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sábado, novembro 19, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 21

Nosso folhetim dramático e exagerado é publicado às terças-feiras e aos sábados. A seguir mais um capítulo, agora nos capítulos finais, no qual os desfechos aos poucos vão acontecendo. Boa diversão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/chá-preto-e-branco-bule-de-chá-1001654/

Capítulo 21

Santa desliga o celular e se surpreende com a visita de Letícia. A filha dificilmente apareceria, a menos que fosse chamada para algum encontro de família, como no caso das reuniões que aconteceram há pouco. De todo modo, estava feliz com a presença da filha, embora a achasse um pouco estranha. Leticia tomava chá ao seu lado, na varanda que desembocava num jardim enorme, do qual se avistava algumas montanhas. O por do sol ficava muito bonito, naquela região.

Santa observa a filha com carinho e mostra-se afável. Percebe, no entanto um certo desconforto, que não caracteriza a personalidade de Letícia, afinal sempre categórica e arrogante.

– Fico muito contente que você tenha vindo, Letícia. Anda sempre tão ocupada com o seu serviço, não consegue encontrar um tempo para nada a não ser o seu escritório e o tribunal.

– Não é tanto assim, mamãe. Na verdade, ando um pouco preocupada, com vocês dois: Você e papai.

– Seu pai está bem. Não se queixou mais de nada.

– Mas e você, com aquela história de dividir o patrimônio, de manter aquelas condições absurdas. Estas coisas ainda estão em pé?

– Claro, Letícia. Foi uma missão que recebi de Nossa Senhora e não posso me furtar a obedecê-la. Ela quer o bem das pessoas, a união da família.

– Mamãe, não acha que está exagerando?

– Nós já conversamos sobre isso, Letícia. Tivemos uma reunião para discutir. Para mim, é assunto encerrado.

– Mas Linda me disse que a senhora não anda nada bem.

– Como assim?

– A senhora anda nervosa, esquecendo de coisas importantes, parece que anda alheia a tudo que acontece em casa.

– Esta Linda está me saindo pior do que a encomenda. Mas você acredita nela ou em mim, Letícia?

– Em você, mamãe, é claro. Mas ao mesmo tempo, acho tudo um absurdo. A senhora acha que porque uma bússola emperrou virada não sei pra onde, e a partir de tudo isso, resolveu mandar nas nossas vidas, nós temos que fazer o que quer?

– Minha filha, eu fui bem clara. Contei-lhe sobre o que aconteceu, falei sobre a ilha isolada com a qual eu terei que participar de sua vida, de sua gente, de me transformar numa parceira e utilizar a parte de meu patrimônio para ajudar aquela gente. E se for o caso, ir embora desta casa para sempre.

– Como pode pensar neste absurdo! A senhora parece não estar bem da cabeça!

– É o que querem imputar em mim, uma loucura, não é isso?

– Eu não disse isso, mamãe.

– O que importa, agora? Você não acha que é muito fácil fazer o que eu peço, o que a Virgem me ditou? No seu caso, seria o privilégio da maternidade, terem um filho e se tornarem mais religiosos. O que isto tem de mal, meu Deus?

– Tem que ninguém pode dispor da vida das pessoas assim, de uma hora para outra.

– Mas eu dei um tempo, seis meses. É só ter um pouco de paciência e boa vontade.

– Acha que isso é honesto, mamãe? Dividir a nossa fortuna, o nosso patrimônio em prol de uma causa que nem sabemos muito bem do que se trata. Essa gente dessa ilha, acha que poderá fazer alguma coisa por eles?

– O bispo Martim vai me ajudar.

– O bispo Martim é um canalha. Teve até um caso com a mãe de meu pai.

– Foram coisas do passado e uma das condições, você sabe, era ele contar para a família e se redimir.

– São todos uns hipócritas!Basta abrir o jogo, se confessarem uns aos outros e tudo fica muito bem. O Ricardo andava me traindo, era isso que ficou bem claro na reunião e eu tenho que aturar! Mas ele se alinha com o que penso, ou cai fora.

– E você, o que pretende fazer Letícia?

– Eu vim aqui pedir-lhe que desista desta loucura, mamãe.

– Não posso, minha filha. E saiba, que estou tendo oposição em muitos setores desta casa. Muita gente está contra mim.

– É claro, imagine Tavinho querer levar uma vida regrada, mudar de curso ou coisa parecida. E o próprio Alfredo, acha que ele vai casar algum dia? Ponha na sua cabeça de uma vez por todas, Alfredo é gay, ele jamais casaria com uma mulher, está me entendendo? A senhora não pode obrigá-lo a isso!

– Por que não? Por que não satisfazer a Virgem?

– Porque é desumano, mamãe!

– Então me diga, a reunião que esteve com seu pai não foi desumana? Por que não me convidaram? E Linda, naquela desfaçatez, você acha que ela não está contra mim e em conluio com o seu pai? Sabe o que eles querem que aconteça, que eu seja dada como louca e fiquem com toda a fortuna. Todos vocês!

– Mamãe, a senhora está sendo injusta. Meu pai está preocupado com a senhora. É verdade que a senhora tem proporcionado dúvidas, porque as coisas que diz, que pensa não apropriadas, pense bem.

– São de uma pessoa louca, é isso.

– Não foi isso que quis dizer.

– Mas foi o que pensou, porque é mais fácil acreditar que eu seja louca, do que ter fé, acreditar que eu vi a Virgem se materializar aqui, na minha casa e apontar a bússola para aquela região, aquele povo. Ela só quer o bem de todos e a verdade.Bastam que aceitem se confessarem e mudar de vida, só isso.

– Só uma coisa eu não entendo nesta história toda.

– A que você se refere.

–À presença de Linda, que a senhora tanto insistiu para que ela participasse da reunião. Agora diz que ela está em conluio com o meu pai. Por que a presença dessa mulher era tão importante na nossa reunião? Já bastava o chato do bispo Martim, ainda tinha Linda. Por que mamãe?

– Seu pai não explicou para vocês? Não, ele não teve coragem, é claro. Decidiu ir por outro caminho mais fácil, insinuando que eu havia enlouquecido.

– Então me fale, me diga a verdade. Eu quero estar ao seu lado, eu quero ouvi-la.

– Temos um jardineiro nesta casa, que foi trazido por Linda para trabalhar aqui. Até poucos dias atrás, morava com ela, naquela casa dos fundos, mas agora se mudou para uma antiga casa onde morava antigamente, antes de ser preso.

– O que? Tem um presidiário que trabalha aqui?

– Na verdade, ele está em licença condicional, pois já tem direito, ficou preso durante cinco anos e teve bom comportamento.

– Mas isto é uma verdadeira catástrofe, um ex-presidiário trabalhando nesta casa.

– Pois bem, ele é sobrinho de Linda. Informe-se mais sobre ela, converse com ele, convide seus irmãos a fazê-lo, de repente descobrem mais coisas do que eu. Mas olhe, ele apesar de tudo, é um bom rapaz, eu até o contratei para ajudar-me.

– Ajudá-la? Um bandido!

– Fernando não é um bandido, Letícia. Ele é um homem que teve alguns percalços, andou com maus elementos, mas quer se redimir. Ela vai ajudar-me a descobrir tudo o que estão tramando sobre mim. Se você não acredita, procure informar-se. Fale com Tavinho, quem sabe, ele tem outras ideias.

Letícia fica calada. Talvez sua mãe esteja inventando toda aquela história e sua insanidade esteja aumentando a cada dia. Mas ainda havia alguma coisa dúbia nisso tudo, a presença de Linda na reunião, a qual ela não informara o motivo.

– E quanto à presença de Linda, você ainda não esclareceu.

– Pois bem, já que seu pai não lhe disse, nem aos seus irmãos, eu vou contar-lhe agora. Isso fazia parte de uma das condições e Linda, que fora minha empregada e amiga por tanto tempo, tinha que desabafar, redimir-se também do erro e contar a todos a verdade. Também seu pai seria desmascarado e a verdade seria completa, para ambos os lados.

– Não estou entendendo nada.

– Linda teve um filho com seu pai.

– O que? Só faltava essa! Meu pai, com aquela mulher? Não pode ser mamãe, não pode ser!

– E eu fico me perguntando, se os dois não querem ficar juntos e por isso a solução seria me porem a escanteio. Você não pensa assim, Letícia?

– Eu não sei o que pensar, mamãe, agora não sei de nada. Tenho vontade de encontrar aquela mulher e quebrar as fuças dela!

– Não, na verdade precisamos examinar todos os lados. Saber se ela está unida a Sandoval, ou se está planejando sozinha ou se ele tem os seus próprios planos. Mas desconfio de que um está contra o outro, embora fingindo que possuem o mesmo objetivo.

– E você descobriu alguma coisa?

– Descobri. No dia da reunião de vocês, eu pedi a Linda que gravasse toda a discussão atrás da cortina, mas ela disse que não havia conseguido, que tinha se enganado ou coisa parecida. Mas eu descobri que havia gravado tudo.

– E como, a senhora pegou o celular dela?

– Não, ela enviou a gravação por mensagem para uma amiga, uma mulher que a acompanha na igreja, sempre que vai ao rosário. Eu a procurei e pedi o celular, o qual entregaria mais tarde. É uma senhora simples, que não entende muito da coisa. Foi fácil conseguir.

– Mas como soube que estava com ela?

– No dia da reunião, fui à igeja, lembra? Sentei-me ao lado dessa senhora, chama-se Lúcia e percebi que ela recebia uma mensagem intermitente. Ela não entendia nada, eu então tentei ajudá-la. Era a gravação na íntegra de Linda.

– E ela, o que fez?

– Nada, deu-me o celular para que eu passasse a gravação para o meu. Entreguei-a depois, dizendo que não era nada demais. Apenas uma mensagem de Linda.

– E Linda, não descobriu nada?

– Acredito que não. Esta senhora é muito atrapalhada nestas tecnologias, com certeza nem tocou no assunto. Entregou a gravação para Linda e ficou nisso mesmo.

– Então, o que faremos mamãe, eu estou apavorada com tudo isso.

– Eu dei a sugestão de vocês procurarem este rapaz, ele sabe muito mais do que parece. Não vá sozinha, convença o Tavinho, que é muito mais atilado para estas coisas.

– E sua situação com papai, como está?

– Distante, cada vez pior. Nós quase não nos vemos, ele passa o dia fora. Acho que além da empresa, ele vai para as rodadas de jogos. Mas tudo bem, as minhas condições foram dadas e não voltarei atrás. Agora me diga, Letícia, você acredita em sua mãe? Acha ainda que sou uma maluca, uma alucinada?

– Não sei de nada, mamãe, não quero me precipitar, mas tenha certeza de que o que me disse, me balançou bastante. Vou falar com Tavinho sim, quem sabe, a gente descobre mais coisas sobre esta mulher e a põe no olho da rua!

Neste momento, Linda bate à porta, perguntando se precisam de mais chá. Letícia a olha com frieza. Ela continua, sorridente.

– Fico tão feliz que minha amiga não esteja sozinha. Ela anda tão solitária, ultimamente.

– Linda, limite-se a servir o chá. Deixe que eu cuide da solidão de mamãe.

– Eu pensei que poderia ajudá-la, Dona Santa tem tido umas crises bem difíceis.

– De que está falando, Linda? – pergunta Santa, intrigada.

–Não me leve a mal, Dona Santa, mas é que nós já conversamos sobre isso, lembra?

– Não, não lembro de nada.

– É verdade, aí é que está o problema.

– Linda, não tenho paciência para papo fora de hora. Quero conversar com minha mãe, por favor, se você nos der licença.

Linda retira-se, piscando o olha para Santa, com certa cumplicidade. Santa suspira, desolada.

sexta-feira, agosto 19, 2016

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas.

Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com minhas redações, meus cadernos e principalmente com as notas. Exigias o que por obrigação eu deveria obter: o máximo. Não ecomizavas nos números, muito menos na disciplina.

Por certo, estes caminhos que me fizesses trilhar com firmeza, me levaram a outra trajetória, bem distante dos teus olhos: a disciplina com que experenciei em minha vida e procurei transmitir a minha filha. Claro, acima de tudo, o amor. Este, mãe, nem precisava falar, né?

terça-feira, julho 12, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 13º CAPÍTULO

Na conversa com Rosa, o detetive Júlio Ramirez descobre que ela está assustada com a onda de crimes por ingestão indevida de insulina a quem é saudável. Um crime que não deixa marcas. Confusa, Rosa está mais temerosa, porque contraiu a doença. Mas há outra expectativa de Júlio em relação a ela, o seu relacionamento com o mecânico Paulo e o assassinato da jovem Taís.

Júlio volta para o hotel refletindo sobre tudo que ouvira. A história de Rosa estava muito mal contada. Afinal, defendera o mecânico com muita firmeza, ao mesmo tempo que acusava a vítima de ser uma leviana, revelando todo o ódio que sentia. Por fim, acusara o médico, dizendo que o seu carro estava no local do crime. Mas como sabia que o carro estava lá?

Em poucos dias, conhecera uma mulher com traços completamente distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento. Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Mas talvez estivesse aí, a chave do problema. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que injetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. Isso ele precisava descobrir. Por isso, ligou para o médico para esclarecer sobre o carro. Segundo Ricardo o informara, ele fizera uma caminhada perto do rio. Mas teria levado o carro até lá? Se foi de carro até certo ponto, para prosseguir o caminho a pé, a menina não mentiu. Ana afirmou ter visto um carro conversível e disse que era do médico. Agora Rosa confirmava que o carro estava perto do rio, no dia do crime. Ricardo atende o celular depois de muito resistir, entretanto não havia como fugir do detetive. Era insistente, e talvez tivesse alguma novidade que precisasse saber.

– Então, detetive, quer saber alguma coisa ou tem alguma novidade para mim?

– Por enquanto, não tenho nenhuma novidade, que valha à pena, dr. Ricardo. Queria fazer-lhe uma pergunta. Naquela tarde-noite, você disse que caminhou pela beira do rio para se acalmar. Me diga uma coisa, você foi de carro?

– Claro que não, o meu carro estava na oficina.

– Na oficina Silva, naquela em que trabalha Paulo?

– Essa mesma. É a única na cidade.

– Mas então, alguém usou o seu carro naquele dia.

– Como assim?

– Deixa pra lá, me diga, quando entregaram o carro pra você?

– Se bem me lembro, logo no dia seguinte. Não era nada grave, apenas a bateria que estava fraca. Mas por que pergunta? Quem andou com meu carro?

– Não se preocupe com isso. Obrigado pela informação. Grande abraço, doutor. Descanse.

– Espere, o senhor não me respondeu…

– Passe bem, doutor Ricardo.

Júlio senta-se numa pequena escrivaninha em seu quarto e começa a fazer um esquema. Faz ligações entre os envolvidos e pensa numa maneira de acareação, embora este seja um procedimento policial. Jairo havia dito que segundo a perícia, a moça havia sido realmente assassinada. Então não tinha porque conjecturar sobre suicídio ou acidente. Ela foi jogada no rio e os ferimentos revelam que foram feitos antes da queda. Além disso, provavelmente tenha sido empurrada para a ribanceira após a ponte, onde as águas são mais profundas e com muita força, além de ser haver muitas pedras submersas. Precisava falar com o delegado para que conseguisse juntar as pessoas. Ficou muito tempo fazendo verdadeiras acrobacias mentais, por fim, resolvera deixar tudo para o dia seguinte. Os esboços já estavam de tamanho suficiente para que se desenvolvessem mais tarde. Decidiu dar uma navegada na internet e depois leria um livro, para cair no sono. Deitou-se só de cuecas na cama, pois fazia certo calor, no quarto. Não fez nada do que se propusera e caiu num sono intenso. Começou a sonhar com o passado, a pequena casa que morava não tão distante do rio, os pais, os irmãos que partiram para longe, a mulher que o deixara há pouco tempo, o livro que gostaria de escrever. Estava assim mergulhado em sonhos entremeados com pesadelos, porque alguma coisa o deixava angustiado nas imagens que seu cérebro produzia, na impossibilidade de discutir os problemas que envolviam a pequena cidade natal.

quinta-feira, junho 23, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 8º CAPÍTULO

CAPÍTULO 8


Depois desta conversa com Jairo, os dois se separaram e Júlio voltou para o hotel. Na portaria, deparou-se com outra pessoa. Certamente, não era o turno de Rosa.

No quarto, tomou um banho longo, vestiu um pijama e deitou-se um pouco. Adormecera talvez por meia hora ou mais. Estava com fome, aquela cachaça o deixara faminto. Ligou para a recepção, perguntando se serviam jantar. Não era hábito do hotel, até porque era um estabelecimento de pequeno porte, mas adiantariam o lanche da manhã para ele, com alguns ovos fritos e talvez, até acrescentassem um copo de vinho.

No restaurante do hotel, apenas algumas luzes foram acesas, iluminando principalmente a mesa onde Júlio se encontrava. Tomara o restante do vinho e observara a rua pela vidraça. Era uma avenida estreita, com pouquíssimas residências. Sabia que a alguns quilômetros apenas ficava o rio que dividia a cidade, mas cuja região mais desolada ficava após a ponte. Talvez meia hora dali. Recordou a sua infância, a vida pacata na pequena cidade, os pais trabalhadores rurais que com dificuldade lhe possibilitaram estudar e afastar-se em definitivo para a capital. Pouco os viu desde que saiu da região até que faleceram e desde então, nunca mais havia voltado.

Agora, entretanto, sentia falta dessa simplicidade em encarar os fatos de maneira tão objetiva e ao mesmo tempo estranha do povo da região. Praticamente todos se conheciam, falavam de tudo e de todos e um acontecimento trágico mexia com a comunidade. Talvez por isso, seu amigo Jairo e o próprio dono do bar estivessem tão envolvidos com o assunto do assassinato ou suicídio da filha do farmacêutico. Era razoável.

Estava tão entretido em seus pensamentos que nem percebera o garçom ao seu lado, perguntando se precisava de alguma coisa. Logo avisava que fechariam o restaurante para se preparem para o outro dia. Júlio percebera que devia retirar-se e se afastou, cumprimentando o rapaz e dirigindo-se ao elevador, porém foi obrigado a voltar, informado de que alguém o esperava no saguão. Surpreso, perguntou de quem se tratava. Seria o seu amigo Jairo? O garçom mostrava-se nervoso ao dizer a Júlio quem queria falar-lhe naquele momento. Júlio o olhava, intrigado. O outro, completou:

— Não, não é seu amigo Jairo, senhor, que quer falar-lhe. Trata-se de Golias. Desculpe, é como todo mundo chama o farmacêutico da cidade.

Farmacêutico? Então o pai da moça assassinada queria falar com ele. Mas não teria nada o que conversar. O que poderia querer… -– Nisso, o homem a quem o garçom se referia, irrompe na sala e dirige-se a Júlio revelando intensa ansiedade. – Por favor, preciso falar-lhe. Preciso da sua ajuda.

Júlio pensou em seguida que não poderia ajudá-lo em nada, mas ficou quieto. O homem insistiu:

– Sei que o senhor já morou nesta cidade, meu pai que era enfermeiro, conhecia muito bem a sua família. Se não se importa, eu gostaria de falar-lhe.

Como não tinha como recusar, Júlio pediu que o acompanhasse até o quarto.

Júlio abriu a porta com dificuldade. Sua mão tremia, mas não estava temeroso com a presença do homem. Já enfrentara centenas de casos difíceis, homens traídos, políticos presos em falcatruas, mulheres que investigavam a vida de maridos no auge do ódio doentio, mas estava especialmente confuso com aquela presença. Talvez não estivesse preparado para a visita, queria descansar, aproveitar a aposentadoria, escrever o seu livro, rever os poucos amigos da cidade, encontrar o ritmo há tanto esquecido daquele povo. Contudo, aquele homem parecia disposto a falar-lhe uma coisa muito importante. O que pretendia contar-lhe?

Ao entrar, ofereceu-lhe a poltrona próxima à cama. Sentou-se numa pequena cadeira ao lado da cômoda, em seguida.

—Então, o senhor queria falar comigo?

—Peço desculpas pelo adiantado da hora, aqui na cidade, a gente costuma dormir antes das dez.

– Quanto a isso, não se preocupe. Eu durmo muito tarde.

—Bem, o meu nome é Lucas, como o rapaz do hotel disse, sou o farmacêutico da cidade.

— Sim?

—Pois é. Por ironia, me chamam de Golias, veja você, com a minha baixa estatura, isso é até uma piada, além de ser bastante franzino.

Júlio fez uma pausa, como se medisse as palavras. Por fim, disparou:

– Mas o senhor não veio me procurar para me falar sobre a sua estatura, não?

O homem levantou-se, enquanto falava.

– Não, claro que não! – E se dirigiu a janela que dava para a frente do hotel. Olhava para baixo, um ar desolado. Os olhos miúdos, algumas rugas permanentes e as olheiras davam um ar de desamparo, como se houvesse passado muitas horas sem dormir, nem se alimentar.

Júlio ficou observando-o, na espera de que falasse alguma coisa. Penalizou-se com a figura que devia ser um resquício do homem que era, tão desconsolado e triste parecia. Não lhe saía da cabeça a tragédia da filha.

Neste momento, ele voltou da janela e correu ao seu encontro, quase gritando.

– Preciso da sua ajuda, Sr. Júlio, preciso da sua ajuda!

Júlio também levantou-se e tentou conduzi-lo à poltrona.

— Por favor, se acalme. Seja o que for que precisa de mim, tem que me contar com calma. Não se desespere.

O homem começou a chorar convulsivamente. Segurava a cabeça, em prantos. Júlio não interveio e esperou que se acalmasse.

Aos poucos, o homem se recompôs, respirando fundo, olhando para o nada.

—Quer beber alguma coisa?

— Tem um copo d’água?

Júlio entregou a água e voltou a sentar-se, desta vez, na própria cama.

—Desculpe o meu desabafo. Eu não poderia ter feito isso, foi um constrangimento enorme pra mim, mas estou muito nervoso, entende?

— Não se preocupe com isso, eu entendo que esteja passando por momentos difíceis.

—É sobre isso que vim lhe falar. O senhor sabe do assassinato de minha filha.

—Foi a primeira coisa que soube quando cheguei. Estava no bar conversando com um amigo meu e ele contou-me o ocorrido.

— Sim, Jairo, foi ele que me convenceu a falar com o senhor! Júlio irritou-se com o amigo. Como ele foi capaz de dar aquela sugestão infeliz ao homem. Agora compreendera, porque ele lhe contara a história com uma riqueza de detalhes, já estava com o objetivo formalizado.

—Bem, sei que é detetive, e que pode me ajudar.

— Eu sou aposentado.

—Melhor assim, tem mais experiência. Por favor, eu lhe suplico. A minha filha foi assassinada por aquele miserável, aquele médico maldito que veio só pra destruir a nossa família, a nossa vida! Um homem da cidade, cheio de salamaleques, cheio de bossa, minha filha se encantou e deu no que deu! Ela se apaixonou por ele, acabou fazendo o que não devia. Ele até prometeu casar com ela, ela acreditava nisso! Mas ele tinha outra na cidade, na capital. Ele tinha noiva ou namorada, não sei, só que estava decidido a acabar com tudo. Como ela insistiu, como disse que estava grávida e contaria para a noiva dele, ele acabou matando-a! Ele matou a minha filha!

O homem falou tudo de um supetão. Não havia como interromper, nem argumentar. Finalmente, quando conseguiu, Júlio perguntou:

– Mas me diga uma coisa, essa história de gravidez, eu não sabia. E depois, pelo que saiba eles se conheceram há pouco menos de um mês.

— Ela teve a triste ideia de inventar esta bobagem e o pior é que ele acreditou. Deu no que deu!

—Então este médico é um idiota, convenhamos! Não seria mais fácil ele abrir o jogo, dizer que não casaria, e depois contaria para a noiva, se fosse o caso? Afinal, nos dias de hoje, uma gravidez não é garantia de nenhum casamento. E depois, se era mentira…

— O problema todo é que a tal moça da cidade, a namorada é filha de um grande empresário no ramo hospitalar. Isto significa o futuro dele, entende? Por isso a matou, eu não tenho dúvidas!

— Após contar-lhe toda a história e descrever posteriormente em detalhes o que julgava o encontro do médico com a filha, ele perguntou se Júlio aceitava o caso.

Júlio experimentou uma certa euforia que costumava sentir em frente a um caso novo, quando estava na ativa. Por um momento, sentiu-se mais vivo do que nunca e muito produtivo. A biografia, o livro que ficasse para trás. Entretanto, havia um porém.

— Espere, Lucas, eu vim para cá com um objetivo. Na verdade, uma mulher chamada Sara quer falar comigo, quer me contratar para alguma coisa. Eu preciso saber antes do que se trata, entende? E depois, pode haver outra possibilidade em relação ao caso de sua filha.

—Como assim?

— Não lhe garanto, mas dependendo da situação, talvez eu aceite o seu caso, mas isso não quer dizer que você terá uma resposta satisfatória. Eu posso encontrar outro assassino, ou talvez, provar que foi apenas um suicídio.

—Isso não acontecerá, porque eu tenho certeza de que aquele canalha a matou! Você então aceita o caso?

Quando o homem retirou-se, Júlio elaborou um esquema dos procedimentos que teria a partir daquele dia. Não estava certo de que pegaria o caso, mas e se os outros crimes estivessem relacionados? E se Sara o havia chamado exatamente para falar sobre isso? Um dos primeiros passos, seria o que deveria ter feito desde o primeiro momento em que pisara na cidade, falar com a mulher que o chamara. Foi isso o que planejou para o dia seguinte.

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