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segunda-feira, setembro 05, 2016

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas.

Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano.

Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de boêmio, revelando a segunda-feira o registro da ressaca espiritual e física.

Mas Xavier sabia o que fazia. Quando comentava algum detalhe, preenchia-o com tantas expectativas, que tornava o interlocutor um passivo ouvinte, quase no desespero de descobrir o que pouco era exposto.

Certa vez, Xavier resolveu abrir o bico. Só, que expert na área de levar vantagem, impunha uma condição, ao que os colegas se olhavam intrigados e até, insatisfeitos em ceder em alguma coisa. Não era uma coisa qualquer, era algo digno de transformação de todo o grupo de trabalho, a ponto de mudarem as lideranças ao descobrirem pecados inadmissíveis àquele bando.

Xavier tinha os seus caprichos e só contaria se fizessem como dissera. E o que queria ele?

O que de tão cabuloso fazia em suas noitadas festivas? E quais eram os pecados dos colegas?

Era exatamente isso que ele desejava: cada detalhe que contasse de sua vida desregrada seria recheado de minúcias da vida certinha ou não tanto, dos colegas.

Foi num happy hour que ele deu o veredicto. Ninguém acreditava no que dizia. Estavam juntos Márcio, o economista, Juarez, o relacões públicas, Manoel e Frederico, que chamavam de Fred, os funcionários do atendimento ao público e Rodrigo, o estagiário que era pau pra toda obra.

Entre um chop e outro, Xavier decidiu colocar as regras na mesa. Claro que todos arrepiaram. Olharam-se de vesgueio, intrigados. Mas que fazer? Por que não contar? E o que contar de suas vidas medíocres, tão iguais, tão insossas, tão diferentes da exuberante de Xavier?

Afinal, a bebida já os fazia abrir as golas das camisas e desabotoar os sentimentos. Estavam se livrando das amarras, aos poucos, não tanto quanto Xavier, porém quem sabe não seria este o momento?

E nesse meio de conversas e risadas cada vez mais frouxas, Xavier fez um comentário de um colega. Todos fizeram silêncio. Até que ele repetiu. Era sobre Juarez, o relações públicas da empresa. Ele saiu da pasmaceira e perguntou: — O que foi que você disse?

— Nada demais Juarez, mas muito engraçado. Eu vi que você leva um copo plástico pro mictório.

Os demais começaram a rir. Juarez interpelou, já irritado: — Não sei do que você ta falando.

— Mas você leva o copo, não vai dizer que não?

— Pra que, Juarez? Pra … – e Manoel faz um gesto obsceno, indicando masturbação – é pra isso mesmo?

— Cala a boca Manoel, deixa de ser ridículo - gritou o exarcebado Juarez.

— Desculpa aí, amigão, mas eu sei pra que você leva o copo — e Xavier prossegue, caindo na risada — tem uma utilidade aí. Você enche o copo dágua, derrama devagarinho no vaso e mija à vontade.

— E o que tem isso? Aprendi com um cara estrangeiro, dizia que ajudava - olha aqui, não devo explicações a vocês. Vãos se fuder!

Fred então saiu na defesa de Juarez.

Fred era um cara baixinho, de cabelo crespo, muito preto e barba cerrada. Olhou para os lados, encarou Xavier e disparou: — Sei que você tá tentando fugir da coisa. Não me engana Xavier, chamando a atenção pro problema do Juarez, você – foi interrompido com a reclamação de Juarez – não é problema! – e continuou – que seja, não é problema, o fato é que o Xavier se aproveitou disso pra não contar a sua vida de sacanagem.

— Ué, eu disse que cada um tinha que contar uma falha, um pecadinho. Tá todo mundo com auréola de santo aí. E você Fred, que tá reclamando, vai, conta o seu.

— A minha vida é calma como o rio que passa sob a ponte. Vocês sabem que sou casado há pouco e tudo que acontece é dentro das quatro paredes.

Xavier, parecendo saber de alguma coisa, pergunta, irônico: — Mas me diga, parece que vocês andaram meio assustados numa noite dessas. Não foi esta pasmaceira que você tá falando.

O outro sem graça, reclama: – Bobagem, nem sei do que ta falando.

— Da vizinha do quarto andar.

Juarez, agora mais relaxado, cai na risada – Então aí tem coisa. O que tem a vizinha do 4º andar?

— Vocês estão malucos? Não tem nada a ver.

— Claro que não – prossegue Xavier – mas ela andou espalhando umas coisas por aí. Não sei como soube, acho que pela sua mulher mesmo.

— Foi um sonho.

—Então explica. Fala pra nós, cara.

— Eo que esta vizinha enxerida falou?

— Ela acha que nao passou de uma brincadeira.

— Pois se você sabe, conta você Xavier. Você não é o alcoviteiro da vida de todo mundo?

— Aí não tem graça -concluiu Xavier. Manoel então insistiu: — O que aconteceu afinal, Fred?

—Ah, caras, uma história maluca. Mas neste caso, os pecados são da Mara, a minha mulher.

— O que foi que ela fez?

— Sei lá, era umas três horas da madrugada, ela ouviu ruídos fora do quarto. Levantou-se da cama sobressaltada e apavorada se encostou no meu ouvido, falando baixinho que o marido estava ali. Imagine, eu, claro que estava ali. Não entendi nada!

— Mas e daí? – fomenta ainda mais Xavier.

— Sem muito entender, me levantei enlouquecido, pulei pela janela só de cueca. Na queda, arrebentei o pequeno muro que separa o jardim da frente, do corredor e bati com a bunda nas pedras. Eu tava num transe, acho, tamanha era a minha ira. Mas, como se me acordasse de repente, pulei a janela de volta, ensandecido. Gritei irritado para Mara: – Sua louca, maluca, sua pirada. Olha como to, todo machucado, porra. Teu marido sou eu!

Fez uma pausa e prosseguiu com suspense: — Sabe o que ela me respondeu? Sabe o que ela teve a cara dura de responder?

Rodrigo, o estagiario concluiu: — Depois de mandar você procurar o marido que era você mesmo, nem sei o que pensar. O que ela respondeu?

— “Ah é pulou a janela porquê? Tá de consciência pesada?” Vê se não é maluca, mesmo?

Todos cairam na risada, uns diziam que era um sonho, ou um pesadelo. Mas ficava a dúvida, em que marido ela estava pensando, ou melhor sonhando? Será que ela achava que estava com o amante e que o marido havia chegado, ou seja, o próprio Fred?

Xavier por fim, vaticinou: — Vai ser duro de eu contar a minha história, porque meu amigo, aqui o pecador não foi você. – e olhando ao redor, perguntou exaltado – quem se habilita?

Ninguém abriu a boca. Olhavam para Fred com a pulga atrás da orelha.

sábado, outubro 24, 2015

A casa caiada de branco

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também.

A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos.

Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações.

Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio.

Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta.

A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas.

Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada.

Começaram os cânticos. Minha mãe apertava a minha mão, com força. A vizinha se apresentara, participando ativamente dos procedimentos religiosos.

Eu me afastei uns passos, saindo lentamente do círculo que rezava e cantava e aproximei-me de uma porta que dava para um corredor imenso, de ladrilhos em preto e branco. Havia cruzes, desenhos estranhos de giz, no piso. Eu os apagava rapidamente, com os pés. Pulava sobre eles, ultrapassando-os, como se jogasse amarelinha, até chegar a última peça da casa e levei um susto, ao ver um homem numa cadeira de rodas, que acenava negativamente a cabeça. Nas pernas, um cobertor leve, na cabeça poucos cabelos enfeitavam a careca, os olhos fundos.

Fiquei paralisado, na última porta, com aquele olhar incisivo, censurando a minha atitude. Ele falou alguma coisa inaudível, acho que pediu água. Sem entender muito bem, aproximei-me do filtro de cerâmica, abri a torneira, enchei o copo que entornou sobre as mãos.

Aproximei-me e entreguei, indagando com o olhar. Ele segurou o copo com as mãos trêmulas, levou-o à boca e pediu que eu sentasse, ali perto, no banco que estava ao seu lado. Fiquei quieto, acomodado no canto. Não ousava aproximar-me, mas temia afastar-me. Sabia que havia alguma coisa que eu precisava saber, que não poderia deixar passar, como uma oportunidade de convivência insuperável.

Então, ele falou. Voz trêmula, lábios umedecidos pela água, que escorria no canto da boca, como um visgo de lesma.

– É a morte. Não me deixe aqui sozinho. Esta é a verdadeira morte.

Tive náusea da boca visguenta. Mas foi só por um momento. Sorri, tentando ser amável. Peguei-lhe o copo da mão, coloquei-o sobre a mesa e perguntei se não queria mais água. Não me respondeu. Ficou ali, parado, me olhando, querendo dizer coisas que não conseguia explicar. Ou talvez, quisesse apenas ouvir-me.

As cantorias da casa ficavam mais intensas. Senti-me atraído por elas. Um cheiro de incenso inundava o ambiente, enchendo o corredor de fumaça. Tambores anunciavam um ritual mais dramático. Meu coração batia forte.

Afastei-me um pouco, voltei-me para ele, a cabeça pendia. Devia dormir.

Na porta, ainda apaguei mais alguns símbolos. Corri corredor à fora, na tentativa de não perder nem uma cena.

Ao chegar na sala, ainda na penumbra, observei as pessoas sacolejando o corpo, acompanhando o ritmo. A vizinha girava sem parar no meio do grupo.

Aproximei-me de minha mãe que perguntava onde eu havia andado.

Não respondei. Arregalei mais os olhos, agora, hipnotizado. A vizinha continuava girando, sem parar, gritando frases desconexas, pedindo bebidas, fumando charuto e de repente, num grito abafado, quase sussurro, desaba no chão. Imediatamente tapam-lhe o rosto com um pano preto e um risco de pólvora é aceso ao seu redor, enquanto os atabaques funcionam com fúria e as pessoas cantam incessantemente, quase gritos.

Em casa, ouvi os gritos de minha mãe, não preocupada com o que presenciara, nem com a vizinha, nem com o ritual, mas com o meu próprio, que organizara.

A boneca de minha irmã incendiava, enquanto cantava canções tão parecidas com aquela que ouvira naquela tarde.

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