Mostrando postagens com marcador imaginação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador imaginação. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, novembro 04, 2016

A redação, a Apollo 11 e o grêmio literário

Eu estava à cata de informações para uma redação, na imaturidade de meus 13 anos.

Os acessos eram difíceis, embora houvesse os jornais, a TV, as revistas e principalmente a imaginação.

Naquele julho de 69, a Apollo 11 era a primeira missão de sucesso, com Neil Armstrong pisando na lua e surgindo nas telas da TV, numa imagem entrecortada de chuviscos e emoção.

Eu elaborara a redação com cuidado, tentando ser o mais verídico possível, sem ser previsível.

Naturalmente não possuía esta percepção de previsibilidade, mas por pura intuição, eu tentava ser original, no esforço de transformar o texto num produto bem elaborado.

Enveredava sempre que podia, pela imaginação, transportando meu mundo interior fundamentado na fantasia do espaço para o papel, procurando decifrar a perspectiva que possuia no avanço espacial.

Aquela nave maravilhosa, desenhando no céu uma centelha de luz, trazendo a nós, terráqueos, uma visão tão próxima da lua, com a certeza de que os astronautas pisavam pela primeira vez no solo inatingível.

Desta forma, realizei a redação, se não a melhor, uma das melhores de minha carreira de estudante.

Certo dia, o diretor da escola, um frade austero, de olhar frio e perscrutador, adentrou a sala, invadindo a aula de português.

Nosso professor, Irmão PL. recebeu-o com cortesia.

Um meio sorriso nos lábios, uma ansiedade contida, um torcer de mãos sob a batina branca, talvez na mesma expectativa em que estávamos mergulhados.

Ele era alto, cabelo ralo, nariz adunco, mãos grandes e dedos peludos. Tinha um olhar tranquilo, mas havia neles uma interrogação, que me inquietava.

Talvez não exatamente por sua conduta, mas pela minha maneira peculiar de observar as pessoas e considerá-las um produto promissor para minhas histórias.

Eu fiquei circunspecto, sem muita expectativa, a não ser imaginar que o assnto que levara o diretor à sala de aula, seria algum tipo de norma reformulada ou talvez um feriado religioso, no qual participaríamos em alguma solenidade.

Eu, magro, mãos sobre a mesa, olhar atento, cabelo caído na testa, a la Beatles, observava o cenário já meio enfadado.

Meus colegas cochichavam, faziam mil esforços intelectuais para descobrir o motivo do diretor aparecer assim, de súbito.

De repente, ele manifestou-se através de uma fala burocrática, citando a turma que, segundo ele estava bem orientada na aula de língua portuguesa , deu os conselhos de praxe e por fim, citou o meu nome.

O meu nome? Perguntei-me atônito, a que se referia.

Claro que perguntei mentalmente, sem abrir a boca ou piscar os olhos.

Alguns segundos e o diretor pediu que eu me levantasse.

Obedeci, pernas trêmulas, joelhos batendo um no outro, coração aos pulos.

Não sabia o que pensar, o que dizer, o que imaginar.

Nem passava pela minha mente confusa, qualquer indagação que não fosse uma temerosa culpa por alguma conduta indevida.

Ele então, mandou que eu sentasse, o que fiz de imediato, deixando cair os braços sobre a carteira, mãos presas na caneta, desenhando quase involuntário no caderno, tentando fugir daquela atmosfera de incerteza.

Ele prosseguiu elogiando a redação que eu fizera, acrescentando que havia sido muito bem avaliada pelos professores e que, em virtude da qualidade do texto seria publicada no jornal da cidade.

Quando afastou-se, os colegas todos me olharam, juntamente com o professor, que parecia abalado, pois nada dissera a respeito. Nem me cumprimentara.

Houve mil brincadeiras e muitos apelidos, culminando por me chamarem de poeta.

Para eles, qualquer um que escrevesse razoavelmente era um poeta.

Ou talvez fizessem uma leitura pejorativa, realçando que a sensibilidade não era prerrogativa de meninos. Não sei. Coisas que talvez Freud explicasse. Afinal, era um tempo de uma ideologia tecnicista, na qual as artes e filosofias foram excluídas.

No intervalo, as brincadeira se sucediam, mas eu estava feliz, porque o meu texto fora analisado, elogiado e comprovado publicamente que tinha qualidade.

Com o passar do tempo, eu tinha ainda mais ânimo para escrever, não somente as redações obrigatórias da escola, como outras histórias, que criava em total liberdade de meus pensamentos e imaginação.

Neste período, elaborava contos ou imensos romances, pontuados de ação, aventura e emoção, abrangendo deste modo, os sentimentos que imaginava aos personagens e suas tramas.

Era uma dramaturgia intuitiva e repleta de clichês, mas que ampliava a minha imaginação e de certo modo, o conhecimento literário, além de ampliar o gosto pela leitura.

Nos sábados, em que se realizava o grêmio literário da escola, costumávamos assistir os trabalhos feitos pelos colegas, cujas diversas turmas se reuniam e havia muitas apresentações, com a participação dos professores de português e inclusive de outras disciplinas que confraternizavam com os seus alunos.

Geralmente, alguns pais convidados também faziam parte da plateia.

Enumeravam-se poesias, crônicas e contos, que apresentados em sala de aula, e considerados os melhores trabalhos, eram apresentados à comunidade escolar.

Em determinado momento, o professor que apresentava os alunos, chamou um dos meus colegas de turma.

Todos ficamos aguardando na expectativa da apresentação.

Era um menino de cara rechonchuda, vermelha e um sorriso imenso nos lábios, considerado o guri popular da turma.

Já aplaudido pelo grupos de alunos e pais, abriu uma página datilografada e antes que se pronunciasse a respeito do tema, o professor anunciou tratar-se de uma redação sobre a chegada do homem à lua, ou seja, a Apollo 11.

Meu coração revirou-se, em saltos.

Os colegas voltaram-se de imediato para mim, criticavam e afirmavam que se tratava de minha redação, o que implicava em eu estar lá, no palco, lendo-a.

Perguntavam afoitos, por que eu não dizia nada?

O menino começou a ler, voz clara e bem colocada. Não modificou nenhuma palavra, nenhum artigo, nenhuma pausa.

Meu coração sim, quase pausava.

Meus lábios tremiam, tensos, incapazes de pronunciar uma sílaba sequer, músculos paralisados, pernas cravadas no chão, como estacas inanimadas.

O professor de português, ao nosso lado, impassível. Não foi capaz de informar que aquele texto havia sido escrito por mim. Não fora capaz de defender-me.

Como eu, no meio daquele público de adultos e crianças, poderia sair gritando que a tal composição era minha, que havia sido inclusive publicada no diário da cidade e elogiada pelo diretor da escola?

Não teria coragem para tanto.

Ali, conheci a mão pesada do apadrinhamento, da covardia dos mestres, do interesse dos superiores.

Deixaram-me na lona, Davi perdido, sem enfrentar nenhuma fera ou qualquer gigante.

Perdido, acabrunhado e triste.

Ali, conhecera a duras penas, o significado de plágio. Mais do que o plágio, a predileção por um aluno em detrimento do outro.

Se ao menos, nomeassem o autor do texto, eu me conformaria, mas todos os créditos foram para ele. Todos os louros. Todos os aplausos.

Pra mim, sobrou o constrangimento de não ter me levantado contra aquela injustiça.

Sobrou a crítica dos colegas, por meu acanhamento.

Sobrou a autocrítica por minha fraqueza.

Felizmente, sobrou também a vontade de lutar, de mostrar ao mundo o meu fazer literário, sem o medo do fracasso, pois se ocorrer, será somente meu.

Mas como tudo é aprendizagem e sublimação, a mágoa se transformou em representação na narrativa literária e só existe para vestir um personagem.

sábado, julho 25, 2015

O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, final dos anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista da trama.

Pouco nos falávamos. Ismael sempre se dirigia a meu pai ou a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom avermelhada, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinés, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, brindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo.

Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão de filme de caubói e ameaçou despudorado: – não te intromete na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de cigarro Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais (a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou balançando o corpo. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim.

Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me de seu quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de modo a não fazer barulho e não despertar a atenção de ninguém. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, esbarrando na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor e evitando qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela esvaneciam um pouco o cenário escuro. Apenas pequenos feixes de luz iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela, produzindo figuras oscilantes. Nas paredes, fotos de atrizes de Hollywood em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Trombei com os pés na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. A prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se constituísse de papelão, tão frágil em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto apoiava-me na mão esquerda encostada na parede, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não conseguia ver. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta-retrato. Peguei-o e atirei-o sobre a cama, sem consideração. Puxeis os demais para a frente, pois estavam afastados, ao fundo. Tratavam-se de pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, enquanto segurava um deles, os demais caíam desordenadamente, uns sobre os outros, estatelando-se na cama, ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos grandes ficaram ainda maiores com a curiosidade. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocado pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Em seguida, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou alguém de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali a qualquer preço: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois restara uma vela usada na prateleira que devia estar perto dos objetos. Olhei para a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés, em desalento.

Pulei da cama e me deparei com a cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me assustavam e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Subi novamente na cama e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que me espetava uma farpa furtiva na mão. Definitivamente a chave não estava lá.

Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, em desespero, comecei a gritar em desvario, quase em súplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao chão. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, peguei-a com firmeza, me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto mandava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações.

Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: – não te preocupa, pai. Trabalho do colégio.

Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS