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terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

sexta-feira, julho 29, 2016

UM CRIME NA CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 16

Capítulo 16

Júlio sentou-se na poltrona e observou que as paredes de certo modo revelavam uma falência inevitável no sistema carcereiro da cidade. Era como se ali houvesse o registro do abandono pelo Estado pelo sistema policial: no próprio prédio, havia pichações de todo o tipo, além de profundas deteriorações nas paredes internas, com o surgimento dos tijolos sob o reboco frágil. Na poltrona, cortes de canivete, nos quais inevitavelmente afundava os dedos.

Estava assim pensativo, quando o Delegado Borba surgiu, fechando com firmeza a porta. Júlio voltou-se com o olhar perplexo. O outro sorriu e comentou, irônico: — Detetive Júlio, para um homem da lei está se portando como um medroso. Não devia se assustar assim com a minha chegada.

Júlio levantou-se e apertou-lhe a mão, confiante.

— Não estou assustado, delegado. Só estava aqui, mergulhado nos meus pensamentos.

O delegado discursava, enquanto ajustava a cadeira para sentar-se atrás da escrivaninha.

— Quem pensa muito não age. O contrário da polícia, que não tem tempo de pensar.

Júlio sorriu e completou: — Trilhamos caminhos diferentes delegado Borba, mas temos os mesmos objetivos.

O delegado não respondeu. Acionou o mouse, revelando a página da web em que estava navegando, sem levantar os olhos, embora parecesse atento às palavras do detetive. Este, prosseguia, enfático: — Ainda bem que somos assim, obstinados no caminho da lei, não é mesmo?

O delegado ficou-o por alguns segundos, mostrando dúvida. — Não sei não, meu amigo. Nossos métodos são oficiais, a gente não brinca de mocinho e bandido – fez uma pausa e prosseguiu, deixando o mouse – mas parece que voltou aqui para trabalhar.

— Podemos dizer que sim, mas não totalmente. Eu já tinha interesse em voltar, pelo menos, passar um tempo aqui, na minha terra natal.

— Então, o que o traz aqui?

— Quero uma ajuda da polícia.

— Uma ajuda, detetive? O senhor já não é pago para o seu trabalho? Se nós o ajudarmos, como é que fica? Quem vai nos pagar?

— Como lhe disse, delegado, andamos por caminhos paralelos. Sei que a polícia pode fazer oficialmente, o que eu na minha modesta atividade, não posso.

— Podemos esclarecer os crimes.

— Não quero entrar nesta seara, delegado. No que concerne a profissões, cada um sabe da sua. Eu precisava que o senhor me fornecesse alguns dados, ou melhor, que fizesse uns interrogatórios.

O delegado Borba ficou observando-o, como se refletisse no que dizia. Não suportava a ideia de dividir o serviço da polícia com um detetive particular, principalmente porque atrapalharia ainda mais as investigações.

— O senhor acha que pode me pedir isso, detetive Júlio?

— Oficialmente, não. Mas em nome de nossa amizade, delegado.

Borba sorriu levemente. Em seguida, levantou-se e foi até a porta, verificando se estava bem fechada. Depois, dirigiu-se à janela e ficou algum tempo olhando para a rua. Júlio coçou a cabeça, inseguro. Sabia que o delegado era osso duro de roer, mas devia insistir, por isso acrescentou: — Sei que é um homem muito ocupado, mas nestes últimos casos que estão acontecendo na cidade... – o delegado o interrompeu, friamente, ainda em pé, próximo à janela – o que está vendo por aqui, detetive?

Júlio perguntou, indeciso : — Como assim?

Voltando a sentar-se, Borba retoma a pergunta: — vou lhe perguntar novamente, o que o senhor observa aqui, nesta delegacia?

Júlio olhou para as paredes descascadas, as infiltrações e os rasgos na poltrona. Nada respondeu. Borba, então concluiu: — Percebi que estava muito atento ao estado deprimente desta delegacia. É a isto mesmo a que me refiro, detetive. O senhor reparou nas portas com maçanetas desengonçadas, nas paredes sem pinturas, aparecendo o reboco. O senhor observou tudo isso e vem me pedir ajuda? Por acaso pensa que além deste cenário maravilhoso, o senhor vai encontrar um contigente ideal para auxiliá-lo nas suas investigações? Onde o senhor vive, detetive? Na Suécia?

— Por favor, delegado, claro que eu sei de tudo isso. Agora mesmo, quando o senhor chegou eu estava refletindo exatamente sobre o estado do prédio, mas o que eu preciso de uma pequena ajuda, nada que vá ocupar o seus homens por muito tempo.

— Os meus homens, detetive? Sabe com quantos homens disponho? Dois policiais e um escrivão, que agora, neste momento, está conversando na internet com a namorada, ou seja lá com que raio de gente ele conversa, mas acabei de ver quando fechei a porta.

— Não sei o que dizer, delegado.

— Pois não diga nada, meu amigo. Fique certo de uma coisa: eu não vou fazer o meu trabalho duas vezes só para ajudá-lo. Acho que deve usar as suas próprias armas.

— O senhor é um homem beligerante.

— E o senhor é assim tão pacífico?

— Eu só queria que tivesse uma conversa informal com os suspeitos, tenho alguns.

— A que crimes o senhor se refere?

— Acredito que tenham alguma relação, os crimes dos turistas assassinados e o da jovem Taís.

—O processo relativo aos turistas foi arquivado. Não posso reabrir o inquérito policial, se não há nenhuma novidade.

— A menos que tenha alguma relação.

— Por que diz isso?

— Tenho as minhas ferramentas, delegado. Mas acho, que deveria fazer um interrogatório com Rosa, a maestrina, com o mecânico Paulo, com Ana, adolescente que diz que ouviu o grito da moça, quando caíra no rio e dos garotos do grupo dela.

— Garotos?

— Especialmente Carlos, o filho do prefeito. Tenho certeza de ser for investigado, muita coisa pode sair daí.

domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

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