Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
sexta-feira, setembro 20, 2024
Do outro lado do rio
quarta-feira, janeiro 20, 2021
Motor estagnado
O homem sonhou que atravessava a lagoa e de repente, o barco parou bem no centro, entre as ilhas e o cais, como se fosse uma imposição dos dias atuais.
Não, não era na direção de São José do Norte, nem na direção do centro da cidade, por ali, perto do mercado público. Na verdade, era um pouco mais longe, lá pelas bandas do bosque. E o cais, que ele chamava, não passava das margens arenosas que cercavam seu quintal aramado. Estava lá, entre dois pontos. A referência da margem da casa e a ilha defronte. Talvez fosse Porto do Reino, pensou. Não, ele não pensou, ele sabia.
Ficou ali parado, pensativo, sem qualquer reação. Nada que fizesse, produzia algum movimento no barco. Motor estagnado.
E as águas também não fluíam, como o tempo. Tudo parado, quieto. Estranho. Mas estava vivo. Talvez tivesse uma iluminação, pensou, embora soubesse que era um sonho. Ele estava dentro do sonho e não conseguia acordar, mas sabia que estava dormindo.
O céu parecia aproximar-se do barco, trazendo um foco de luz que brilhava ante seus olhos, agora um tanto aflitos. Ficaria eternamente ali, naquela posição?
De repente, um pequeno movimento. Um barco que se deslocava da margem, ao longe, lá, naquela região, um tanto escura. Também vinha outro da margem oposta, bem em sua direção, tal como o primeiro, como se houvessem combinado entre si.
O homem olhava para os lados, apreensivo. A luz na sua fronte aumentava e uns pequenos raios teciam arcos-íris nas leves ondas em formação. Sim, porque tudo agora se mexia lentamente.
De repente, outros barcos foram surgindo do nada e aos poucos, se cruzavam como se estivessem numa procissão esperando a santa padroeira. E no movimento dos barcos, o barco do homem começou a se mover também, embora sem sair do lugar. Apenas o movimento resultante dos demais. E vários foram tomando conta e chegando perto, cada vez mais perto, até emparelharem com o dele e fazendo uma aglomeração de barcos enfileirados.
Quem os visse através da visão de um drone, por certo achariam interessante aquele cenário.
O homem compreendeu então que sua missão chegara, enfim, e ele começou a rezar e a agradecer a presença dos barqueiros. Todos abaixavam a cabeça quando ele, sem perceber que tinha uma ótima oratória, fazia um discurso convincente e produtivo. Só então percebeu que naquele barco sozinho e triste, havia luz e esperança. E agora, que estavam todos juntos, a luz diminuía aos poucos e uma neblina surgia, assim como nuvens escuras toldavam o céu. E ele nunca mais viu aos que se referia. Do sonho? Entubado, nunca mais acordou.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/pôr-do-sol-oceano-barco-humano-mar-3689760/
sábado, junho 08, 2019
A bruma que apascenta
Que quisera eu agora? Que quisera saber do mar, das ondas que rebuliçam no cais, nos degraus que servem de apoio aos homens que chegam com mais facilidade em suas embarcações? Que me importam as oferendas com quindins, algumas velas e garrafas de aguardente? Talvez elas digam alguma coisa a quem procura afeto e fé. Não sei.
Mas, e as vísceras de peixe atiradas nas águas, como se fosse a regra, livrar-se do entulho que deveria ir para o lixo orgânico?
Que quisera saber dos pensamentos, dos desejos, das buscas e sonhos dos que jazem por ali, sentados atrás de colunas ou postes fumando um baseado e olhando perdidos para a lagoa. O que buscam em seus sonhos se é que os tem?
O que importam os gritos da mulher que vende balas ou doces ou pastéis, ou quaisquer outros alimentos, enquanto se sente de algum modo ultrajada pelas cobranças dos vendedores estabelecidos, bem a sua frente?
Que importa a maré de pessoas que descem da lancha e se dispersam rumo às casas, lojas, talvez bancos ou bares. Quem sabe, levam consigo a brisa da qual fizeram parte na lancha, ou a dispersam pela bruma que as apascenta.
Que importam os meninos que se agrupam junto ao cais, na brecha dos guardas municipais, para mergulharem, talvez na única praia em que são valorizados. Uma praia que não é praia, apenas aventura na lagoa e exibição de corpos e potências, força, vitalidade e luta pela sobrevivência do orgulho! Para quem tem tão pouco, talvez.
Por outro lado, olhar para o homem de saias, patético e triste, não pela maneira de se vestir, mas pela deterioração da lucidez que aos poucos desaparece. Pior ainda, observar os risos, as palavras de baixo calão, o olhar acusador de quem julga o que o seu interior experimenta.
Por outro lado, perceber o motorista irritado, na picape destinada ao campo e ao off road, com grandes motores a diesel e tração 4x4, entretanto preferida pelos citadinos em plenas ruas centrais, ocupando o espaço de dois carros de passeio. Daí a sua indignação e protesto junto a pedestres desavisados, bicicletas ao deus-dará e motos enviesando-se entre os contornos engarrafados das ruas estreitas.
Como me preocupar com estas desavenças e desconfortos sob todos os sentidos, se não há guarida entre as os sentimentos plenos do interesse comum, do direito do cidadão, da educação e a sensibilidade em se reportar ao que se aprendeu na infância e se carregou para toda a vida: respeito e gratidão.
Quisera não me importar com tudo isso, mas na verdade, há muito mais a refletir no que vejo e sinto, provavelmente uma onda que se alastra de longe e não é de agora, mas que se pronuncia com muita força, pensando que é dona do mundo. Talvez sim, aquele mundo em que todos aqueles que citei no início sejam alijados deste contexto atual.
terça-feira, outubro 30, 2018
A hóstia na boca e a arma na mão
Hoje, vinha pela ladeira e sentia que meus pés afundavam nas estruturas tortas de paralelepípedos da Riachuelo, a rua protegida pelo rei. Na verdade, a ladeira se produzia em meus pensamentos que sucumbiam em tortuosas reflexões.
Numa esquina, entre a conversa de um amigo, observei a cena de um grupo de homens que apontavam para dois rapazes que atravessavam a Benjamim, provavelmente em direção ao calçadão. Com olhares furiosos, exclamavam que vivíamos um novo tempo, em que todos os gays que se mostrassem afeminados, como aqueles, seriam gravados tendo o vídeo divulgado nas redes sociais, após levarem uma boa surra (usaram um termo pior). Afinal, tinham a permissão de um líder que os afiançava.
Quando voltei a andar, de pernas quase trôpegas, voltei-me para o acinzentado da laguna. Nem sei se o céu estava azul, mas as águas pairavam revoltas no cais. Olhei-as, ensimesmado e lembrei das últimas palavras de um moreno barbudo, que parecia realçar a sua “descendência ariana”, afirmando que se o tal gay fosse negro, aí sim, levava porrada. Então, me veio à mente a música “A carne”, interpretada por Elza Soares, que ouvi num show e tenho em meu Spotfy, a qual possui os versos mais pungentes que podemos ouvir:
“A carne mais barata do mercado é a carne negra
vai de graça pro presídio
e para debaixo de plástico
que vai de graça pro subemprego
e pros hospitais psiquiátricos”
Então, lembro que pessoas que fazem estas afirmações homofóbicas e racistas parecem gente de bem. São pais de família, religiosos e se destacam na sociedade. Sim, a hóstia na boca e a arma na mão, a bíblia aos olhos e os punhos cerrados de ódio.
Não sei se peço ajuda aos santos, não são os mesmos a quem eles recorrem?
quinta-feira, abril 26, 2018
DE MINHA NATUREZA
(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.)
Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma
que há muito não via na cidade. Era como se o inverno
rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das
casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e
pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu
olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina
aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais
sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do
ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade
do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da
matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia
ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez.
Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente,
afinal, naquela bruma toda, nem o veriam. Fumou de
morado por longos e infinitos minutos. Depois olhou a nuvem
que fazia com sua própria fumaça e sorriu. Estava colaborando
para o caos.
Ficou ali, não sabe quanto tempo, pensando na mulher que
ficara em casa, nas contas que deixara sobre a mesa, nos boletos,
nos cartões de crédito, no financiamento da casa. Mas
aos poucos, foi esquecendo-os tal como a neblina que avançava
mais e mais. O céu se juntava no canal, numa coisa só, indefi-
nida. Os barcos sumiam, quanto mais os navios, que passavam
bem mais longe. Parece que o caos aumentava e não via ninguém
a sua volta. A maconha o deixava leve, cabeça encostada
num poste, as pernas no gelado do cais. O mundo, para ele, riscava
num fósforo de churrasco, que se acendia e apagava, numa
chama tépida e sem graça. A vida dava ré e ele regurgitava
em raiva, das coisas que não lhe pertenciam ou que lhe tinham
tirado: o direito à moradia decente, à liberdade de andar na
rua sem ser assaltado, ao término da faculdade pela falta de
dinheiro, o tempo perdido num trabalho monótono.
Uma menina com a roupa enxovalhada se aproximou e ficou
observando-o, ali, sentado, como se avistasse o Buda ou uma
alma iluminada. A mãe estaqueou um pouco distante. Sentiu
uma lágrima correr na face encardida do sol. Deixou que se
aproximasse, deu-lhe todos os trocados que possuía. Mais do
que isso, a beijou no rosto. A mãe do outro lado, se aproximou
assustada pelo afeto inadequado. Não importava, ele amava as
crianças e odiava a situação nefasta em que o mundo tinha se
transformado pelos políticos e ilegítimas autoridades.
Elas se foram e de longe observou as duas sombras comprarem
o que supunha ser um lanche. Suspirou aliviado. A noite e
o nevoeiro compartilhavam o tempo e a intensidade. O silêncio
ficou quase absoluto. Nada, nem ninguém por perto. Só o som
ritmado das fracas ondas da lagoa e o ruído de um carro distante
do outro lado da biblioteca pública.
A não ser Bruno, seu amigo de infância que se aproximava,
talvez o único vivente àquela hora e com a tal neblina, sentiu
uma espécie de epifania, uma alegria de algo que se revelava e
restaurava a sua criatividade. Com ele, poderia utilizar toda
a produção elaborada de se fazer entender a qualquer preço.
Bruno era burro, um imbecil, na verdade, mas ele estava ali, ao
seu lado e por certo, ficaria um bom tempo.
Lembrou por um
segundo da mulher, das contas, do cartão de crédito, até da
lista torpe do supermercado e sentiu uma fisgada no peito. Via
o rosário sobre a bíblia e a mulher se ajoelhando como uma
beata. Podia ter acabado com tudo, naquele momento, mas o
ônibus não esperava e ele tinha de ir ao encalço dos seus limites.
Bruno chegou, fez aquele gesto característico de quem imita
os negros americanos, batendo com as mãos e dando uma sacudidinha
no corpo, cheio de promessas para si mesmo, pensando
que os demais compartilhavam os seus trejeitos ultrapassados.
Em seguida, sentou-se ao seu lado e perguntou:
– E aí, tu deixou a vaca?
Bruno parecia seu pai. O velho era grosseiro, como ele,
tanto que não sabia argumentar e por isso, batia muito. Não
somente nele, mas na mãe, na irmã, na família toda. E se drogava,
o desgraçado.
Ramiro sempre comparava o amigo ao pai. Ele tinha dessas
coisas, de falar o que não devia nas horas inadequadas.
Depois de muitas tragadas, muitas histórias sem sentido, a
euforia os auxiliava a transpor os limites do bom senso.
Em dado momento, Ramiro começou a caminhar sobre o
cais, muito perto da lagoa. A noite se enfeitava de pontos
amarelos dos postes e a neblina camuflava algum barco que se
aproximava.
Numa dessas loucuras, entre risos desenfreados e questões
não respondidas, Ramiro resbalou o tênis velho e caiu na água.
No início, Bruno deu boas risadas, vendo o amigo mergulhar,
desaparecer e vir à tona. Em seguida, viu-o afastar-se em direção
às ilhas, talvez em virtude da escuridão que aumentava,
apesar de ser exímio nadador. Com esforço, utilizava toda a
resistência para praticar a volta ao cais, mas cada vez mais
se afastava da cidade.
Bruno, então, apesar de demorar a entender
que ele perdera a direção, percebeu que o amigo estava
em perigo.
Decidiu atirar-se ao mar, embora nadasse como um
prego. Apesar do frio, retirou a camisa e os sapatos para ficar
mais leve. Deu algumas braçadas, tomando água, esforçando-se
para chegar até o outro, gritando para que o esperasse, que
voltasse e não se dispersasse rumo às ilhas, pois se afastaria
cada vez mais do cais.
Ramiro, entretanto não o ouvia e se intrigava ao ver o companheiro
superar-se, na tentativa de salvá-lo. O que esperava
ele, transformar-se num herói, ele que nunca soubera tomar
um banho com água acima da cintura. Seu amigo era mesmo
um idiota, mesmo porque as ondas pareciam se tornar mais
fortes e intensas.
Mas Bruno não desistia, segurava-se num barco não muito
distante do cais, descansava alguns minutos para tomar fôlego
e o chamava desesperado. A bruma era densa.
Ramiro ria, sem perceber que se afastava, guiando-se apenas
pelas luzes da cidadezinha que ficava na outra margem.
Também estava cansado e por isso, apoiou-se numa boia, escondendo-se do amigo e rindo de sua odisseia.
Bruno, entretanto, insistia na labuta de encontrá-lo, e por isso, nadava de
qualquer jeito ou da melhor maneira que conseguisse chegar
até ele. Sentia perder as forças e a exaustão o deixava apavora-
do, mas num ímpeto de sobrevivência, avançava em piruetas,
alcançando uma poita e prendendo-se numa rede clandestina.
Tentava desvencilhar-se, enquanto gritava por Ramiro, que
apático, observava o movimento nebuloso.
Um suor escorria pelo corpo de Bruno, que num ato de
desespero, retirara os pés presos no entrelaçado, ferindo-se a
brotar sangue. Finalmente, conseguiu dar um impulso, aproximando-se em seguida de Ramiro, resfolegando, a ponto de não
conseguir falar. Por fim, tentou acender o isqueiro que trazia
no bolso das calças, mas suas mãos tremiam e ele perdera o
equilíbrio, quase afundando. Ramiro pegou o isqueiro e o acendeu, enquanto Bruno, assustado, o alertava da direção errada,
ao mesmo tempo que o segurava com firmeza, tentando levá-lo
para a margem.
Ramiro obedeceu e seus olhos brilhavam como
se um caos se estabelecesse em definitivo. Sorriu para o amigo,
e em vez de segui-lo, ele é quem o conduziu com facilidade, e
os dois dirigiram-se ao cais, obedecendo a chama precária do
isqueiro.
Bruno queria dizer alguma coisa, mas não evitava a
água que quase o afogava. Ramiro desabonava a estupidez do
amigo, apenas obedecia a chama, em silêncio.
Juntos chegaram próximos ao cais, mas Ramiro o impediu
de aproximar-se e segurar-se num ancoradouro. Bruno surpreendeu-se e quase em pânico, perguntou:
– O que aconteceu? Me deixa segurar, tenho que sair daqui.
Ramiro entretanto, enlaçou o seu pescoço com carinho e o
mergulhou com firmeza. Bruno sentiu-se desfalecer e emergiu
desesperado, quando a mão forte de Ramiro o libertara.
– Por que fez isso? Me larga, pelo amor de Deus! Eu não
sei nadar, tu sabe!
Ramiro o olhava com certa ternura e o abraçava novamente, impedindo-o que se apoiasse no cais. Respondeu com tom
afável :
– Nao posso te largar. Tenho que te matar.
– Por que? Eu fui te salvar, não fui? Por que então?
– Porque é de minha natureza. Tal como o escorpião da
fábula, não posso. Eu preciso. Todos que se atravessam no meu
caminho, na minha vida, todos que dão palpites, que me dão
conselhos, todos... eu tenho que matar, entendes?
Ao terminar de falar, empurrou-o novamente para o fundo
da lagoa. Viu o olhar do amigo num desespero quase poético,
desaparecer sob as águas. Quando tentava emergir, ele o impeliu mais uma vez. Esperou um pouco. Alguns segundos apenas
e desta vez, ele não voltara mais.
Ramiro suspirou fundo. Sorriu e esperou. O corpo viria à
tona e ele o abraçaria com ternura. Sabia que tivera compaixão, quase amor.
A neblina aos poucos se dissipava.
sexta-feira, maio 05, 2017
E a dor da saudade?
Muitos poetas, escritores, músicos e filólogos já reviraram de ponta-cabeça a palavra saudade. Um sentimento melancólico causado pela ausência de pessoas a que se estava efetivamente muito ligado.
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa mostra o termo saudade oriundo do latim “solitate”, isolamento, solidão, através das formas “soidade” e “suidade”, soedade , suydades , até à saudade na atualidade.
Como falar de saudade, se é um sentimento que se bifurca entre a alma e os sentidos, uma sensação de melancolia e vazio, da espera sem o retorno, da falta sem a presença. Uma palavra que não se traduz em outra língua, pela impossibilidade de demonstrar a amálgama de sentimentos que compõem o seu universo.
Mas os poetas a expressam com tal excelência de espírito, que a traduzem em nossa compreensão de mundo. Se não vejamos os versos do Chico Buarque, na música “Pedaco de mim”.
“Que a saudade dói como um barco/E evita atracar no cais”.
Através da figura do barco que se afasta e se desvia do cais, configura-se a interrupção do retorno. A saudade é a volta que não se conclui.
“É assim como uma fisgada/No membro que já perdi”.
Aqui, o poeta mostra a dor no lugar absurdo da ausência; pungente e aflitiva, que consome e tortura. Isto é a saudade.
A saudade afigura-se num corte cirúrgico da existência, como se comprova nos versos da mesma música.
“Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”.
A crueza do fracasso da esperança que aflorava, se transforma em desesperança. A ausência “do filho que já morreu” não permite o movimento mínimo de estabelecer uma ponte entre a mãe e o filho, o que seria natural. A saudade é essa impossibilidade de atravessar a ponte.
A saudade, porém institui uma regra pessoal, à medida em que se manifesta em nossa solidão, pela falta da pessoa amada, do(a) filho(a), do (a)amigo(a), dos pais. É um processo constante e rotineiro, e por mais que queiramos prosseguir o cotidiano, ela interefere a cada momento, em virtude da ligação ao objeto de nosso afeto.
Entretanto, por outro lado, a saudade permite quantificar a qualidade de nosso afeto e precisar a necessidade do encontro, da convivência, do carinho, dos pequenos segredos e grandes silêncios ou apenas do sorriso que nos conforta e amolece a alma.
quarta-feira, outubro 12, 2016
A margem oposta

Fonte da ilustração: fotografia do facebook do escritor e poeta Wilson da Rosa Fonseca
Passei a viver assim taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacudisse o pó e o levasse comigo.
Este frio que me atazanava, que me doía as carnes, que me comprimia os ossos e me deixava zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma.
Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente.
Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo.
Mas precisava ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assolava e me deixava assim, desconsolado.
Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem consequência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa.
Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de meus pares, afastado de minha vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir.
Caminhada infértil, estéril, vazia.
Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.
Desci correndo as escadas e me deparei com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar.
Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que outra, motivadas pelo vento.
Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seu olhar sagaz nas sombras da noite.
Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários.
Mas ao contrário, o que fiz foi afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas.
Mulheres que passeavam pelo cais, acenavam, obscenas. Soturnas e sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia.
De repente, as luzes pareciam mais intensas, movimentos giratórios e alucinantes. Sons que emergiam, línguas de fogo ágeis desfilavam por bares cheios, pessoas que corriam, ruas apinhadas e trânsito parado.
Fechei a gabardine até o pescoço e trouxe a touca aos olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados.
Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaiei passos pela calçada lateral.
Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dava náusea.
Apoei-me no muro de pedras e sentia as costas doerem. Queria perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto.
Tudo me vinha à mente, mas pouco se transmutava em meus lábios.
Raramente falava, ficava assim, alienado e mudo. Temia ser mal interpretado. Temia respostas. Compartilhamento. Parcerias. Talvez temesse viver.
Olhei em torno, a gordura se misturava com a fumaça do cigarro do homem que passava resmungando coisas sem nexo, iluminado no néon do bar.
Uma mulher se aproximou e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu coração saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora.
O frio fazia-me bater dentes. Talvez pela ansiedade.
Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso.
Entrei distraído, olhando para o nada.
Mas vi uns balões pendurados no teto e recordei as noites de São João, fogueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu abrilhantado de estrelas, quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos.
Depois, olhei para o chão e vi a lajota rugosa, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos curiosos.
Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão.
Um copo de cachaça bateu no tampo de granito danificado.
Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar, a ponta de alegria que personificava a máscara.
Olhei para um, para outro e aceitei o drinque.
Ela perguntou, voz fina e esganiçada:
— Tá procurando diversão?
Diversão? Foi o que eu procurei em toda a minha vida.
A cachaça escorreu pela garganta e um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo.
Tentei afastar-me, foi só um gesto.
Ela segurou meu braço, decidida.
— Muito frio lá fora, moço. Aqui dentro está gostoso, não acha? – Apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna.
Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo.
O homem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, inserindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos.
As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes.
De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.
— Você não é o Gomes?
Balbuciei qualquer coisa, desconfiado.
Ele nem me ouviu. Prosseguiu, inquieto:
— Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – E antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes está aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, mas é mentira.
— Não, não sou o Gomes.
A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores.
O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto:
— Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara está vivo, não é?
Voltei-me para a mulher, afirmando-lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita:
— Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.
Tentei argumentar, afastar-me, mas minhas pernas bambolearam.
O banco estremeceu, quase desandando no chão. A mulher o segurou rapidamente. Em seguida, abraçou-me, enquanto dezenas de frequentadores se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele, o Gomes.
A bebida rolava no balcão. Até um cigarro de maconha me ofereceram.
—Sei que tu é da lei e não destas coisas, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa!
Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme e grave.
Um silêncio sepulcral se fez no ambiente. Até o funk parou.
Entretanto, o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele.
— Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! – E um deles gritou, acompanhado nas risadas de muitos: — Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhar. É o seu carma, não tem jeito.
Então, ingeri o restante do copo. E mais enchiam, mais tomava.
O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a tal Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho.
Fiquei paralisado no meio da roda.
O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade.
Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpente, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo.
Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no chão, desajeitados, filhos pródigos de um pai atencioso.
Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool.
Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”.
Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra.
E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda.
E o povo gritava, vai Gomes, vai Gomes, vaaaiiiii.
Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes.
O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço.
Comecei a abraçar Marielsa, a beijá-la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”.
Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma.
Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiam para contar como me livrei do afogamento.
Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário.
Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente.
O círculo se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro.
De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção.
Eu parei, ousado. Até sorri.
Ele colocou uma mão na cintura, indicando uma arma.
Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos.
Eu segurei-me impávido.
O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de chamas o mar escuro:
— Você é o Gomes?
Confirmei, firme, quase arrogante:
— Sim, sou o Gomes.
Puxou a arma disparou dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo. Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença:
— Paguei a minha dívida.
As pernas fraquejaram.
Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos braços, como a Virgem. Os outros como pinguins em bando, me acercaram.
Pensei que cruzava a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, produzindo um som abafado acordando a noite.
Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não era o Gomes.
domingo, setembro 04, 2016
O que vem na lancha?
Rogério atravessou o paço municipal com efetiva energia. Estava satisfeito consigo. Daqui a pouco, aquela casa seria sua. O mundo lhe renderia homenagens, as pessoas em geral falariam nele, a maioria pelos seus benefícios que faria à cidade. Uns invejosos falariam mal, mas que falassem. Não lhe interessava. Importava agora o pleito que estava por vir e ele como candidato, certamente seria o vencedor. Ninguém o tirava do páreo, de jeito nenhum.
Em seguida, estava no cais e parou por um momento, observando a lagoa. Na verdade, a laguna, um homem com a autoridade que teria, devia usar o termo correto. A laguna o encantava, às vezes, principalmente nestes dias de pouco sol, com alguma neblina, mas com um calor envolvente, prenúncio de alguma chuva. Podiam pensar que era loucura este pensamento, mas este rebuliço da natureza o envolvia completamente. Era como nas urnas e os efeitos nem sempre passivos, às vezes desvastadores.
Uma lancha se aproximava e ele decidiu sentar num dos bancos no espaço florido próximo ao cais. Ficou observando-a, vendo os passageiros ansiosos em descer, olhando para o nada, entretidos em suas vidas medíocres, habituados a repetir aquela mesma rotina enfadonha, enquanto ele ia ali para aliviar a alma. Ele podia fazer isso, diferente de todos os mortais.
Alguns pingos de chuva começaram a cair e já não era apenas a neblina, eram pingos que aumentavam em quantidade de gotas e velocidade. Uma chuva que não deixava respirar. Achou por bem afastar-se rapidamente em direção ao mercado.
Um pouco molhado, o paletó respingado e algumas gotas na camisa branca revelando os pelos do peito escondidos, sentiu-se um pouco como todos aqueles que faziam parte da comunidade do mercado público. Homens mal vestidos, cabelos desenvoltos, camisas regatas e moletons num dia de chuva e calor. Esqueceu-os, embora sempre aos sorrisos para um e para outro. Andou pelas bancas, observou as frutas, os queijos, os peixes, muitos peixes com centenas de aromas variados. Pensou em tomar um café. Aproximou-se de uma banca e como todos os que estavam por ali, pediu praticamente a mesma coisa: um café e um pastel bem refogado, com muita carne e queijo. Uma mulher gorda, de legging que revelava até as curvas da virilha se aproximou com o café e sorriu mostrando uma falha de dente inominável. Pediu açúcar. Adoçante era para os fracos. Mexeu com um colherinha de cabo torto e percebeu alguma coisa estranha no fundo da xícara. Uma mosca enorme jazia ali, morta, escrachada, esperando ser engolida. Por ele? Ele não era sapo pra comer mosca! Chamou a moça que coçou sem discrição a coxa, espichando um pouco a lycra da calça que devia incomodar. Não se preocupe, ela disse, eu trago outra pro senhor. Rogério já não queria outra. A visão da mosca gorda no fundo da xícara ainda lhe produzia uma náusea que não conseguia evitar. Pediu um refrigerante. Comeu o pastel. Deu mais uns sorrisos, levou uns tapinhas nas costas, deu outros e retirou-se do mercado.
Na rua, a chuva amainara e apenas uns pingos cá, outros lá anunciavam alguma água nas calçadas. Olhou para a laguna. Agora mais clara, sem neblina. Seguiu em frente, atravessou a hidroviária e passou para o outro lado da rua, pela Riachuelo. Caminhou agora sem muito entusiasmo, pelo menos, a euforia que possuia no início, quando atravessou o paço da prefeitura.
Sentiu-se um pouco cansado. Encostou-se na grade do porto e espiou para dentro, observando que alguns homens desenredavam uma enorme corda. Para que seria, pensou. Um pouco mais longe, vinha outra lancha. Ficou parado, observando-a e teve a impressão de que havia uma coisa estranha perto da popa. Não eram caixas de mantimentos, nem amontoados de mercadorias. Se tivesse um binóculo, saberia com certeza o que vinha naquela lancha. Um dos homens que mexiam com as cordas o encarou por um momento, talvez se perguntando o que ele fazia ali, parado.
Rogério decidiu voltar para a hidroviária. Tinha que saber o que traziam na lancha. Era uma caixa estranha, o que lhe produzia uma espécie de dor, uma nostalgia de alguma coisa inerte, que lhe incomodava, que lhe tirava o prazer de ser um candidato. Era como se lhe tirassem todo o poder e ele não pudesse mais ser o prefeito da cidade. Era como se o cassassem como vereador e lhe tirassem os direitos de elegibilidade. Como se houvesse morrido.
Deu alguns passos rápidos em direção ao cais onde a lancha pararia e ficou esperando, o coração soturno, agitado e impune.
As pessoas pareciam rezar ao redor da caixa, outras sorriam ou davam gargalhadas exageradas, gritando frases de efeito. A lancha dava umas guinadas como se escondesse o produto, vez que outra, parecendo voltar, como se retrocedesse e ele jamais pudesse adivinhar o que estava acontecendo. Sentiu um cheiro terrível de urina que vinha do banheiro da hidroviária. Parece que todos os odores ruins se revelavam cada vez mais fortes, instilando-se nos cantos, nas esquinas, nas águas que batiam nos degraus do cais.
Os meninos que estavam próximos se afastavam. As mulheres que passavam agora corriam e alguns policiais se apresentaram para mostrar a força da autoridade. Finalmente a lancha apareceu, porque aquela neblina que para Rogério parecia bonita, agora voltava escura, toldando todo o céu e escondendo a lancha, fazendo-a ligar os faróis. Mas ela surgia agora, de vez. Um pequeno povo que estava no mercado se apresentou e ficou observando a cena. Aquele mesmo que o abraçou, deu-lhe tapinhas nas costas e sorriu várias vezes. Até a mulher de legging se antecipou ao grupo e esperou ansiosa que a lancha chegasse. Duas que pareciam evangélicas, pelo penteado e a saia de jeans, com botinhas e meias, deram-se os braços e começaram a rir, satisfeitas.
A lancha largou as suas âncoras no cais. O povo se posicionou, quase em procissão, lá dentro, atrás do produto. Um padre se emocionou e abençou o povo que se aglomerava lá fora. Um deles, que parecia um juiz também mostrava-se sensibilizado, mas com uma certa alegria no olhar. Algumas senhoras rezavam agradecidas e vários homens tiravam o chapéu, o boné ou o que tinham na cabeça, se o tinham e faziam gestos de gratidão, alegria e ufanismo. Alguns até cantaram o hino nacional com muito patriotismo.
Rogério, candidato a prefeito da cidade, por fim compreendeu o que vinha na lancha e que chamava tanto a atenção. Era um caixão preto, com uma enorme coroa. Na frente, uma faixa com o nome democracia.
quarta-feira, março 09, 2016
O PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIX
O NOSSO FOLHETIM CONTINUA AGORA JÁ CHEGANDO A QUINTA-FEIRA, 10/03/16 COM NOVOS DESDOBRAMENTOS DAS RELAÇÕES DE ÚRSULA. UMA HISTÓRIA DE MULHERES, NA TENTATIVA DE PENETRAR NO UNIVERSO FEMININO, COM A DIFICULDADE NORMAL DE UMA AUTOR DE CULTURA MASCULINA. ESPERO QUE TENHA SUCESSO. ESTE É O 19º CAPÍTULO, QUE APRESENTO COM MUITO PRAZER.
Capítulo 18
FONTE DA FOTOGRAFIA: AUTOR WILSON FONSECA DA ROSA, GRANDE ESCRITOR, POETA E FOTÓGRAFO RIO-GRANDINO.
Capítulo 19
Sabe, Dulcina, às vezes me pergunto porque acabo indo nas suas águas. Na verdade, sempre refutei tudo o que você me dizia, todas as histórias que em geral achava idiotas, sem sentido. Nunca a vi como um ser humano, estou sendo muito sincera comigo, sabe? Você pra mim, nunca passou daqueles servidores invisíveis, quase descartáveis, que a gente se depara por algumas horas. Que a gente precisa, mas finge que não vê. Que me interessava a sua vida, as suas atitudes desleixadas, o seu jeito simplório de me contar o que lhe acontecia no metrô, na esquina de casa, na feira? Eu tinha outra vida para viver. Outros caminhos para percorrer que não os seus. Ou não. Talvez meus caminhos fossem muito curtos e sem nenhuma aventura e vinha você, falando alto, esbravejando da suas atividades cotidianas, jogando na cara a sua vida intensa. Se esparramando pelo meu tapete, transbordando na minha sala, na minha cozinha, na minha vida insalubre. Não, eu não queria saber de você. Eu odiava essa sua energia.
Sabe que é a primeira vez que falo assim, neste tom? Logo que aquela porta se abria, instintivamente eu recusava me mostrar. Apenas me fechava no casulo e fazia de conta que estava sozinha. Você era menos do que o espremedor de suco da cozinha. Não posso fingir, era muito difícil a nossa relação. Era realmente um sacrifício.
¬¬
–Era mais fácil o retrato, né? Do seu nível.
–Que nível, Dulcina, isso lá é nível? Rita era uma grande atriz, sem sombra de dúvidas, mas como ela existem milhares. No fundo, eu me escondia no passado. É quase um caminho sem volta.
–Só isso?
¬
–Claro que não. Mas agora, não vale a pena decifrar as minhas atitudes. Você as conhece mais do que eu.
–Tá tudo tão estranho, não acha, dona Úrsula? Ta ficando tudo tão leve, tão alternativo.
–Alternativo? Que coisa esquisita você disse. Não tem sentido, Dulcina. Aliás, nesta vida, nada tem sentido. Dulcina, lembra do velho aí da frente?
–Se lembro. O velho assassino. Emparedou a mulher coitada, no meio da sala. Eu vi o concreto mais saliente, nem rebocou direito, o diabo. Para de rir, dona Úrsula, é verdade. Eu juro que vi.
– Dulcina, olhe bem pro retrato da Rita. Você não acha que ela está falando?
– Não sei não. Mas que ela está olhando pra gente, ah, isso ela tá.
–Acho que ela vai contar a nossa história.
–Em inglês?
–Com legenda, não seja boba. E você entende inglês, por acaso?
–Tinha uma moça lá na quadra que sabia inglês mais do que muito professor de curso por aí. Também, coitada, trabalhava na beira do cais.
–Espere.... fique em silêncio. Acho que ela vai... Não deixa, pra lá. Vamos esquecê-la e falar sobre nós. O que é que eu estava falando mesmo?
Impossível não perceber que as duas estão ligadas por laços além dos convencionais de amizade. É um fio condutor que une estas mulheres completamente diferentes. Para mim, que convivo há tanto tempo com Ms. Úrsula, nesta pequena galeria que organizou pra mim, só tenho a lamentar o quanto está perdida. A vida tem sido dura, como costuma dizer, mas também tem lhe proporcionado momentos de aprimoramento, aprendizagem. Seria salutar que os aproveitasse dignamente. Parece que hoje pretendem celebrar a vida de qualquer jeito, como se fossem duas adolescentes. Não há dúvida que optou pelo caminho mais fácil e inadequado. Mas não estou aqui para julgá-las. Talvez o meu dever seja este: narrar o desencadeamento desta história, a partir de meu observatório particular. Afinal, conversamos há tantos anos.
Ms. Úrsula desaba literalmente na poltrona, sem importar-se com as atitudes que este ato impensado pode trazer-lhe. Provavelmente uma dor intensa na coluna, uma lassidão nos músculos. Vejo-a, aos poucos, resvalando, e enquanto estira as pernas negligente, puxa do fundo do pulmão uma fumaça que se esforça em constituir pequenos círculos. Está exultante. A criada desliza no piso encerado, falando em altos brados, trazendo uma espécie de bebida nativa, a qual denomina caipirinha. Não sei onde isto vai parar. De qualquer modo, a vida, pelo menos, neste momento lhes sorri. E tudo é motivo para risada.
Ms. Dulcina, finalmente acocorada ao solo, instiga a patroa a terminar a história que começara.
– Mas o que a senhora está dizendo é verdade, mesmo dona Úrsula?
Ms. Úrsula está vermelha. Por um momento para, fitando o nada. A voz arrastada, reflexiva. Em seguida, porém reaviva a memória, pois grita, destemperada: – verdade verdadeira. O pobre velho era ele. Nem eu acreditava, menina! Susana ficou passada!
A serviçal se debate no chão, frouxa de rir. Parece que a visão do mundo ficou tão zen, que a deixa em perfeito bem estar com a natureza. Fala em tom absurdo.
– Mulhé, eu não acredito, se não fosse a senhora que está me contando, uma pessoa do seu nível, da sua estirpe, eu não acreditava. Falei bem, hem dona Úrsula, estirpe, não é coisa de gente chic?
–Você ta me saindo melhor do que a encomenda, Dulcina. Já nem cabe no embrulho.
–Embrulho é coisa de pobre! Não to entendendo nada!
–É que você está crescendo, sua incompreensível! E como pode dizer coisa de pobre, é a expressão mais preconceituosa que já vi!
Quando se dá conta, volta a rir, confortada que ficara com a explicação. Mas o que fica claro, neste momento, é que o assunto anterior é extremamente interessante, apesar das inúmeras interrupções. Ms. Dulcina volta a ele, sem mais delongas: – e a história da mulher emparedada? Então era tudo invenção da sua cabeça?
– Claro que não. Pensa que sou maluca? Aliás, hoje é o dia em que me sinto mais lúcida na minha vida, desde que meu filho morreu.
– Não vamos falar em tristeza. Nós já fizemos um trato, se lembra?
– Não lembro de trato nenhum.
– Pois se não, vamos fazer agora – com um cotovelo no chão e as pernas juntas, meio dobradas para trás, estica a palma da mão em direção a de Ms. Úrsula – seguinte, a partir de agora, vamos selar um trato. Nada de sofrimento, de dor de corno, de filho perdido, nada disso. Vamos só nos divertir. Pelo menos, esta noite.
–Pelo menos, esta noite, Dulcina.
Ao baterem as palmas das mãos, Dulcina recupera o copo da bebida e o oferece à Ms. Úrsula. Esta se atrapalha e pergunta: – que faço com o cigarro?
– É coletivo. Dá uma azeitada na máquina, mas devagar, que a senhora anda meio enferrujada. Enquanto isso, eu dou uma tragada... A senhora não acha este aroma maravilhoso?
– Dos deuses, Dulcina.
Ficam em silêncio por alguns minutos. Dulcina então se levanta e põe um cd a tocar. Não é seu gênero musical, mas muitas vezes ouviu a patroa executá-lo ao piano, e principalmente ouvi-lo.
– Night and day. Sabe o que é um jazz, Dulcina? Também não interessa. Temos muito tempo para conversar sobre tudo. Sabe que eu nunca tomei uma caipirinha tão saborosa?
–Tempo é o que não nos falta. A gente tem toda a noite pra colocar o papo em dia.
–A gente tem toda a noite. Eu não durmo mesmo. Mas sabe o que eu gostaria de fazer, Dulcina? Sabe qual é o meu sonho?
– Não sei, não. O meu é ficar aqui, puxando este fuminho, jogando conversa fora. Já tá de bom tamanho. Única coisa que penso é no negão. Deve tá pagando todos os pecados!
–Esqueça o negão, menina. Ele tá noutra. Você mesma não disse que ele foi parar no hospício? E lembre do nosso trato.
¬
–A senhora ta engraçada, dona Úrsula.
– Me dá o coletivo, é a minha vez.
Após um fechar de olhos, num torpor de prazer, ela retoma a palavra, nariz obstruído, como se acometida por uma renite letal.
–O meu sonho era ir pra Serra Pelada. Lá, onde o Jaime passou grande parte de sua vida.
Se Madan me contasse, eu jamais acreditaria. Seria o último lugar para alguém conhecer, ao menos que ela queira conhecer água barrenta e a serra que se tornou um verdadeiro abismo. Mas, como declinei inicialmente, não estou aqui para analisar suas atitudes.
Quando ela retomou a história que começara, eu tentei me desligar, e finalmente foi o que fiz. Deixei que narrasse. Não queria me envolver naquele idílio tão horizontal.
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