, de maneira distorcida.

Quando ouvi me chamarem, percebi que meu pai me procurava irritado. Queria saber onde eu andava, porque não me esperara lá embaixo, na portaria.

Pretendia explicar-lhe que estava só passeando pelo colégio e falar-lhe da esquisitice de Irmão Cassiano. Mas decidi ir direto ao assunto e perguntar-lhe como tinha sido a conversa com o diretor.

Ele me cortou rápido:

— Vamos pegar a Jawa e tocar em frente nossas coisas. Aqui já resolvi, tudo, apesar da burocracia!

Na saída, encontramos o Irmão Sagres, que perguntou, tentando ser gentil: conseguiram o que queriam? E meu pai foi direto:

— Sim, mas não com a sua ajuda!

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO X

HOJE, QUINTA-FEIRA 11/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 10º CAPÍTULO.

Capítulo 10


Cruzes! Então o velho não se aguenta sozinho, precisa de alguém pra fazer a higiene. Também pudera, aquela mania de falar sozinho em plena janela do apartamento, olhando para a rua, deve ser fraqueza mental. Os neurônios não se coadunam. Pobre diabo! Depois de saber disso, me dá até dó, afinal é um homem doente e tudo que diz talvez não passe de simples imaginação. Coisa da cabeça dele. Esta vida é muito triste para velhos como ele. E como eu, também. Não fosse você, Rita, eu já teria enlouquecido nesta casa, sozinha. Quando Carmem enviuvou ainda me visitou algumas vezes, embora mais preocupada com a casa do que comigo, revirando o passado, criticando o Jaime, censurando até meus pensamentos. A filha que estava no exterior, de feminista radical se transformou em mulher de milionário e esqueceu todas as ideias avançadas que tinha na época. Carmem, aos poucos, foi me abandonando. Quando o Jaime morreu, ela não esteve ao meu lado, não me procurou para dar-me algum conforto, algum carinho. Ao contrário, apareceu apenas para consolidar o que pensava, justificar a ideia de fatalmente este seria o seu fim. O tempo passou, ela foi morar com a filha e praticamente me esqueceu. Uma carta aqui, uma mensagem ali. Nem mesmo quando Luisinho morreu, ela se tornou menos fria. Ficou cada dia mais distante, mais amarga, preocupada extremamente com os negócios orquestrados pela filha, com as vantagens de ter um genro rico. Alguns meses atrás, ela me surpreendeu com um telefonema. Mas acabou, nunca mais nos falamos. Nem sei o que é feito de minha irmã. Quando o telefone toca, o que é muito raro, fico meio alarmada, achando que aconteceu alguma coisa trágica. Sei lá. Esses pensamentos me vem, assim, aos atropelos. Não tem como evitar. Apesar de tudo, ela é minha irmã. Ai, meu Deus, e pensar que o Carlos se perdeu no mundo, imagine, o mundo não é mais inacessível, para um homem com a estrutura econômica dele. Não dizem por aí que o mundo é uma aldeia, mas para o Carlos, parece que não é bem assim. Nunca se casou, viveu exclusivamente para ele, para a sua privacidade. Acho que não queria que nós nos intrometêssemos em sua vida. Tinha lá suas manias, seus caprichos. Se bem que sempre morou tão longe! Às vezes, me vem à lembrança a carinha dele, tão risonha, tão extrovertida, cheia de malícia. Sempre engendrando alguma travessura. Ah, lembro dele, quando menino. Era tão diferente. Como as pessoas podem mudar tanto? O que a vida lhes apronta, que as torna aborrecidas, enfastiadas, amargas? Afinal, hoje em dia, é quase um estranho.

Era menino tão esperto, tão querido. Não podia ter esquecido assim, da gente. Gostava muito de me assustar, mais ainda a Carmem, que era mais boba do que eu. Certa vez, ele inventou uma estratégia de colocar nós duas em pleno acesso de terror. Estávamos deitadas em nosso quarto. Naquela época, a noite começava mais cedo, talvez por volta das 9 horas. Nós estávamos animadas com um tema da aula, que se estendia à freira e suas punições, aos meninos que ficavam em frente da escola. Por um tempo, ficamos no internato e só voltamos para casa nas férias. Minha irmã detestava as colegas, as freiras, o uniforme, as aulas, tudo que se relacionava à escola. Eu, ao contrário, me divertia com o que tinha. Afinal, estava ali, porque era tempo de guerra e papai talvez quisesse proteger-nos, sei lá o que imaginava naquela cabecinha dele. Acho que tinha medo que os alemães invadissem pelo porto e fizessem alguma maldade conosco. Coisas de meu pai. Minha mãe, por outro lado, tinha outros pensamentos bem menos nobres. Veja você, Rita. Ela praticamente forçou o meu pai a matricular-nos nesta escola caríssima, usada exclusivamente pela elite. Na minha idade, Rita, a gente tem em mente coisas assim, inexpressivas, nada relevantes para os dias atuais. Mas me lembro como se fosse hoje, de minha mãe, lendo o regulamento da escola para meu pai. Sei de cor as palavras, frases e expressões. Se não, ouça:

“Aprende-se na escola uma concepção do masculino e do feminino que possibilita julgar natural que meninos e meninas desenvolvam determinadas competências, habilidades e sensibilidades. Aprende-se também que ocupamos uma posição nas hierarquias sociais, ou seja, uma escola constituída por gente que o próprio nome apresenta a pessoa.”

Você percebe a malícia da coisa, Rita? A perspicácia de minha mãe? Ela sabia muito bem que aquela escola distinguia muito bem as habilidades entre homens e mulheres, que segundo o seu pensamento, eram criaturas diferentes, que tinham objetivos distintos. Homem era homem, tinha seus privilégios, liberdade, podia namorar quem quisesse, ter seus casos, andar com as putas da vida e tudo estava arranjado. Como dizia a minha avó, depois do ato, sacudia as cuecas e estava tudo bem. Não respingava nada na sua reputação, mas a mulher, Deus me livre, ou ficava mal falada ou embuchada! Meu Deus, como estou ficando obscena. Deve ser a convivência com a Dulcina.

Mas o que eu estava falando mesmo? Ah, da minha mãe. Coitada, no fundo, ela só queria o nosso bem, mas do jeito dela, você sabe. Mãe tem dessas coisas, de escolher o futuro dos filhos. De pensar que pode pintar o quadro segundo a sua ótica. Mas, na maioria das vezes, o quadro vira um caos, uma mistura de tintas que não tem vanguarda que aceite! Eu, por exemplo, se pudesse interferir na vida do Luisinho, ele nunca tinha casado com aquela lá. Mas isso, é outra história, aliás, bem mais adiante daquele tempo!

E tem outro aspecto, Rita. Além disso, minha mãe identificava a riqueza das famílias que punham seus filhos naquela escola e queria esta vivência para nós também. Queria que fôssemos diferentes daqueles pés rapados que frequentavam a nossa casa, principalmente os amigos de Carlos, os quais deplorava. No fundo, o seu desejo era que nos uníssemos às pessoas de classe alta, para que crescêssemos, tal como eles. Um sobrenome conhecido tinha prestígio, abria portas, trazia dividendos. Some-se a isto, o fato de que as escolas católicas significavam o criadouro por excelência da formação de grupos de elite no Brasil, isto desde o período colonial. Imagine, devia pensar ela, matricular as meninas num estabelecimento renomado como esse, representava uma dupla operação de agregação e segregação social, pois mantinha a distância espacial e social dos grupos populares e nos mantinha no seio das famílias renomadas. Finalmente, para fechar o quadro, costumavam casar-se no mesmo grupo para perpetuar o bom nome da família e não arriscar misturas extravagantes.

Sabe Rita, lembro do primeiro dia em que tivemos que usar o uniforme. Pior do que usá-lo era o ritual de despirmos, na hora de dormir, pontualmente às 22 horas, as freiras apagavam as luzes do dormitório. Ah, era realmente muito engraçado. Imagine uma coisa dessas nos dias atuais. A meninada se revoltaria, na certa.

Minha mãe desceu do carro de praça e nos apresentou à Madre Superiora. Ela estava convenientemente vestida. Trazia na cabeça um chapéu de feltro, pequeno, estilo militar, que pela posição produzia uma leve sombra nos olhos. Mamãe era muito bonita. Os olhos claros, azulados. A boca bem desenhada, com um batom não muito forte, evitando parecer artificial. A pele branca de pó de arroz. Trajava um vestido do tipo que imitava uma saia com casaco, em tweed com pregas finas e envolto num cinturão de verniz. O sapato era fechado, preto, de salto grosso e um laço que fazia as vezes de cadarço, cujos pés ocultavam as meias de náilon que lhe emolduravam as pernas longas e firmes. Para completar, uma bolsa marroquin e Karoseal estampado, em preto e branco. Ela em nada destoava das demais mães que frequentavam a escola: estava muito elegante.

Conversaram um longo tempo e em seguida pareciam grandes amigas. A madre superiora apresentou a escola, após descrever toda a metodologia pedagógica tanto nos aspectos acadêmicos quanto religiosos. Interessava-nos, porém, o pátio que nos parecia imenso, num estranho formato em u, repleto de bancos sob árvores frondosas e um pequeno chafariz vindo da França dividia o hall distinguia o pátio da entrada aos prédios, à capela, aos apartamentos das freiras, aos dormitórios, enfim, a planta geral da escola. Algum tempo depois, alegando outras atividades, deixou-nos sozinhas.

Sentamos as três num dos bancos da escola praticamente deserta, por tratar-se num período de fim de ano. Minha mãe mostrava-se forte, mas eu percebia que seu olhar estava pesado, suas mãos até tremiam. Carmem chorava muito, agarrada em seu pescoço. Eu ensaiei algumas lágrimas, por pura imitação. Estava triste, mas ao mesmo tempo, muito animada com aquele ambiente novo, aquelas novidades que se me apresentavam. Na verdade, só uma coisa me deixava triste: o meu piano, que ficaria abandonado, à mercê da poeira diária, no qual somente tocaria quando voltasse para casa. Quando minha mãe saiu e a vi afastar-se no carro de praça, foi o único momento que senti meu coração apertado, como se a realidade se antecipasse ao sonho, ali, dura, petrificada, sem volta. Mas, logo em seguida, ao sermos chamadas e apresentadas aos nossos uniformes, já me dei por satisfeita. Carmem os detestou, e com razão. Eram um estorvo aos movimentos. A começar pelas roupas íntimas. Devíamos usar calçolas, cujos elásticos se prendiam às pernas, formando uma espécie de balão. Sobre os seios, havia uma faixa, não recordo muito bem o nome daquele veste, cujo objetivo era transformar-nos numa tábua. Imagine, aquela espécie de atadura envolvendo todo o nosso corpo. Carmem costumava sentir falta de ar. Na verdade, sempre achei que era fita dela. Não era pra tanto. Depois desses primeiros vestuários, colocávamos uma anágua de algodão que descansava nos joelhos. Sobre tudo isso, o uniforme azul-marinho. Uma saia pregueada casaco marinho sobre a blusa branca, de gola e punhos engomados. Nas pernas, meias que iam até os joelhos e nos pés, sapatos pretos, de salto baixo, bem lustrosos.

Ai,ai, ai, Rita, que engraçado... Eu já lhe contei sobre a hora de dormir, quando tínhamos de despir tudo aquilo? Ah, pois bem. Ficava uma freira na porta, aguardando que todas se acomodassem. Nós naturalmente nos despíamos do casaco, mas as demais peças exigiam um verdadeiro protocolo para serem retiradas. Enfiávamos a camisola imensa, de cambraia, que ia até os pés e em seguida, retirávamos por debaixo as demais peças, a blusa, a saia pregueada, a cinta que cobria os seios e nos deitávamos. Quando tudo estava quieto, a freira apagava a luz e se afastava. Não admitia um sussurro.

Mas imagine você, que certa vez, eu sonhei em ser freira! Acho que em virtude daquele cerimonial todo, aquela disciplina quase sagrada, aquela religiosidade... mas foi passageiro. Logo que botei o pé na rua e conheci o Jaime, percebi que o meu mundo era outro. Mas isso é história para outro dia.

Me parece que ia lhe falar alguma coisa sobre o Carlos, mas dei de ter estas falhas de memória – deixa pra lá, a gente ainda tem muito o que conversar, Rita.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Uma diretora valente

Amlid era diretora de uma escola de periferia. Lutara muito pela escola, nos tempos indefinidos, quando o aproveitamento dos alunos era zero, a liberdade era totalmente cerceada e poucos tinham acesso ao conhecimento. Lutara com seu próprio sangue, dando a sua juventude e energia à causa da aprendizagem.

Muitos eram contra o acolhimento dos alijados da pequena sociedade, inclusive acusando-a de rebelde, de ir contra aos princípios e normas do Estado. Mas ela não se acovardava, ao contrário, procurava os meios de realizar o seu projeto.

Até que o dia da vitória finalmente chegou e a maioria teve acesso aos livros, à merenda escolar, ao lazer, ao conhecimento na íntegra, respeitando a individualidade de cada um, inclusive com acesso à informação digital.

Apesar disso, forças se moviam, esgueirando-se pelos cantos das noites negras da desinformação e ignorância cultural, quando não pelo puro preconceito. Fizeram tudo para excluir de vez a valente Diretora.

Lutaram para tirá-la da escola, vasculharam a sua vida, fizeram inventários e dossiês para encontrar algum fato que a incriminasse, para finalmente expulsá-la. Não interessavam os benefícios aos alunos e à comunidade escolar. Não importavam os inúmeros que haviam ascendido ao patamar do ensino e educação. A única coisa que tinha valor era o fato de ocuparem o mesmo espaço de um grupo que não toleravam. Um grupo que passavam a odiar com todas as forças.

Amlid não recuou. Ao contrário, em cada acusação, esforçava-se em encontrar o culpado e puni-lo como mandava o estatuto da escola. Porém, por mais que seguisse a lei, era achincalhada de todas as maneiras.

Não suportavam uma mulher na liderança, mesmo que numa escola de periferia, onde havia tantos indesejáveis a utilizar os mesmos instrumentos pedagógicos sem a capacidade dos eleitos, segundo seus conceitos retrógrados.

Talvez Amlide tenha errado, quando pensou que sua gestão seria fácil tendo prometido uma aprendizagem segura, sem a intervenção de pedagogias externas. Entretanto, nada pode vencer a maioria da comunidade da escola que exerceu o direito fundamental do cidadão, que é o voto livre e fundamentado. Afinal, entre professores, alunos e pais, ela recebeu como prêmio, a maioria dos votos. Sua eleição foi exemplar.

Entretanto, Amlid terá muito que lutar em 2016, porque as forças conservadoras e retrógradas ainda lutarão muito para retirar o que recebeu de direito pelo povo escolar. Esperemos que a verdade se estabeleça e que a democracia da pequena escola de periferia persista.

E que o mundo não dê marcha à ré.

domingo, outubro 11, 2015

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

segunda-feira, setembro 07, 2015

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo.

Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.

O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotavam rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que se aninhava, encolhido, sem se mexer. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito. Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada.

Meu tormento durou mais ou menos 30 minutos. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via pública e não voltaria jamais para casa.

Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola o enxotou, imediatamente, ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de expulsá-lo de seus reservados.

Com este sentimento, entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade.

Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papéis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Em minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos.

Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.

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